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O destino dos doze corintianos presos na Bolívia

Prisão preventiva pode se estender por até três anos pelas leis bolivianas; outros 88 brasileiros estão em situação similar no país vizinho

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 abr 2013, 09h49

O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, vai nesta quinta-feira ao Senado apresentar explicações sobre um tema que tem tirado o sono da diplomacia brasileira: a permanência de doze torcedores do Corinthians presos há 42 dias na cidade boliviana de Oruro, a 230 km de La Paz, acusados de participação na morte do garoto Kevin Espada, de 14 anos, atingido por um sinalizador em um jogo da Copa Libertadores da América. O Itamaraty enfrenta forte pressão tanto de parlamentares quanto fora do Congresso para negociar a libertação do grupo, submetido às leis rígidas sobre prisão preventiva no país vizinho.

Nesta quinta, mais do que falar das queixas de maus tratos na carceragem de Oruro, Patriota terá a oportunidade de esclarecer que os corintianos estão enredados pelo arcaico sistema judicial da Bolívia, um país tão bem tratado pelo governo brasileiro nos últimos anos. O longo tempo de prisão preventiva não é uma novidade em território boliviano: outros 88 brasileiros estão presos na cidade de Santa Cruz de La Sierra em situação similar.

A legislação do país vizinho estabelece a marca de impressionantes três anos como prazo máximo para prisões preventivas, limite que nem sempre é respeitado: pelo menos dez brasileiros estão encarcerados na Bolívia há mais tempo do que isso. Em novembro do ano passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu o alarmante diagnóstico de que o sistema prisional boliviano é um dos mais retrógrados da América Latina. O uso indiscriminado da prisão preventiva pelo Judiciário da Bolívia chegou a tal ponto que atualmente 84% da população carcerária do país é formada por detentos nesta condição.

Depois de constatar altos índices de insegurança dos cidadãos bolivianos entre os anos de 2005 e 2010, o governo decidiu promover reformas judiciais, endurecendo as penas e limitando os casos em que acusados poderiam responder aos processos em liberdade. A consequência imediata foi o crescimento exponencial dos índices de prisões cautelares. Em dezembro de 2011, depois de apenas um ano de vigência das regras mais rígidas de liberação de presos, a população carcerária na Bolívia aumentou 22% em relação a 2010.

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VÍDEO: Os 12 corintianos presos na Bolívia

Jogos e preces: a vida dos corintianos presos em Oruro

Um estudo elaborado por entidades como a Due Process of Law Foundation e o Instituto de Estudos Legais e Sociais do Uruguai e enviado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirma que o cenário boliviano provoca “violações de direitos humanos às pessoas privadas de liberdade” e agrava as “desumanas condições de detenção e os índices de violência carcerária”.

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O código penal da Bolívia é claro na determinação da prisão preventiva a estrangeiros. Sem trabalho, família ou residência fixa em território boliviano e a partir de um documentado histórico de fugas pela fronteira com o Brasil, a regra é que todos os suspeitos, de traficantes de drogas a acusados de homicídios, sejam levados imediatamente para a cadeia. De acordo com diplomatas que acompanham o caso dos torcedores corintianos, a Justiça boliviana é implacável com suspeitos que não tenham familiares ou vínculos de trabalho no país.

“Será que três anos é um tempo razoável para que a pessoa tenha de esperar uma possível condenação? A partir do momento em que passa três anos em uma prisão, a pessoa está condenada antes mesmo da sua defesa”, avalia a professora de Direito Internacional da Universidade de Brasília (UnB), Inez Lopes. “Se a prisão preventiva chega a dois, três anos, na verdade já está se cumprindo pena antes da condenação”, diz.

“É extremamente exagerado esse período de até três anos para uma prisão preventiva, principalmente se compararmos com a nossa lei”, completa o advogado Octávio Aronis, especialista em Direito Penal e Direito Internacional. No Brasil, a regra costurada a partir da jurisprudência é a de que o prazo de prisão processual durante a instrução não pode ultrapassar 81 dias, embora a realidade carcerária nacional seja repleta de exemplos de desrespeito às normas.

