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Exame de consciência em relação à escravidão

O mais incômodo de todos os assuntos da história americana é revisitado em filmes como ‘12 Anos de Escravidão’ e livros como ‘A Invenção das Asas’

Por Isabela Boscov
14 fev 2014, 05h00

As indicações

  1. Melhor filme
  2. Diretor

    (Steve McQueen)

  3. Ator

    (Chiwetel Ejiofor)

  4. Ator coadjuvante

    (Michael Fassbender)

  5. Atriz coadjuvante

    (Lupita Nyong’o)

  6. Roteiro adaptado
  7. Montagem
  8. Desenho de produção
  9. Figurino

Em 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, Estados Unidos, 2013), que estreia no país nesta sexta-feira, o negro nascido livre Solomon Northup é abordado por dois brancos no Estado de Nova York, onde mora com a mulher e os filhos: Solomon é violinista, e os sujeitos o querem em suas apresentações itinerantes. Nas semanas seguintes, Solomon faz um bom dinheiro nessa base. Mas, na chegada a Washington, é drogado pelos companheiros, raptado e vendido como escravo para o Sul. Desse dia de 1841 até 1853 passará por vários donos na Louisiana e sofrerá crueldades indescritíveis. Não pode revelar que é livre ou que sabe ler e escrever: seria morte certa. Finalmente, Solomon consegue fazer com que notícias suas cheguem a amigos no Norte. Recupera a liberdade e publica o relato verídico que é adaptado pelo diretor inglês Steve McQueen em seu filme e que chega às livrarias no dia 24 (tradução de Caroline Chang; Penguin/Companhia das Letras; 256 páginas; 22,50 reais). Pegando a questão pelo outro lado, a americana Sue Monk Kidd ficcionaliza, em A Invenção das Asas (tradução de Flávia Yacubian; Paralela; 328 páginas; 29,90 reais, ou 19,90 na versão digital), a história também ela real de Sarah Grimké. Nascida num clã de fazendeiros e donos de escravos de Charleston, na Carolina do Sul, Sarah (1792-1873) aos 11 anos ganhou para si uma escrava da mesma idade. E achou a ideia repulsiva. Tentou devolver a menina, alforriá-la, alfabetizá-la – e em todas as tentativas foi rechaçada pelos pais. Sabe-se que a escrava morreu logo depois. No livro, porém, a autora a deixa viver, alternando capítulos entre as duas mulheres. Hetty, a escrava, é o indivíduo de carne e osso, repleto de aspirações próprias, que move Sarah na sua dificílima vocação como abolicionista e feminista. Junto com sua irmã Angelina Grimké (1805-1879), Sarah foi a única mulher, a única sulista e sobretudo a única pessoa criada dentro do escravagismo a militar contra ele décadas antes da Guerra Civil (1861-1865) e da consequente abolição da escravidão nos Estados Unidos.

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DUPLO PESADELO - Um branco que despreza as regras dos outros brancos, um negro com licença para matar: em Django Livre, Tarantino ameaça a ordem sulista pelos seus dois flancos fundamentais
DUPLO PESADELO - Um branco que despreza as regras dos outros brancos, um negro com licença para matar: em Django Livre, Tarantino ameaça a ordem sulista pelos seus dois flancos fundamentais (VEJA)

Filmes e livros sobre a segregação no Sul americano do século XX e/ou sobre o movimento pelos direitos civis há aos milhares. Sobre a escravidão? Talvez dezenas. Uma característica determinante da narrativa americana é que ela deve acenar com vitória ou sucesso, redenção ou superação. Os militantes dos direitos civis doaram sangue e dor à sua causa – mas prevaleceram. Já a história da escravidão não tem nota positiva. Abolida depois de 246 anos (o Brasil tem a desonra de ser o recordista. A partir dos primeiros índios escravizados até a Lei Áurea, somam-se quase 400 anos), instaurou-se em seu lugar, no Sul, aquele outro monstro, a segregação, que duraria mais 100 anos. É assunto que não anima ninguém.

Junto com outro romance histórico recente, The Good Lord Bird, de James McBride, vencedor do National Book Award de 2013, e com o Django Livre de Quentin Tarantino (este um caso bem à parte), A Invenção das Asas e 12 Anos de Escravidão compõem, então, um afloramento inesperado do tema. E um passo à frente. Conhecer e reconhecer as abominações de seu passado é indispensável a uma sociedade, como o demonstra a Alemanha pós-II Guerra com sua insistência na doutrina da culpa; se ela não o faz, os erros dos pais continuam a visitar os filhos em novas formas. Por exemplo, na cena tão brasileira da patroa forte e saudável que anda de mãos livres pela feira enquanto a empregada carrega a compra sozinha. Ou na forma da mentalidade que gera um Maranhão, um pedaço do século XVI que resiste no presente e onde os cidadãos são tratados como uma commodity por meio da qual um grupo suga influência, voto, imposto, riqueza.

