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A ciência contra a incerteza

A busca pelas melhores evidências levou a uma explosão no número de metanálises nos últimos anos. Esses estudos que reúnem os resultados de outras pesquisas têm levado a uma medicina cada vez mais precisa

Por Guilherme Rosa
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h05 - Publicado em 21 mar 2015, 16h10

O volume de estudos científicos publicados ao redor do mundo cresce de 8 a 9% ao ano. É por isso que, cada dia mais, surgem pesquisas que confundem a cabeça das pessoas. Num dia comer ovo faz mal à saúde, no outro faz bem. Hoje os suplementos vitamínicos protegem contra várias doenças, amanhã não é bem assim. Um dos responsáveis por essas divergências é a má qualidade de diversos estudos, publicados em revistas de baixa qualidade, sem metodologias confiáveis ou simplesmente enviesados. Para ajudar os pesquisadores – e, por consequência, a população em geral – a navegarem nesse oceano de informações, foram criadas as metanálises: estudos estatísticos que combinam o resultado do maior número de pesquisas independentes em busca da melhor evidência possível.

“Se você olhar no dicionário, metanálise quer dizer análise da análise. De modo simples, ela é a somatória dos resultados de estudos que tentam responder à mesma pergunta”, diz Álvaro Nagib Attalah, professor da Unifesp e chefe da disciplina de medicina baseada em evidências, dedicada a promover o uso dos melhores dados científicos no atendimento médico. Ele também é diretor do Centro Cochrane do Brasil, focado em publicar revisões da literatura científica e metanálises para ajudar nas decisões médicas.

Segundo o pesquisador, o uso da metanálise vem crescendo em diversas áreas da ciência, como a agricultura, veterinária e até o direito. Mas é na medicina e nos consultórios médicos que tem se destacado. Elas servem, muitas vezes, para corroborar ou ir contra tratamentos receitados em todo o mundo. Uma metanálise publicada no ano passado, por exemplo, confirmou que o uso de estatinas realmente ajuda a salvar a vida de pacientes com o risco de desenvolver doenças cardiovasculares. Foram analisados 19 estudos, com mais de 56 000 voluntários no total, e foi possível constatar uma redução da mortalidade com o tratamento. De cada mil que receberam o medicamento, 18 conseguiram prevenir o aparecimento dessas doenças.

Ao mesmo tempo, um estudo publicado pela revista Annals of Internal Medicine em 2013 analisou 27 pesquisas sobre a eficácia dos suplementos de vitaminas que muitas vezes são receitados pelos médicos. Somados, avaliaram mais de 400 000 participantes, e chegaram à conclusão que não havia nenhuma evidência estatística significativa de sua eficácia no aumento do tempo de vida e na incidência de câncer ou doenças cardiovasculares.

Por unificar o número de amostras analisadas em vários estudos, muitas vezes as metanálises ajudam a trazer à tona informações que poderiam passar despercebidas num primeiro momento. Por exemplo, em estudos pequenos, com dezenas de casos analisados, uma diferença de 3% pode não fazer diferença. Mas quando se juntam várias pesquisas, e a soma dos voluntários pode atingir a casa dos milhares, essa diferença se torna estatisticamente significante. “Hoje em dia, as diferenças na eficácia dos tratamentos tende a ser cada vez menor. Mas essas diferenças ainda são importantes, pois ajudam a salvar vidas. Por isso, daqui para a frente, precisaremos de amostras cada vez maiores. E esse é um dos papéis das metanálises”, diz Atallah.

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​Em busca das evidências – Embora tenham ganhado destaque recentemente, as metanálises existem há bastante tempo. As primeiras tentativas de combinar o resultado de estudos diferentes datam do começo do século passado, e ocorreram principalmente na agronomia. Com o tempo, a metodologia passou a ser adotada em outras disciplinas, como a psicologia, até chegar à medicina. Uma das primeiras metanálises de que se tem notícia nessa área foi publicada em 1955, avaliando a eficácia do placebo. Como resultado, percebeu que o tratamento com os medicamentos inertes surtia efeito em 35% dos pacientes.

Esse tipo de estudo acabou ganhando força a partir dos anos 1970. Até então, a maior parte dos procedimentos médicos eram baseados na fisiopatologia. Os tratamentos eram desenvolvidos a partir da compreensão dos mecanismos por trás das doenças. Foi nessa década que começou a ganhar destaque o trabalho do médico escocês Archie Cochrane. Em uma revisão da medicina praticada na Inglaterra, ele questionou esse tipo de conhecimento e apontou que boa parte dos procedimentos adotados não tinham evidências científicas. “O que, por exemplo, justificava o número alto de cirurgia de retirada de amígdalas e de estômagos? E as cesarianas? Cochrane dizia que eram necessários maiores estudos para realizar esse tipo de conduta”, explica Álvaro Nagib Attalah. “Ainda hoje boa parte dos tratamentos realizados não possuem grandes evidências.”

