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Cinema pernambucano: para brasileiro e gringo ver

Impulsionada por trabalhos autorais, produção do estado cresce e se torna alternativa a onda de comédias comerciais que domina o circuito

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 set 2016, 16h17 - Publicado em 16 nov 2013, 07h00

Alguns anos após o nascimento do movimento musical mangue beat, que explodiu no início da década de 1990 em Recife, Pernambuco, outro cenário cultural começou a tomar forma na cidade, estimulado pelo ambiente criativo insuflado por bandas como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Com o ritmo do mangue na trilha sonora, o filme Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, decretou o nascimento de um novo cinema pernambucano. Hoje, quase 20 anos depois, a produção pernambucana se consolidou em torno de filmes autorais feitos com olhar sensível e sem maneirismos, que exploram questões nacionais e universais, como a amizade, o desajuste existencial, a inadequação social e a solidão – fazendo uso da máxima seguida por Chico Science, de ser local para ser global.

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“O cinema de Pernambuco é, acima de tudo, um cinema brasileiro que quer dialogar não só com o estado, mas com o país e com o mundo”, diz o produtor João Vieira Jr., um dos donos da REC, produtora de Recife responsável por títulos como Cinema, Aspirinas e Urubus (2003) e Tatuagem (2013), em cartaz a partir deste final de semana no país, depois de se tornar o longa mais comentado do ano nos principais festivais do Brasil. Entre eles, o de Gramado, onde conquistou três prêmios: os de melhor filme, melhor ator para Irandhir Santos e melhor trilha sonora para o DJ Dolores, outro fruto do mangue beat. O diretor da produção, Hilton Lacerda, aliás, começou a carreira por trás das câmeras dirigindo vídeoclipes de bandas do movimento.

O diálogo com exterior tem dado certo também, e inclusive antes do diálogo interno. Sem esconder o DNA regional, presente no sotaque e na cultura local mostrada nos longas, as produções pernambucanas ultrapassaram as fronteiras para pousar com certo louvor em solo estrangeiro. Cinema, Aspirinas e Urubus, estreia do diretor Marcelo Gomes, foi ovacionado no Festival de Cannes 2005, onde ganhou o prêmio de Educação Nacional. “O longa foi selecionado pelo Ministério da Educação da França para ser exibido em escolas”, conta Vieira.

E O Som ao Redor (2012), estreia do crítico Kleber Mendonça Filho na direção, tanto se saiu bem no Festival de Gramado como caiu nas graças da crítica estrangeira. Especialmente do jornalista A. O. Scottt, do jornal The New York Times, que colocou o filme entre os dez melhores do ano. Os elogios impulsionaram o longa, que em seguida foi eleito o melhor longa latino-americano pelo júri do Prêmio Cinema Tropical, realizado em Nova York, e escolhido pelo Ministério da Cultura como o candidato oficial do Brasil a uma vaga entre os indicados ao Oscar em 2014, na categoria de melhor filme estrangeiro.

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Traços e raízes – Na época do cinema mudo, na década de 1920, um surto de produção cinematográfica tomou Pernambuco. O chamado Ciclo do Recife produziu filmes como A Filha do Advogado, de Jota Soares, e Aitaré da Praia, de Gentil Roiz. “Esse ciclo acabou com o início do cinema falado e depois disso o cinema pernambucano raras vezes conseguiu ultrapassar as fronteiras regionais”, analisa Mauro Baladi, filósofo e autor do Dicionário de Cinema Brasileiro, editado pela Martins Fontes. “O ciclo pernambucano atual tem bases mais sólidas, já que se iniciou nos anos 1990 com curtas e foi evoluindo naturalmente para os longas.”

O ciclo atual se caracteriza por filmes que abordam a questão social brasileira por diversos ângulos, assim como a dinâmica de transformação por que a sociedade vem passando, pauta principalmente de cineastas como Lírio Ferreira (Baile Perfumado e Árido Movie) e Cláudio Assis (Amarelo Manga, Baixio das Bestas e A Febre do Rato). “O cinema feito em Pernambuco é bastante crítico”, diz Hilton Lacerda, diretor de Tatuagem e roteirista de diversos filmes, como Baile Perfumado e A Febre do Rato. “Somos vários cineastas e cada um mostra a sua experiência de vida. Partimos de um princípio regional, mas a provocação não é restrita a Pernambuco.”

