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Rio de Janeiro abriga três ‘cidades’ ambientais

Na sede da Rio+20, ilhas de excelência em sustentabilidade convivem com áreas pobres e abandonadas e outras ricas e desorganizadas, com as piores práticas de desperdício

Por Marcelo Bortoloti
16 jun 2012, 08h47

Guardada pelo Pão de Açúcar, pontilhada de ilhotas, rodeada de areia branca, a Baía da Guanabara é a marca do Rio de Janeiro. Cartão postal da cidade, a deslumbrante paisagem foi descrita por centenas de viajantes desde o século XVI, do pintor Jean-Baptiste Debret ao antropólogo Claude Lévi-Strauss. Suas águas cristalinas um dia causaram admiração pela abundância de peixes, golfinhos e até baleias que buscavam um refúgio para procriar. Hoje, elas recebem a cada segundo 13 000 litros de esgoto sem nenhum tipo de tratamento. Os poucos pescadores que ainda resistem precisam se desviar de toneladas de sacos plásticos e garrafas pet que flutuam na superfície. A manutenção deste espaço de exuberante beleza natural, cercado por uma região metropolitana com 12 milhões de pessoas, sintetiza o desafio do desenvolvimento sustentável: uma ocupação urbana capaz de acolher levas crescentes de pessoas, indústrias e serviços mantendo, ao mesmo tempo, um padrão de existência saudável tanto para a população quanto para o meio ambiente. No cômputo geral, o Rio de Janeiro marca pontos importantes em preservação ambiental, como o fato de abrigar a maior floresta urbana do mundo, ter a segunda rede de ciclovias da América Latina e ser uma das capitais com menor emissão per capita de gases que provocam o efeito estufa. Por outro lado, ainda padece de índices africanos em lazer e infraestrutura para boa parte de seus habitantes. Sede da Rio+20, para onde os olhos do mundo estão voltados neste mês, a capital fluminense é um retrato da complexidade e dos contrastes da ocupação urbana, onde práticas que servem de referência internacional dividem espaço com realidades que podem levar o mundo ao colapso.

Tamanho, no caso, não é problema – pelo contrário, é parte da solução. O Rio, com seus 6 milhões de habitantes, está mais bem equipado para se organizar do que cidades menores e mais espalhadas. Reza o urbanismo de última geração que a aglomeração de pessoas cria um ambiente favorável ao melhor aproveitamento dos investimentos em infraestrutura e transporte e à maior eficiência na ocupação do solo, no uso de energia e na destinação final do lixo. O Rio comprova a tese, ao registrar renda per capita, cobertura de saneamento básico e taxa de alfabetização maiores do que a média do estado e do país. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o índice de vulnerabilidade das famílias, ou seja, sua capacidade de reagir diante de eventos imprevistos, é bem melhor na capital do que no interior do estado. “O desenvolvimento sustentável não passa por uma volta ao campo, mas por uma transformação da cidade”, diz o economista Sérgio Besserman, que representa a Prefeitura na organização da Rio+20.

Na zona Sul, boa qualidade – O desafio carioca consiste em equilibrar as três realidades que convivem dentro da metrópole: o Rio bem encaminhado, o Rio carente e mal cuidado e o Rio endinheirado, mas desordenado. A imagem mais nítida do Rio que se desenvolve de modo sustentável está na Zona Sul – quem mora lá tem boa qualidade de vida, está perto da praia e desfruta do clima mais ameno e do nível de ruído menor proporcionados pela proximidade da Floresta da Tijuca. A Floresta da Tijuca, aliás, é um trunfo da metrópole: um reduto verde não nas bordas ou espaçado, como é comum, mas fincado bem no coração da cidade. “Nisso, o Rio é uma cidade única. As áreas naturais servem de espaço de lazer e permitem uma maior relação entre as pessoas, tornando a sociedade mais saudável”, diz Márcia Hirota, diretora de gestão do conhecimento da organização SOS Mata Atlântica. Outro inesperado ponto a favor desta fatia saudável da cidade: em meio ao trânsito caótico e ao transporte urbano precário, o Rio tem uma frota de bicicletas maior que a de automóveis. Na cidade inteira circulam 3 milhões de unidades, usadas para lazer e também para o deslocamento ao trabalho. São quase 300 quilômetros de ciclovias, a segunda maior malha da América Latina, perdendo apenas para Bogotá, na Colômbia. Em Copacabana, 400 estabelecimentos comerciais usam, ao invés de motos ou carros, bicicletas em seus serviços de entrega, diminuindo o barulho e a poluição.

