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‘Turismo de favela’: violência atrai visitantes

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 fev 2010, 15h22

Quando o ator Hugh Jackman visitou o Brasil, no início do ano, para gravar um comercial no Rio de Janeiro, resolveu fazer turismo pela cidade, dando uma passadinha pelo morro Dona Marta. O australiano não está só. O chamado turismo de favela, ou turismo da miséria, é um fenômeno em expansão, como atesta o livro Gringo na Laje � Produção, Circulação e Consumo da Favela Turística (FGV Editora, 163 pág., 17 reais), da antropóloga Bianca Freire-Medeiros. Por mais estranho que possa parecer, a violência é, na visão da pesquisadora, o que mais seduz os turistas. “Ela é um atrativo. O filme Cidade de Deus, por exemplo, vende a imagem de que a favela é um lugar extremamente violento, de alto risco: os turistas querem ir lá motivados por isso”, diz Bianca. Só a favela da Rocinha, destino favorito no Rio, recebe cerca de 3.500 visitantes por mês, a maior parte vinda da Europa e dos Estados Unidos. Sete agências especializadas e inúmeros guias exploram o negócio. Leia a seguir a entrevista que a antropóloga concedeu a VEJA.com sobre o assunto. Confira também outros destinos do turismo da miséria pelo mundo.

Como teve início o turismo da miséria?

O turismo em favela tem como antecedente histórico a prática do slumming, termo com registro em dicionário, realizada pelas elites inglesas da era vitoriana, nos anos de 1880. Os ricos iam visitar, por curiosidade ou caridade, os espaços segregados da cidade. Era quase como se fossem às colônias – de chineses, italianos e outros. Virou moda fazer essas visitas. Isso dura até os anos 1920. A situação contemporânea começou por volta de 1990. No Rio de Janeiro, há um mito de origem, segundo o qual o turismo em favela começou com a ECO 92, quando se passou a levar estrangeiros à Rocinha – pessoas ligadas em ecologia e interessadas em alternativas ao turismo de massa. Na África do Sul, esse tipo de turismo teve início com fim do Apartheid, em 1994, e os roteiros turísticos para as townships, localidades que até então estavam isoladas.

O que move o turista, curiosidade ou piedade?

Falar apenas em curiosidade é complicado, porque soa sempre como acusação. É como se disséssemos: “O outro é que é curioso, não eu”. E, na verdade, é tudo misturado. Não é só vontade de conhecer uma outra cultura, um tipo de voyeurismo ou desejo de ajudar. Tentar separar aquele que de fato quer contribuir para o lugar de outro que só quer fazer voyeurismo não é o ponto. Acho que a grande questão é explicar a transformação da pobreza em atração: os turistas estão em busca de uma situação de precariedade que eles desconhecem.

Essa conversão da miséria em atração não gera dilemas morais para o turista?

Com certeza. Todo turista sabe que pode ser acusado de fazer algo de mau gosto, de participar de um “zoológico de pobre”. Mas, entre aqueles que entrevistei, não houve um que tenha saído insatisfeito do passeio. Para todo mundo, é uma experiência forte, capaz de revelar a cidade e de tornar inteligível o país. É isso que causa mal-estar aos brasileiros, críticos da prática, é essa ideia de que explicar o Brasil passa pela favela. A imagem internacional do país hoje está colada a futebol, a Carnaval e a favela. Existe no imaginário internacional uma associação direta entre cultura brasileira e favela.

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A violência também faz parte da imagem externa do país. Isso não assusta o turista estrangeiro?

Na verdade, a violência é mais um atrativo para o turista � um atrativo propagado pela mídia. A ideia que o filme Cidade de Deus vende, por exemplo, é a de que a favela é um lugar extremamente violento, de alto risco. Os turistas vão à favela motivados por essa imagem. É uma coisa que as agências têm de administrar. Ao mesmo tempo em que elas procuram mudar a imagem que o turista tem da favela, mostrar que ali não tem apenas violência, elas sabem que, se ninguém acreditar na violência, não haverá clientela.

