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‘O Brasil vive o monopólio da autobiografia’, diz advogado da Associação Nacional dos Editores

Gustavo Binenbojm, autor da ação contra a censura prévia de biografias, vai defender no STF que a história é propriedade coletiva, e que conhecê-la é um direito de todos os brasileiros

Por Cecília Ritto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
19 out 2013, 16h20

A centelha inicial para o debate de agora sobre a publicação de biografias não autorizadas foi a iniciativa da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) de entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal, em 2012. O grupo questiona os artigos 20 e 21 do Código Civil, usados para impedir a publicação desse tipo de trabalho sem autorização prévia dos biografados ou de seus herdeiros. A associação enfrentará em breve, em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), o grupo Procure Saber, presidido pela empresária Paula Lavigne e integrado por Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Gilberto Gil e Roberto Carlos. Pelo lado dos editores e de quem quer o fim da censura sobre as biografias estará o advogado da Anel, Gustavo Binenbojm, a quem caberá provar que a liberdade de expressão não fere em nada a privacidade de figuras públicas – desde que qualquer apuração e exploração comercial de produtos editoriais ocorra dentro da legalidade. Em entrevista ao site de VEJA, Binenbojm sustenta o absurdo que seria perpetuar a regra atual, que, explica, fere a constituição e cria aberrações inclusive sobre publicações pretéritas: “Se eu quiser publicar um livro sobre a vida pública de um artista baseando-me apenas em fatos já narrados em revistas, jornais ou televisão, precisarei de autorização prévia. E isso não significa defesa da intimidade e da privacidade, depende exclusivamente do agrado ou do desagrado do biografado”, afirma.

O ministro Joaquim Barbosa frisou na segunda-feira que os direitos à liberdade de expressão e à privacidade estão no mesmo pé de igualdade. O que deve prevalecer em relação à publicação de biografias não autorizadas?

Se alguém insistir que os direitos estão em pé de igualdade, cria um falso dilema. Em se tratando de figuras públicas, pouco importa se são agentes políticos, artistas ou desportistas. Eles exercem poder e influência sobre a sociedade. É uma falsa dicotomia liberdade de expressão e direito à privacidade. É falsa porque ninguém defende a tese de que pesquisadores, autores ou biógrafos possam cometer ilegalidade na apuração dos fatos. Ninguém tem o direito de invadir o domicílio alheio para obter provas, ninguém tem o direito de subtrair documentos sigilosos, de invadir computadores, de violar sigilo de correspondência ou de comunicação telefônica. Estamos falando de uma pesquisa no limite da legalidade. Os fatos permanecem sigilosos desde que não sejam apurados de forma legitima ou expostos pelo próprio detentor da revelação.

Então, a exposição da vida íntima de biografados é legitima?

Sim. E é relevante porque conhecer a vida privada de uma sociedade é também uma forma de compreender os costumes e entender a vida pública. Em um país de tradição patrimonialista, caracterizado pela confusão entre o público e o privado, se eu não falo do privado, não entendo o público. Essas relações são indissociáveis no Brasil. O critério da licitude da informação é o que eu acho justo. Ninguém pode, por exemplo, invadir o computador do biografado e ver o que foi falado através do e-mail. Da forma como é hoje no país, só é possível existirem autobiografias. As outras estão banidas ou dependem de um beneplácito, quase sempre oneroso e muito parcial dos biografados. Ou seja, é o monopólio da biografia única. Nos Estados Unidos, chegaram a uma conclusão: onde a liberdade de imprensa não é plena, a liberdade de imprensa não existe. Ou se tem a liberdade de publicação total ou ela não existe.

No mesmo dia em que defendeu a publicação de qualquer biografia, o ministro Joaquim Barbosa disse que censura prévia é inconstitucional. A proposta da Adin, no entanto, mostra que se trata de uma prática comum no Brasil.

