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Hitchcock, o Cézanne do cinema

Em momento de revival do cineasta, chega ao Brasil o filme ‘Hitchcock’, inspirado em livro sobre ‘Psicose’ que mostra como o mestre do suspense fez as pazes com o público ao abraçar o gênero do terror e como a sua habilidade técnica fez escola para os diretores que vieram depois

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 2 mar 2013, 17h38

Sem nenhuma grande efeméride além dos cinquenta anos de Os Pássaros, um de seus filmes mais famosos embora não o preferido de boa parte dos cinéfilos, Alfred Hitchcock é o principal nome em cartaz na sessão de revival do cinema este ano. Em especial no Brasil, onde estreia nesta sexta-feira Hitchcock, longa baseado no livro Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose (tradução de Rogério Durst, Intrínseca, 256 páginas, 29,90 reais), que também acabou de chegar às livrarias nacionais, com 23 anos de atraso em relação ao lançamento nos Estados Unidos.

Stephen Rebello
Stephen Rebello (VEJA)

No livro, o jornalista e roteirista Stephen Rebello, admirador e seguidor de Hitchcock desde a infância, conta como foi a produção de Psicose (1960), desde a compra dos direitos do sombrio romance de Robert Bloch, baseado na história real do assassino Ed Gein, até o declínio da carreira do diretor britânico, nos anos posteriores, quando de todo modo ele deixou a sua marca, o seu estilo. A história de Gein chamou a atenção do cineasta, que viu no projeto a chance de se reinventar. Para isso, porém, ele teve de investir o próprio dinheiro, já que a história do amalucado assassino de Psicose pareceu arriscada demais para o seu estúdio, a Paramount. Para os executivos, “Hitchcock e Psicose não pareciam uma boa combinação”, diz Rebello no livro. O orçamento final ficou em pouco mais de 800.000 dólares, baixo se comparado com os filmes de 2,5 milhões que Hitchcock já havia feito. “Ele teve de gravar com tempo contado”, conta o autor ao site de VEJA.

No longa surgido da obra de Rebello, é Anthony Hopkins quem dá vida ao diretor que reinventou o gênero do terror a partir de Psicose. Para o jornalista, que foi o último a entrevistar o cineasta, em 1980, o papel de Hitchcock na reconstrução do gênero é semelhante ao trabalho do francês Paul Cézanne na pintura. “O estilo de Hitchcock se destaca daqueles que abordam os mesmos temas que ele. Qualquer um consegue pintar uma cesta de frutas, por exemplo. Mas, nas mãos de um Cézanne, um chamado tema “mundano” pode inspirar algo transcendente.”

Outro lançamento que faz de Hitchcock o tema do momento é o telefilme The Girl, da HBO, que retrata o diretor Hitchcock como um homem obsessivo e rancoroso com Tippi Hedren, a atriz principal de Os Pássaros (1963). Quando Grace Kelly, então casada com o Príncipe Rainier III de Mônaco, desistiu de protagonizar o filme, Hitchcock decidiu fazer de Tippi a sua nova estrela. Inexperiente no cinema, e apenas conhecida pela carreira como modelo, a moça teria diante de si a oportunidade da vida, não fosse pelos abusos e jogos psicológicos do diretor, de quem diz ter se tornado vítima. Em entrevistas, entre outras coisas, a mãe de Melanie Griffith afirmou que os pássaros usados para as gravações do longa eram verdadeiros, assim como os machucados em seu corpo decorrentes dos ataques dos animais.

Confira a entrevista de Stephen Rebello ao site de VEJA.