Carceragem – Os 12 torcedores corintianos, ligados às torcidas Pavilhão Nove e Gaviões da Fiel, estão presos desde o dia 20 de fevereiro. Na carceragem, dois calabouços são destino certo para os mais rebeldes. As condições locais reproduzem as mazelas da superlotação: 1.500 homens e mulheres, condenados ou não, disputam cada palmo do presídio construído para abrigar apenas 200 deles. Em celas comuns, até para dormir os recém-chegados têm de pagar uma taxa: 200 bolivianos, ou pouco mais de 55 reais, são repassados aos “chefes da cela”.

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Pelo Código de Procedimento Penal da Bolívia, as pessoas detidas preventivamente devem ser levadas a estabelecimentos especiais diferentes dos utilizados por presos já condenados ou devem, pelo menos, ser mantidas em celas diferentes dos detentos já julgados. A lei é ignorada cotidianamente pelo Judiciário boliviano. Com o caso dos torcedores corintianos não será diferente.

Corrupção – Os torcedores brasileiros já foram indiciados por homicídio, mas as audiências de instrução do processo tramitam morosamente na promotoria local. Eles ainda não deram sua versão oficial sobre o episódio que levou à morte de Kevin e, quando tiverem de comparecer ao Palácio da Justiça para depoimentos, vão se deparar com a absurda situação de ter de pagar propina a cada etapa do processo judicial. O peculiar método de trabalho do Judiciário boliviano, revelado por diplomatas e parlamentares brasileiros ao site de VEJA, prevê que os corintianos possam ter de arcar, por exemplo, com uma taxa de 800 a 1 000 dólares em propina para a contratação de um advogado que tente obter uma sentença mais ágil.

Os preços são negociáveis, mas a tabela do mercado paralelo de favores judiciais também fixa pagamento de 60 a 100 dólares para movimentos e notificações nos processos, taxas para escolta policial, propina para utilizar o carro da polícia para comparecer a um depoimento e até o desembolso de cerca de 100 dólares para que o acusado possa ir à audiência de seu próprio processo. Se, por qualquer razão, as audiências forem canceladas, a propina obviamente não é reembolsada. Sem comprovantes oficiais da despesa, os corintianos tampouco podem pedir ressarcimento ao serviço consular.

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A diplomacia brasileira já bateu de frente com a corrupção institucionalizada no Judiciário boliviano, mas as autoridades locais se eximem de responsabilidade. “O caso dos torcedores corintianos é extremamente complicado. O sistema prisional é o caos e a justiça não garante mecanismos de defesa”, diz o deputado Walter Feldman (PSDB-SP), que visitou os corintianos em uma rodada de negociações na Bolívia. “Os presos estão em condição degradante. Se depender da justiça de Oruro, o caso fica mais complicado”, afirma o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), que foi à Bolívia para acompanhar o caso.

Além do possível risco de prisão preventiva abusiva e de extorsão generalizada em cada movimentação processual, a promotora Abigail Saba, responsável pela investigação em Oruro, também tem papel de protagonista no destino dos doze torcedores brasileiros. Até agora, o governo boliviano sequer requisitou formalmente o depoimento em que um corintiano menor de idade confessa ter disparado o sinalizador que matou Kevin Espada. Saba ignorou um protocolo diplomático no pedido que encaminhou para ter acesso ao conteúdo do depoimento do menor e fez um pedido fora dos padrões internacionais. O Ministério de Relações Exteriores brasileiro teme que, nos moldes da solicitação da promotora, a prova possa ser declarada nula pelo juiz do caso.

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Abigail Saba, que suspeita que o menor assumiu a culpa para livrar um adulto de punição, também não providenciou uma perícia nos vídeos que registram o momento exato em que o sinalizador é disparado no jogo entre Corinthians e San José. Desde o dia 12 de março ela tem em suas mãos dois DVDs com o depoimento do menor, análises do perito Nelson Massini, professor de medicina legal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), feitas em imagens do dia do acidente e outros vídeos informais de um jornalista que cobria o jogo. Saba foi substituída agora por Alfredo Santos, novo responsável pela investigação do caso. Mas até o momento nada foi feito com a documentação.