Sem formação de bacharel em cinema, a maioria desses diretores foi esculpida pela cinefilia e pelo diálogo dentro de cineblubes. Hilton Lacerda, por exemplo, é formado em jornalismo, mas nunca atuou na área. “Minha proximidade com o cinema sempre foi forte. Tenho uma formação autônoma, autodidata, feita principalmente pela observação de bons profissionais em ação”, conta. Assim como Lacerda, Kleber Mendonça Filho também se formou em jornalismo, mas encontrou sua vocação ao dirigir um cineclube em Recife.

“A gente se inventou, nosso jeito de produzir é diferente”, diz Vieira Jr. O produtor aponta que por lá os profissionais são multitarefas. Assumem funções variadas nas produções, o que facilita o desenvolvimento dos filmes e treina pessoas a agir com qualidade atrás das câmeras.

O êxito do cinema pernambucano, na verdade, não segue uma cartilha inovadora. Ele parte da bagagem e do estímulo criativo propiciados por um ambiente cultural efervescente, ao qual se soma um bem-vindo incentivo financeiro, que livra os produtores da dependência da bilheteria. “A característica que move esses idealizadores é a liberdade”, diz Luiz Joaquim, coordenador de cinema da fundação Joaquim Nabuco e professor de cinema brasileiro na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). “Existe um incentivo estadual que concede cerca de 12 milhões de reais para a categoria por ano. A verba ajuda a dar partida nos projetos e os cineastas não precisam se preocupar com o retorno em bilheteria.”

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O apoio faz parte de um plano chamado Funcultura Audiovisual, criado há dez anos pelo governo de Pernambuco para estimular projetos culturais independentes. No último ano, foram destinados 34,7 milhões de reais para o financiamento da arte local.

 

Desafios regionais – Como é comum no Brasil, o cinema pernambucano teve de ser descoberto primeiro lá fora, para então ganhar atenção aqui. Parte da dificuldade de sua penetração no país se deve, curiosamente, a questões linguísticas. A língua falada é a mesma em todos os estados, é claro, mas o sotaque muda de uma região para outra. “Hoje em dia, esse problema é menor, mas no final dos anos 1990 um dos primeiros filmes que produzi foi exibido no sul e, educadamente, um crítico local me sugeriu que os filmes do Nordeste viessem com legenda”, conta Vieira Jr. “O reconhecimento no exterior ajudou a quebrar barreiras aqui.”

Outro obstáculo é a concorrência imposta pela onda de comédias de apelo comercial que vêm dominando a bilheteria entre os nacionais. São filmes como Meu Passado me Condena, o terceiro este ano com o humorista Fabio Porchat, do grupo Porta dos Fundos e do seriado A Grande Família, da Globo, e os dois De Pernas pro Ar, com Ingrid Guimarães, atriz que fez parte do elenco da novela Sangue Bom. “A pouca quantidade de salas no Brasil atrapalha o andamento destes filmes. E mais da metade delas está ocupada com filmes hollywoodianos ou produções brasileiras de comédia com cara de novela”, ressalta o produtor João Vieira Jr.

A concorrência dificulta a difusão das produções. É aí novamente que a boa receptividade estrangeira faz diferença. A publicidade gerada por elogios de fora vem ajudando os longas pernambucanos a conquistar espaço nas salas de cinema – o país tem cerca de 2.700 apenas, ou algo como uma sala para cada grupo de 70.000 habitantes, contra a relação de uma sala para 8.000, nos Estados Unidos. Incensado pelo NYT, O Som ao Redor está entre os vinte filmes nacionais mais vistos no ano. Segundo balanço da Agência Nacional do Cinema (Ancine), até o fim de outubro, o longa tinha uma renda de mais de 967 000 reais.