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Base limpa – Outra vantagem do Rio é que sua economia tem base limpa. A maior fatia do PIB está no setor de serviços e, das indústrias, poucas são poluidoras. A energia, como na maioria das cidades brasileiras, vem das hidrelétricas, uma fonte renovável. O resultado de tudo isso é que as emissões per capita de gases que provocam o efeito estufa são de 1,9 tonelada por ano — um quinto do volume emitido por Los Angeles, nos Estados Unidos, e menos da metade das emissões de Roma, na Itália. As duas maiores fontes poluidoras são o transporte e o lixo. Nos dois casos, a Prefeitura implanta projetos destinados a reduzir o impacto ambiental. No ano passado, foi inaugurado um novo aterro sanitário com alto nível de tecnologia de monitoramento, que vai receber todo o lixo do município por quinze anos. Este ano, estão sendo construídos quatro novos corredores exclusivos de ônibus que vão cortar a cidade, agilizando o transporte público. As duas medidas devem reduzir em 20% suas emissões até 2020. Até a visão das favelas, tida como uma mancha na beleza da cidade, passa por uma transformação depois que o estado passou a combater o poder paralelo e onipresente dos chefes do tráfico de drogas e a violência, sua mazela maior, diminuiu. Morar nos morros da Zona Sul significa estar perto do trabalho e ter acesso a praias, ciclovias e mais formas de lazer. A infraestrutura, ainda deficiente, está sendo melhorada e ali, também, a renda cresce. “Favela existe em todo lugar, é uma adesão à vida urbana. Hoje em dia, tem valor mais positivo do que negativo”, diz Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio.

Na zona Norte, abandono – Infelizmente, este Rio sustentável vai se esgarçando até sumir completamente à medida que se segue em direção à Zona Norte e à Baixada Fluminense. A deterioração desta fatia da região metropolitana tem origem na década de 1960, quando o Rio deixou de ser a capital do país. O município passou por um processo de esvaziamento político e econômico, que se agravou vinte anos depois, quando o Brasil mergulhou numa crise financeira. O declínio atingiu a cidade inteira, mas marcou principalmente a periferia. Hoje, o Rio tem um entorno bem mais precário do que Belo Horizonte e São Paulo, por exemplo. São áreas com alto índice de pobreza, saneamento básico ínfimo, problemas constantes de alagamento, quase nenhuma área verde e temperaturas muito superiores às da Zona Sul. A falta de integração entre estes dois lados da metrópole acarreta consequências negativas para ambos, sendo uma delas justamente o histórico fracasso na despoluição da Baía da Guanabara. Se um dia, por obra divina, a cidade do Rio parasse de poluir a baía, outros quinze municípios na região metropolitana teriam que fazer o mesmo antes que se percebesse algum efeito. O governo estadual anuncia medidas para remediar o problema desde 1992, sem diminuir 1 milímetro de poluição – o esgoto de 8 milhões de pessoas sem saneamento básico continua a desaguar na Guanabara. “Não é possível pensar a sustentabilidade do Rio sem levar em conta que a cidade está no meio de uma região metropolitana particularmente pobre. Falta uma política mais abrangente que diminua esta fragmentação”, diz o sociólogo Luiz Cesar Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Na Barra, riqueza e desorganização – O terceiro eixo da urbanização do Rio, que não é nem sustentável nem carente, fica na Zona Oeste, sobretudo na Barra da Tijuca, uma área ocupada de forma desorganizada nas últimas quatro décadas. Trata-se da região da cidade que mais cresceu nos últimos anos, consumindo a mata nativa e criando grandes ocupações com pouca infraestrutura. “Nenhuma cidade consegue ser sustentável com este tipo de expansão predatória e sem limites”, diz o arquiteto Magalhães. O agravante da Barra da Tijuca e adjacências é o seu modelo de ocupação espalhada, centrada em condomínios recortados por grandes lotes. As casas ficam afastadas uma das outras e também das áreas de comércio e as famílias dependem do automóvel para tudo. Resultado: na Barra, o gasto de energia com transporte é, em média, o triplo do de Botafogo ou Copacabana. Para coletar o lixo na Zona Oeste, os caminhões da Companhia de Limpeza Urbana precisam rodar o dobro de quilômetros, a um custo 30% superior. Na prática, a cidade toda paga esta conta. O modelo de ocupação espalhada também encarece toda a infraestrutura de saneamento e transporte. “Ele precisa ser repensado. A cidade do futuro é mais compacta, com densidade populacional que otimize os investimentos públicos. É também a cidade que aproveita a infraestrutura que já existe, ao invés de se expandir indefinidamente”, diz o brasileiro Cláudio Acioly, coordenador do programa das Nações Unidas para o Direito à Habitação. Com um pé no futuro e outro atolado no descuido e na desorganização, o Rio precisa tomar as decisões que vão definir se embarca de vez ou se é atropelado pelo trem (elétrico, claro) da sustentabilidade.

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