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Emissão de vistos humanitários explode no Brasil. Mas o país não está pronto para receber imigrantes

No primeiro trimestre do ano, 1.697 pessoas cruzaram a fronteira brasileira, um salto de 316% em relação ao mesmo período do ano passado. Porém, a legislação ultrapassada e a falta de estratégia de acolhida colocam em risco quem chega ao país em busca de uma vida melhor

Por Mariana Zylberkan
19 Maio 2014, 07h55

Há um mês, o governador do Acre, Tião Viana (PT), virou destaque no noticiário ao defender – sem cerimônia – uma irresponsável política de despachar para outros Estados do país haitianos que cruzaram a fronteira brasileira. A decisão causou desgaste com o governo de São Paulo e com a prefeitura paulistana, surpreendidos com a chegada em massa de imigrantes pobres e sem lugar para viver. Porém, a imprudência do governo acreano pode ser apenas a ponta de uma crise imigratória que bate à porta do país. No primeiro trimestre do ano, o Conselho Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho (CNIg-MTE) emitiu 1.697 dos chamados vistos humanitários – o equivalente a 78% do total de vistos concedidos no ano passado inteiro.

Ao chegar ao Brasil, esses imigrantes pobres – a maioria de nacionalidade haitiana, bengalesa e senegalesa – se deparam com uma realidade dura: burocracia para obter documentos e falta de estrutura para começar a vida. No Estado de São Paulo, por exemplo, porta de entrada de 45% dos imigrantes que desembarcam no país em busca de visto humanitário, a Polícia Federal atende apenas quatro pessoas por dia. A lentidão faz com que estrangeiros esperem mais de sete meses para regularizar sua estada.

“É frequente recebermos mais de cinquenta pessoas em um único dia, que ouvem a previsão de meses para conseguir o protocolo de entrada no país”, diz Larissa Leite, do Centro de Acolhida para Refugiados Cáritas Brasil. Após a emissão do protocolo de entrada pela Polícia Federal, esses imigrantes têm de aguardar uma entrevista com um agente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão do Ministério da Justiça.

Como a legislação sobre imigração no Brasil é defasada, datada de 1980, os estrangeiros de países pobres recorrem à lei do refugiado, promulgada em 1997 e mais atualizada, para entrar no país de forma legal. Segundo a lei, qualquer pessoa pode pedir refúgio no Brasil, mas o pleito é deferido apenas para pessoas oriundas de países em guerra civil e vítimas de perseguições politicas. Em 2013, o Brasil recebeu mais de 550 refugiados do Líbano e Síria.

É o caso do técnico em informática sírio Sadi*, de 32 anos, há cinco meses no Brasil fugindo da policia de seu país. Ele foi acolhido por uma mesquita em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo. Assim que chegou ao país, Sadi já obteve a carteira de trabalho e se esforça para aprender o português e conseguir um emprego. “Quero reconstruir minha vida”, diz ao mostrar um vídeo enviado por sua irmã com imagens do prédio onde morava, na cidade de Homs, completamente destruído.

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Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), 77% dos pedidos de refúgio recebidos no ano passado não foram atendidos por se tratar de pessoas que vieram ao Brasil em busca de trabalho. Cerca de 1.800 bengaleses e 960 senegaleses entraram no país dessa forma no ano passado.

A fila para ter sua situação avaliada pelos técnicos do Conare também é longa: o órgão dispõe de apenas quatro agentes para apreciar os pedidos de refúgio. Em 2013, foram 5.769 casos analisados. Após a aprovação dos agentes, os pedidos passam por um novo processo de avaliação numa reunião com os membros do Conare. De acordo com o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, o contingente de funcionários do Conare é suficiente para a demanda.

Além da demora para obter documentos, os imigrantes que pleiteiam um visto humanitário no Brasil sofrem com a falta de abrigo. Disputam vagas em alojamentos mantidos por entidades da sociedade civil ou dormem em abrigos municipais frequentados por moradores de rua. No recente episódio envolvendo haitianos, a prefeitura de São Paulo, por exemplo, encaminhou o grupo para os endereços destinados a receber desabrigados. Os haitianos reclamaram de furtos de pertences e seguiram para o auditório da Missão Paz, uma ONG da Igreja Católica para receber estrangeiros.

O longo tempo de espera para regularizar a situação no Brasil termina com deferimento da permanência no país pelo governo federal. Porém, como o resultado é publicado no Diário Oficial da União, muitos acabam sem saber que foram contemplados. “É um meio de difícil acompanhamento. Muitos perdem o prazo para reclamar seu direito, o que acaba acarretando a sua revogação”, diz João Paulo Charleaux, da ONG Conectas Direitos Humanos.

Há dois anos no Brasil, o motorista Dao Lassana, de 32 anos, da Costa do Marfim, ainda espera a regularização de sua situação. “Vim para o Brasil em busca de trabalho e não consigo exercer a minha profissão”, diz ele, impedido de tirar a carteira de motorista por falta de documentação.

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É o caso do professor de Economia congolês Omana Petench, de 48 anos. “Só quero validar meu diploma no Brasil e dar aula em uma universidade”, diz ele, que deixou todos seus documentos ao fugir do Congo às pressas.

Legislação – A precariedade no acolhimento de imigrantes no Brasil é resultado de uma legislação voltada mais à defesa da integridade nacional do que ao caráter humanitário que o tema requer. O Estatuto do Estrangeiro foi criado na época do regime militar e, segundo especialistas, é refratário aos imigrantes.

“Os fluxos migratórios recentes evidenciam a necessidade de o Brasil estabelecer um plano que permita articular de forma eficiente respostas entre autoridades nos níveis federal, estadual e municipal”, diz Jorge Peraza, oficial de desenvolvimento de projetos da Organização Internacional para as Migrações (OIM), com sede em Genebra.

Segundo Paulo Abrão, há uma forte mobilização do setor industrial para a flexibilização dessas regras. “É razão de desestímulo para o país, diante da competividade por cérebros entre as nações. Por isso, o Estatuto do Estrangeiro é alvo de um debate público para sua modificação com propostas de alteração já em tramitação no Congresso Nacional.”

“Há um apagão de mão de obra não qualificada no Brasil que poderia ser suprido por imigrantes”, diz o ministro Marcelo Neri, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

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*nome trocado a pedido do entrevistado

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