Apesar da dificuldade de permanecer mais tempo em cartaz e em mais salas de cinema no Brasil, a produção pernambucana continua a crescer e já tem boas estreias previstas para o fim de 2013 e o começo de 2014. Entre elas, está o filme O Homem das Multidões, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães, que por enquanto figura no circuito de festivais e rendeu aos seus idealizadores o prêmio de melhor direção, em Gramado. Outro longa aguardado é Eles Voltam, de Marcelo Lordello, previsto para março de 2014. Enquanto isso, uma possível reunião destes principais diretores pode acontecer no próximo ano em uma série de TV para o Canal Brasil.

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Mauro Baladi, do Dicionário de Cinema Brasileiro, comemora. “Toda a produção de cultura local e regional é positiva e deve ser incentivada. É importante perceber que, em termos culturais, diversidade é sinônimo de riqueza.”

 

De Baile Perfumado a Tatuagem, o cinema pernambucano em destaque:

‘Tatuagem’ (2013)

O longa de estreia do diretor Hilton Lacerda — conhecido por assinar o roteiro de filmes como Baile Perfumado (1996), Amarelo Manga (2002) e A Febre do Rato (2011) e por dirigir vídeoclipes de bandas do mangue beat como Chico Science & Nação Zumbi — apresenta uma irreverente trupe de teatro burlesco chamada Chão de Estrelas. O grupo, liderado pelo personagem Clécio Wanderley (Irandhir Santos), atua na noite recifense em pleno regime militar, em 1978. Clécio se apaixona pelo jovem soldado Arlindo Araújo, conhecido como Fininha (Jesuita Barbosa). A produção ganhou três prêmios no Festival de Gramado: melhor filme, melhor ator para Irandhir Santos e melhor trilha sonora para o DJ Dolores. E levou cinco estatuetas no Festival do Rio: melhor filme do júri, crítica e voto popular, melhor ator para Jesuíta Barbosa e melhor ator coadjuvante para Rodrigo García.

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‘O Som ao Redor’ (2012)

O longa de estreia na ficção de Kleber Mendonça Filho apresenta a história de uma rua de um bairro de classe média no Recife. Apesar de viver em um local aparentemente seguro, a vizinhança se esconde em condomínios, atrás de muros e grades, em busca de segurança. Uma milícia chega ao bairro e oferece vigilância noturna particular. A presença do grupo traz alguma paz para moradores e apreensão para outros. O título foi o selecionado pelo Ministério da Cultura como representante do Brasil para concorrer a uma vaga entre os indicados a melhor filme estrangeiro no Oscar, em 2014. Bem recebido pela crítica internacional, O Som ao Redor conquistou o público em festivais internacionais como o de Roterdã, Nova York, São Francisco, Lisboa e Copenhague.

‘Doméstica’ (2013)

No documentário dirigido por Gabriel Mascaro, sete adolescentes recebem uma câmera e a missão de filmar suas empregadas domésticas por uma semana. O filme foi lançado no Brasil este ano, próximo à discussão da chamada PEC das domésticas, legislação que reconhece o trabalho das empregadas do lar. Sensível, a produção mostra o olhar da classe média sobre a classe C e as profissionais que vivem em suas casas e se tornam parte da vida familiar. A produção de documentários em Pernambuco tem se mostrado tão inventiva e feliz quanto os longas de ficção do estado. Destaque também para O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), dirigido por Paulo Caldas e Marcelo Luna, sobre um justiceiro que atua no subúrbio; e Pacific (2009), de Marcelo Pedroso, outro em que as câmeras são entregues nas mãos dos personagens, desta vez, a bordo de um cruzeiro rumo a Fernando de Noronha.

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‘Eles Voltam’ (2011)

Cris, uma garota de 12 anos, é deixada com seu irmão na estrada pelos pais como forma de castigo por tumultuar a viagem de carro da família. Logo, a menina de classe média se vê sozinha em busca do caminho de volta para casa. A jornada toma proporções maiores quando ela conhece pessoas de classes mais baixas que vivem perto do local onde ela foi abandonada. Dirigido por Marcelo Lordello, brasiliense radicado em Recife, o filme ganhou o troféu Candango de melhor longa de ficção no Festival de Brasília em 2012, e também os de melhor atriz para a jovem Maria Luiza Tavares e de melhor atriz coadjuvante para Elayne de Moura. A produção está prevista para entrar em circuito comercial em março de 2014.

‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ (2005)

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, um alemão, que veio para o Brasil para escapar ao confronto na Europa, e um brasileiro, que quer fugir da seca no sertão nordestino, se cruzam no interior de Pernambuco e se tornam amigos enquanto viajam entre povoados para vender aspirinas. A jornada leva os dois a aprender sobre as suas diferenças e a buscar, em estradas empoeiradas, solidariedade e amizade. O filme foi ovacionado após sua exibição no Festival de Cannes, em 2005, onde ganhou o prêmio de Educação Nacional e foi selecionado pelo Ministério da Educação da França para ser exibido em escolas. Escrito e dirigido por Marcelo Gomes, o longa também teve em seu roteiro a participação do cineasta cearense Karim Aïnouz, diretor de O Céu de Suely (2006). A dupla atuou em outras produções, como Madame Satã (2002), com Aïnouz na direção e Gomes no roteiro. Recentemente, Gomes lançou no circuito de festivais o filme O Homem das Multidões (2012), bem recebido na última Mostra de São Paulo, ainda sem previsão de estreia.

‘Amarelo Manga’ (2003)

No filme de Cláudio Assis, um vasto grupo de personagens lida com uma teia de perigosas vinganças e desejos irrealizáveis. O nome do filme remete ao oposto do amarelo ouro, que lembra riqueza, e cai no tom mais embaçado e ofuscado da cor, relacionado a doenças, obsessões e violências. Amarelo Manga foi o primeiro longa-metragem de Assis, e conquistou prêmios nos festivais de Miami, Berlim e Toulouse. No Brasil, se consagrou com sete Candangos no Festival de Brasília, em 2001. Depois dele, Assis lançou Baixio das Bestas (2007) e A Febre do Rato (2011).

‘Era uma Vez Eu, Verônica’ (2012)

De Marcelo Gomes, mesmo diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus, o filme conta a história de Verônica (Hermilia Guedes), jovem recém-formada em medicina que começa a vida profissional em um ambulatório público do Recife. A médica psiquiátrica vive com o pai e utiliza um gravador para falar sobre seus problemas, questionamentos e relações. O longa foi bem recebido no Festival de Toronto e em San Sebastian. No Brasil, ganhou sete prêmios no Festival de Brasília, em 2012, entre eles os de melhor filme por júri oficial e popular, melhor roteiro para Marcelo Gomes e o prêmio Vagalume de melhor longa-metragem, avaliado por um júri de deficientes visuais.

‘Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo’ (2009)

Outra parceria do pernambucano Marcelo Gomes com o cearense Karim Aïnouz, o filme conta a história de um geólogo que, para espairecer após uma separação, faz uma viagem de trabalho por diferentes estados do nordeste. Com ares de documentário e narrado em primeira pessoa (no texto e na visão da câmera), o longa mostra cenas gravadas na Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará, e mistura uma história de ficção com a realidade do sertão. A produção ganhou diversos prêmios no Brasil e no mundo, entre eles os festivais de Santiago do Chile, de Cinema Brasileiro em Paris, Toulouse e o Festival do Rio.

‘Baile Perfumado’ (1996)

Parte da retomada do cinema pernambucano, que abriu caminho para a atual leva de produções local, o filme Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, conta a história do libanês Benjamim Abrahão, o único que filmou Lampião e seu bando. Os acontecimentos vão desde a morte de Padre Cícero até a morte de Lampião. O roteiro assinado pelos diretores também contou com a participação de Hilton Lacerda, idealizador de Tatuagem (2013). A produção ganhou três prêmios no Festival de Brasília, de melhor filme de júri e crítica, melhor ator coadjuvante para Aramis Trindade e melhor direção de arte.

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