Nos Estados Unidos, essa parte da herança da escravidão – a da lógica que ela deixa em seu rastro – foi em boa medida erradicada com as conquistas das últimas décadas. Mas resta um tabu: o das iniquidades de que era feito o dia a dia de um escravo – os usos sexuais, os castigos e torturas, o regime de trabalho, onde dormiam e o que comiam, a linguagem com que eram tratados, como morriam ou eram mortos. Há ainda um tabu dentro do tabu: o fato de que às vezes os próprios escravos eram cooptados para impingir essas humilhações aos companheiros, ou também eles mantinham escravos. A feição desse dia a dia é o que o politicamente correto, com sua obsessão cosmética, busca contornar. Mas apenas proscrever palavras ofensivas não suprime a história da qual elas nasceram. E esse é o tabu que este punhado de livros e filmes confronta.

O curioso é o viés que esse afloramento adquiriu. Tome-se A Invenção das Asas: Sarah e Angelina Grimké foram indivíduos excepcionais. Foram vilanizadas, atacadas, relegadas ao ostracismo e nunca esmoreceram. Lutaram contra a escravidão como entidade e também caso a caso, ajudando escravos a fugir e educando como cidadãos plenos os filhos feitos pelo irmão em suas escravas. E é essa a questão: elas são excepcionais já no sentido primeiro, o de não terem correspondente entre seus pares. Também Solomon Northup é excepcional: foi um dos pouquíssimos negros raptados a reaver a liberdade e fazer-se ouvir. Os escravos com que ele conviveu naqueles anos, porém, continuaram lá no seu martírio, como as gerações antes deles e as que viriam depois.

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TRAVESSIA DE SÉCULOS - Sue Monk Kidd, que cresceu no Sul durante a explosão do movimento pelos direitos civis, recupera em
A Invenção das Asas a história das irmãs Sarah (acima) e Angelina Grimké: uma luta contra a escravidão empreendida a partir do próprio seio dela
TRAVESSIA DE SÉCULOS – Sue Monk Kidd, que cresceu no Sul durante a explosão do movimento pelos direitos civis, recupera em
A Invenção das Asas a história das irmãs Sarah (acima) e Angelina Grimké: uma luta contra a escravidão empreendida a partir do próprio seio dela (VEJA)

​O impacto emocional de ambas as histórias, claro, é imenso. É maior no caso de 12 Anos de Escravidão, por causa das imagens, habilmente concebidas para chocar e no mesmo fôlego comover, caso da já célebre cena em que a personagem da atriz Lupita Nyong’o é violentamente açoitada minutos a fio. Em A Invenção das Asas, é um impacto que vem da sinceridade; Sue Monk Kidd cresceu no Sul da segregação e da explosão da luta pelos direitos civis. Sua escola foi uma das primeiras a ser integradas, recordou ela a VEJA, e ela tem vivo na memória o achaque que os pioneiros colegas negros sofreram. Mas, com seus personagens excepcionais, tanto o filme como o livro representam a infância da relação com o tema. É uma infância necessária; com esse mesmo estratagema, o de voltar o foco para alguns sobreviventes do genocídio que matou 6 milhões de pessoas, A Lista de Schindler apresentou a uma nova geração os horrores do Holocausto. Mas isso não altera o fato de que as depravações humanas necessitam em algum momento ser tratadas nos seus próprios termos – os termos de sua indecência e obscenidade. É aí que Django Livre avança sobre todos. A história do escravo que vira sócio de um branco no ofício de matar outros brancos (mediante mandado judicial, frise-se) é, na superfície, uma fantasia de vingança. Mas vai à raiz da questão: se o dono de escravos era mais cruel ou mais bondoso, não importa. O que importa é que a escravidão é um pacto de violência – física, e antes de mais nada moral. Para que ela exista, é preciso que um lado da questão leve o outro lado a acreditar – em geral, por meios brutais – que ele nada pode. Em Django Livre, o branco e o negro decidem quebrar juntos esse pacto, e o Sul de fantasia de Tarantino pega fogo: não existe nada mais subversivo, enfim, do que gente que já não quer saber de se pôr no seu lugar.

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