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Alfred Hitchcock teve que financiar Psicose (1960) do próprio bolso, o que o impediu de contratar grandes atores e os profissionais de produção com que estava acostumado a trabalhar. Por que tanto empenho em fazer o filme? No livro Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose, eu explico que Hitchcock temia se repetir e ser visto como um diretor de poucas ideias. Seu longa anterior, Intriga Internacional, foi um sucesso em 1959, mas ele sentia que não progredia como diretor. Hitchcock tinha 59 anos e fazia filmes desde o final dos anos 1920. Ele era como um produto, uma marca, e público e crítica julgavam saber o que esperar dele, coisa que ele não desejava. Diretores do mundo inteiro o imitavam e alguns diziam que o superavam. Mesmo programas de TV americanos copiavam as histórias do Alfred Hitchcock Presents, seu programa semanal de suspense, apresentado e às vezes dirigido por ele. Adaptar o romance Psicose, de Robert Bloch, era uma forma de se reinventar. Diferentemente dos filmes elegantes e glamorosos feitos do meio para o final dos anos 1950, o universo de Psicose é sujo, puído, desesperador. O filme foi tão imitado nos últimos 50 anos que as pessoas esqueceram o quão arriscado foi para o diretor eleger um romance em que figuravam travestismo, incesto, esquizofrenia, necrofilia, sexo e violência. Robert Bloch apresenta uma heroína que morre no começo da história e um assassino que parece alguém que você pode encontrar no dia a dia. Esse tipo de coisa foi estimulante para Hitchcock. Ele queria apostar em algo forte, assustador de uma maneira original e barato. Ele arriscou sua reputação.

O roteirista Joseph Stefano afirmou em entrevista que o fato de Psicose ser diferente dos outros filomes de Hitchcock lhe deu mais liberdade na criação e caracterização dos personagens. Hitchcock não era roteirista e não sabia como fazer uma história funcionar ou como compor motivações plausíveis para os personagens, então inteligentemente deixava essa tarefa para os roteiristas. Seus colaboradores ocasionalmente ganhavam o reconhecimento e o crédito que mereciam. A afeição de Hitchcock pelo jovem, talentoso e inexperiente Stefano, depois de tentar outros roteiristas e não gostar do resultado, foi crescente. Após discutir todos os aspectos do filme com o diretor, Stefano recebeu sinal verde para fazer o trabalho. E ampliou a história de Robert Bloch. No livro, o escritor apresenta os personagens e a maior parte da história, que o roteirista aprofundou e enriqueceu com diálogos e detalhes dos personagens. Stefano humanizou a história.

A cena do assassinato no chuveiro é referenciada até hoje. Na época, Hitchcock tinha consciência de que seria uma das cenas mais importantes de sua carreira? Os envolvidos na cena sabiam que ela chocaria e surpreenderia o público, já que nunca se espera que a estrela do filme seja brutalmente assassinada no começo da história. E todos sabiam também que Hitchcock estava disposto a testar limites. Mas, na verdade, foi a cena do assassinato do detetive nas escadas que teve mais desafio técnico e planejamento, porque se imaginava que seria o destaque do filme. Nada estava claro enquanto Psicose era feito. As pessoas raramente sabem que estão fazendo história quando, na verdade, estão. Enquanto fazia Psicose, Hitchcock já tinha outro projeto na cabeça, Marnie, Confissões de uma Ladra, com Grace Kelly à frente, mas, como sabemos, as coisas tomaram outro rumo.

Quando o filme foi lançado, a crítica o recebeu friamente. Por que demoraram a perceber a importância de Psicose? A maior parte do público e da crítica também não se impressionou com Um Corpo que Cai e uma enquete do British Film Institute’s Sight and Sound do ano passado o colocou como o maior filme de todos os tempos. Hitchcock não acostumava receber amor ou respeito dos críticos ou do Oscar. Seus filmes eram descritos como leves, superficiais e bobos, e Hitchcock era visto como um showman, uma celebridade. Como ele poderia ser isso e, ao mesmo tempo, um artista? Esse é um raciocínio ridículo, obviamente. Psicose não foi bem recebido pela crítica, exceto por um ou outro, como Andrew Sarris, que reconheceu o quão inovador, profundo, subversivo e tecnicamente brilhante o filme era.