Nos anos 1990, o trabalho de Cochrane acabou ajudando a dar originar um novo movimento: a medicina baseada em evidências. Nela, os médicos tentam fundamentar os seus tratamentos nas pesquisas com o melhor grau de confiança possível. Hoje, os pesquisadores já estabeleceram uma lista com os níveis de evidência para a tomada de decisões na medicina. O melhor nível de evidência é o da metanálise. Depois, vêm os megatrials, grandes estudos com milhares de casos, onde os voluntários são escolhidos aleatoriamente. No terceiro nível ficam os estudos comparativos pequenos, e depois vêm pesquisas com pouco rigor científico, onde os pacientes não são randomizados, isto é, escolhidos aleatoriamente.

Em 1993, médicos e pesquisadores do todo o mundo fundaram a Cochrane Collaboration, uma organização sem fins lucrativos que publica revisões sistemáticas da literatura científica e metanálises. Com o tempo, se tornou o principal centro a realizar esse tipo de estudo, com mais de 7 000 revisões publicadas. Hoje, possui mais de 30 000 voluntários em 120 países. No Brasil, o Centro Cochrane é dirigido pelo professor Álvaro Nagib Atallah, da Unifesp.

Mergulho na literatura – Antes de realizar qualquer metanálise, é necessário formular a pergunta que será respondida pelo estudo. Em seguida, o pesquisador deve realizar uma revisão sistemática da literatura, em busca de todas as pesquisas que já tentaram responder à mesma questão. “Não posso escolher quais vou incluir. Se fizer isso, estarei enviesando o estudo. O objetivo é agregar as melhores evidências disponíveis sobre a questão que está sendo pesquisada”, diz a nutricionista Julicristie Oliveira, professora da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp.

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Uma revisão sistemática não precisa, necessariamente, levar a uma metanálise. Ao apontar para todas as pesquisas encontradas nos bancos de dados, ela pode ajudar o cientista a saber o que já foi publicado sobre determinado tema. “Nem todo mundo pode se aprofundar na literatura para conhecer todos esses estudos. A revisão serve para introduzir o pesquisador no assunto avaliado”, diz Julicristie. Ela acabou de orientar, por exemplo, uma revisão de literatura sobre o impacto das hortas comunitárias na segurança alimentar da população. Como os dados dos estudos não são quantificados e não podem ser comparados, eles não deram origem a uma metanálise.

Durante a revisão sistemática, é um dever do pesquisador avaliar a qualidade dos estudos que encontrou e apontar sua falhas. Seguindo critérios técnicos, deve analisar se eles têm validade interna e descrevem sua metodologia de maneira clara. “É a hora de separa o joio do trigo. Muitas vezes encontramos 80 estudos e, depois de fazer essa avaliação sobram 6 ou 7”, diz Álvaro Attalah. “São esses, com qualidade metodológica boa, que darão origem à metanálise.”

O pesquisador então coleta o resultado de todos os estudos que passaram pela avaliação e os submete a um rigoroso cálculo estatístico, em busca de um resultado médio. Pesquisas com um número de voluntários maior têm mais peso durante a conta. O produto final é a melhor evidência que a ciência tem a oferecer sobre o assunto.

O sino da incerteza – Uma preocupação recorrente com a metanálise é a possibilidade de ocorrerem distorções por causa das pesquisas escolhidas durante a revisão sistemática. Uma das principais críticas que existem a essa metodologia é quanto ao viés de publicação. O termo descreve uma tendência de os estudos que provam a eficácia de um tratamento terem maior probabilidade de serem publicados do que aqueles que mostram que ele não tem efeito – principalmente quando a pesquisa é patrocinada pela indústria farmacêutica.

Por sorte, os pesquisadores já possuem metodologias estatísticas capazes de mostrar quando isso acontece. “Normalmente, os resultados dos estudos de uma revisão sistemática se distribuem num gráfico na forma de um sino. Se percebemos que falta um pedaço desse gráfico, isso é um sinal de que devem existir estudos que não foram publicados”, diz Attalah. “Mas hoje em dia esse problema é menor, pois todos os estudos que submetem os voluntários a tratamentos de risco devem ser publicados.”

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De qualquer forma, os cientistas sabem que não existe certeza na ciência. Um resultado sempre pode ser contrariado por um novo estudo. Por isso, preferem falar em probabilidades. “Podemos não ter certezas, mas não tenho dúvida de que, hoje em dia, nós dispomos de metanálises que deixam uma possibilidade ínfima de incerteza”, diz Álvaro Attalah. “A vida humana merece esse tipo de preocupação.”

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