O motivo do novo entrave burocrático é prosaico: a empresa responsável pelas perícias locais rescindiu o contrato em 31 de dezembro por falta de pagamento. Com vídeos e documentos por ora sem serventia, a defesa dos torcedores brasileiros acredita que a promotora possa alegar que a ausência de perícia desqualifica a prova mais evidente de uma possível inocência dos corintianos.

Indenização – Depois de encontros com autoridades diplomáticas e representantes do governo boliviano, interlocutores que acompanham o caso dos corintianos, diante das sucessivas provas de morosidade e burocracia, chegaram à conclusão de que apenas uma negociação de caráter mais político poderia agilizar pelo menos a concessão de liberdade provisória aos torcedores. Nas negociações pela libertação dos brasileiros, surgiu a proposta de que o pagamento de uma pesada indenização à família de Kevin, independentemente da conclusão do processo judicial, poderia sinalizar boa vontade da torcida do Corinthians e ajudar na flexibilização da prisão preventiva.

A hipótese de indenização antecipada esbarra, porém, na velha engrenagem de corrupção. Os advogados que defendem os corintianos acreditam que, diante do cenário consolidado de cobrança de propina para cada movimentação processual, o pagamento à família do menino morto acabaria inflacionado e não ajudaria na libertação dos torcedores. Nos corredores da promotoria de Oruro, autoridades chegaram a estimar ser necessária uma indenização de 5 milhões de reais, mais do que o dobro da provável bilheteria do jogo entre Brasil e Bolívia, que foi agendado para 6 de abril e terá parte da renda revertida para a família do menino.

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Questão política – Entre 21 de fevereiro, um dia após a prisão dos doze corintianos, e o dia 26 de março, foram enviados vinte diplomatas e agentes consulares brasileiros a Oruro para acompanhar o caso. No último dia 24, o próprio embaixador Marcel Biato foi à cidade onde os torcedores estão presos. O ministro de Relações Exteriores, Antonio Patriota, chegou a conversar com o presidente boliviano, Evo Morales, sobre o futuro dos corintianos, e nos últimos dias o embaixador da Bolívia no Brasil, Jerjes Justiano Talavera, foi convocado ao Itamaraty para explicar a situação dos brasileiros.

Sem soluções a curto prazo, autoridades que acompanham o impasse atribuem a demora na libertação dos torcedores a um episódio muito mais complicado: o asilo concedido pela embaixada brasileira em La Paz ao senador oposicionista Roger Pinto Molina. Molina está na embaixada do Brasil desde maio de 2012 após alegar ser perseguido pelo governo. Parte da família do parlamentar conseguiu fugir para o estado do Acre. Oficialmente, o governo de Evo Morales afirma a autoridades brasileiras não poder interferir no Poder Judiciário em favor dos corintianos, mas o fantasma do mal resolvido asilo a Molina paira sobre as negociações envolvendo os torcedores.

Enquanto se desenrolam as negociações sobre relaxamento de prisão ou sobre como lidar com os futuros pedidos de propina, Joselita Maria Neves, mãe de Fábio Neves Domingos, presidente da torcida organizada Pavilhão Nove e um dos doze presos na Bolívia, acompanha com apreensão o futuro incerto do filho. Fábio tem sofrido com as condições precárias de higiene na penitenciária, ainda não conseguiu se adaptar aos efeitos da altitude na Bolívia e tem tido crises frequentes de bronquite alérgica. “Falo todos os dias com o Fábio. Ele fala como um filho fala para mãe: ‘está tudo bem’. Mas eu sei que não está tudo bem. O Fábio é quem sustenta a casa, aluguel, compras, tudo. Agora, sem ele, só Deus sabe. Não está fácil”, diz.

(Com reportagem de Marcela Mattos e Jean-Philip Struck)

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