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O sucesso de bilheteria do filme pode ser atribuído à publicidade? A estratégia provocativa e perspicaz criada por Hitchcock aguçou a curiosidade das pessoas. Ele criou um trailer em que não era mostrada nem sequer uma cena de Psicose. Ele gravou anúncios que eram exibidos nas áreas próximas às salas de cinema, pedindo que as pessoas não contassem o final para ninguém. E proibiu, por meio de contrato, que os cinemas deixassem alguém entrar na sala depois que o filme começasse. Isso não só foi uma jogada inteligente como ajudou a mudar a forma como as pessoas iam ao cinema. Ele criou uma aura de perigo, mistério e choque em torno do filme. E transformou Psicose em um evento sem precisar de ajuda do estúdio ou da imprensa. Mas, se o filme não tivesse impressionado, entretido e estimulado o público, o boca a boca o teria eliminado.

A maior preocupação de Hitchcock sempre foi seduzir o público. Atualmente, no entanto, ele é visto como um diretor sério e distante do chamado “cinema comercial”. A que podemos atribuir essa mudança de perspectiva? Hitchcock era um visionário, um feiticeiro na técnica, um mestre em enquadramento e composição. Ele era capaz de suscitar emoções raras e complexas. Suas habilidades eram formidáveis e seu trabalho se destaca daqueles que abordam os mesmos temas. Qualquer um consegue pintar uma cesta de frutas. Nas mãos de um Cézanne, por exemplo, um chamado tema “mundano” pode inspirar algo transcendente. Por isso, quando ele foi criticado por fazer filmes “de arte” como O Homem Errado e Um Corpo que Cai depois de sucessos como Janela Indiscreta e abraçou gêneros mais populares como o terror, que percebeu ser um sucesso entre os frequentadores dos cinemas a céu aberto nos anos 1950, fez grandes produções como Psicose.

Psicose chegou a mudar a forma como Hitchcock pensava o cinema? No livro Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose, eu estava interessado em explorar como a reação mundial ao filme afetou o diretor. Críticos importantes começaram a escrever sobre seu simbolismo, suas repetidas composições visuais e seus temas profundos. Logo surgiriam centenas de livros sobre Hitchcock. Alguns diriam que com isso ele se tornou mais consciente de si mesmo e que seus filmes sofreram por isso. E ficou impaciente com as exigências das estrelas do cinema. Nos últimos anos, me interessei pelos filmes feitos após Psicose, erroneamente vistos como inferiores. Eu acredito que Hitchcock estava no caminho para algo novo. Ele se permitiu experimentar com cores, sons, temas obscuros, atmosferas mais emocionalmente complexas. Infelizmente, o estúdio Universal, com que tinha contrato, vetou projetos fascinantes que ele queria levar adiante. Ainda mais triste foi a forma como a idade e a saúde afetaram sua autoconfiança e, finalmente, se apossaram dele.

De que forma Psicose influenciou a história do cinema e os filmes que vieram depois dele? Psicose destacou a conexão entre sexo e terror de uma maneira poderosa e convincente. O horror saiu do universo de fantasmas e vampiros e aterrou na mente humana, que se mostrou mais perigosa que qualquer criatura fantasiosa. O filme “puxou o tapete” do público, desafiando a percepção de que filmes eram seguros e previsíveis e de que nada horrendo poderia acontecer na tela, ainda mais com a estrela principal. Hitchcock nos ensinou que nada e ninguém é digno de confiança, nada é o que parece ser, privacidade é uma ilusão e não há lugar para se esconder. Psicose abriu as portas para produções violentas como Meu Ódio Será sua Herança, Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas, O Exorcista, O Silêncio dos Inocentes, Halloween – A Noite do Terror e Seven – Os Sete Crimes Capitais. A maior lição que diretores espertos tiraram de Psicose foi mostrar menos e sugerir mais, porque a imaginação de um espectador é mais audaciosa do que qualquer coisa que um cineasta possa apresentar.

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