O nome em língua portuguesa que designa a possiblidade de alguém silenciar terceiros é censura. O significado histórico de censura é o Estado ou uma entidade privada ou uma pessoa impedir a livre manifestação de outro. Isso é censura. A autorização prévia aniquila a pluralidade, privilegia uma versão monolítica dos fatos a partir da visão dos protagonistas da história. Isso é censura. Se eu quiser publicar um livro sobre a vida pública de um artista e só publicar fatos que já saíram em revistas, jornais ou televisão, precisarei de autorização prévia. E isso não significa defesa da intimidade e da privacidade, depende exclusivamente do agrado ou do desagrado do biografado. A autorização previa é um mecanismo sui generis, é uma jabuticaba brasileira.

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É um desestimulo à produção de biografias?

Há um efeito silenciador. O que resulta dessa situação censória é que tanto autores como historiadores e produtores de conteúdo visual ficam amedrontados de empreenderem nessa área pelo risco iminente de uma decisão judicial proibitiva. É um desestímulo. Muitas vezes a biografia demanda pesquisa de anos a fio. Nas editoras, o departamento jurídico ou advogados contratos advertem pelos riscos. Os editores fazem a conta com o risco e dizem: não vale a pena publicar. Às vezes, um filho quer autorizar, outro não quer. Ou um filho quer uma licença por um valor razoável e outro cobra algo estratosférico. Às vezes, a família concorda com o conteúdo, mas um único herdeiro veta. Do ponto de vista prático, é caótico. Sem falar na possibilidade permanente de distorção da história. Se têm que passar por crivo prévio do biografado ou da família, os fatos são filtrados.

Os artigos 20 e 21 são os vilões das biografias não autorizadas. Com qual argumento a Anel pretende derrubá-los?

Alguém tem monopólio sobre a narrativa de sua trajetória existencial? A resposta é não. No Brasil, por força do artigo 20 do Código Civil, a resposta é sim. Só que o artigo 20 é uma lei e, hierarquicamente, está abaixo da constituição, que diz o contrário. Por isso, no que se refere à autorização prévia para publicar biografia, é simplesmente inconstitucional. A questão é mais simples do que está parecendo. Hoje, o biografado não precisa alegar que houve ofensa à honra, calúnia, difamação ou dano moral. Simplesmente o biografado não dá autorização e pronto. É esse o caso da biografia do Roberto Carlos. Os dois artigos foram colocados no Código Civil com objetivo de proteger o direito à imagem das pessoas em relação ao uso de comercial. E aí eu estou de acordo. Ninguém pode pegar a sua foto para vender algum produto. Outra coisa é exigir autorização prévia para contar a vida de pessoas públicas. Imagina que para escrever um livro de história eu tenho que pedir autorização desde os descendentes de Pedro Alvares Cabral até Dilma Rousseff. O escopo do artigo 20 é amplo o suficiente para que essas autorizações sejam necessárias.

Artistas do Procure Saber têm defendido o repasse do lucro para os biografados. Como vocês pretendem frear essa iniciativa?

A propriedade intelectual de uma narrativa histórica é do autor e não da personagem. É como se eu tivesse expropriando o autor, que, pela constituição, tem direito aos frutos de sua criação intelectual.

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Caetano Veloso, em artigo publicado no domingo n’O Globo, defendeu a publicação de biografias de Roberto Marinho e de José Sarney, mas não de artistas. Categorizar cidadãos brasileiros é razoável?

Não. Esse argumento é o que me parece o mais frágil. É o seguinte pensamento: “eu posso falar sobre todo mundo, mas ninguém pode falar sobre mim”. O Procure Saber quer dizer que determinadas figuras públicas – pela importância social, política e econômica -podem ser biografadas livremente, mas os artistas não. Não levam em consideração que o ‘ser artista’ importa não apenas pela notoriedade, mas pelo exercício de poder social, por influenciar pessoas. Prova disso é serem constantemente vistos associando seus nomes a vendas de produtos, à defesa de posturas e projetos políticos. O Caetano é figura pública importante para conhecer a história da mpb, do exilio de cantores. O Gil chegou a ser ministro da Cultura e, portanto, político de alguma maneira. A vida privada dessas pessoas interfere com a vida coletiva de toda a sociedade brasileira. E conhecer a nossa historia é um direito de todos nós, e um ofício que se constrói coletivamente. Por isso, a história é de propriedade coletiva.

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