Se um dia todas as favelas do Rio estivessem pacificadas, esse turismo morreria?

Isso não sabemos dizer. As favelas exploram outros atrativos, como o fato de serem cenário para filmes ou clipes (o morro Dona Marta serviu de cenário aos clipes de Michael Jackson, em 1996, e de Alicia Keys e Beyoncé, neste ano). É difícil prever a evolução dessa dinâmica.

Se for da vontade do turista, as agências o ajudam a fotografar armas?

Havia uma agência em particular, a Private Tours, que tinha essa prática. Mas, na maior parte das vezes, o turista não vê ninguém armado, porque as agências procuram evitar os locais de venda de drogas, que são menos seguros. Ninguém passa na “boca” (ponto de comércio de drogas), por exemplo. Vale dizer que, para o turista, isso não faz muita diferença. Para ele, basta saber que há pessoas armadas na favela e que ele está numa situação de risco, para que haja excitação. Tem guia que potencializa essa sensação, dizendo coisas como “Acabou de passar um traficante”. Mas em geral o guia não deixa que o turista fotografe gente armada, para evitar problema com o tráfico. Se acontece de um turista fazer uma foto de um traficante, este pode querer tirar satisfação com o turista e mandar apagar a imagem. Aí, o guia tem de intermediar. Para muitos guias, essa é uma atividade estressante.

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Que imagens os turistas mais fotografam?

O que se vê é um interesse primordial pelas habitações. Acho que é impactante para quem vem de formas urbanas mais organizadas pensar como é possível haver tantas construções desalinhadas e como se faz tanta coisa em espaços exíguos. Outra coisa que interessa bastante são os rostos. Aí, o que é muito chocante é que, mesmo na Rocinha, que é considerada uma “favela nordestina”, com tipos físicos variados, os negros são os mais eleitos. Pelas fotografias dos turistas, você tem a impressão de que a favela é negra. Isso mostra que a pobreza tem cara e tem cor. A pobreza é negra. Isso mostra também que, embora o turista tenha a chance, durante o passeio, de confrontar as ideias prévias que possui do lugar com o que vê pessoalmente, muito da representação antiga continua.

É por uma questão econômica que a favela abre as portas para o turismo?

Olha, essa foi uma questão que me impressionou muito. A maior justificativa para receber o turista seria o dinheiro que ele traz. Mas essa não é a prioridade dos moradores. O que eles dizem é que a oportunidade que o turismo proporciona é de construir uma representação diferente da favela. Uma imagem positiva. Eles recebem mais atenção do turista estrangeiro do que do brasileiro, que vira as costas para eles. O morador não é otário. Ele sabe que o turista vai lá querendo ver o tráfico, querendo ver a arma, mas aí eles têm a chance de mostrar que a favela não é só isso.

Como é, de modo geral, o roteiro do turismo na Rocinha?

Há coisas que não podem faltar. Não pode faltar a laje, onde os turistas tiram foto da paisagem e ouvem um discurso explicativo � coisas como “Ali embaixo, você vê a escola americana, que custa tão caro, e isso mostra como esse país é desigual”. A laje é um momento pedagógico, impactante para o turista, que dali vê um oceano de casas, com o mar azul ao fundo. É uma experiência visual muito forte. Todo passeio vai incluir também, em algum momento, uma parada para comprar suvenir. Tem uma grande presença de objetos feitos a partir de material reciclável. É aquela ideia de que a pobreza inspira saídas criativas. Há também muitas pinturas, e são quadros muito interessantes, porque nunca são pedidos de ajuda ou apelação. São imagens de uma favela colorida, aquela ideia de pobreza alegre. O tráfico está ausente dessas representações. São, obviamente, representações redutivas da favela, porque ela é feita de tráfico e de violência. O roteiro ainda vai incluir, sempre, algum tipo de projeto social. E, em alguns casos, uma parada numa escola de samba.

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