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‘Precisamos de uma nova polícia’, diz sociólogo

Professor Claudio Beato defende mudanças estruturais na gestão da segurança

Por Fernando Mello
4 ago 2010, 15h22

“Precisamos de policiais com perfil diferente daquele de que dispomos no Brasil hoje. Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal, com habilidade para identificar padrões e analisar dados de diversas naturezas e serem capazes de incorporar esse conhecimento no planejamento e investigação policial”

O sociólogo Claudio Beato estuda o fenômeno da escalada da violência no país há mais de duas décadas. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comanda o Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública. Ele defende profundas reformas na gestão da segurança – o que, ressalta, implica necessariamente alterar a Constituição. “Hoje, somos obrigados a ter Polícia Militar e Civil. O resultado é que temos duas polícias que não somam uma e não dialogam”, diz. Para realizar a necessária reforma, o especialista diz que o governo federal precisa exercer uma posição de liderança, que incluiria mais investimentos em capacitação e inteligência. “Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal”, afirma, acrescentando que a legislação brasileira privilegia a impunidade. Confira a seguir a entrevista do sociólogo a VEJA.com.

O Brasil tem índices altos de homicídios, considerados endêmicos pela Organização Mundial de Saúde. Como o governo federal pode atuar para diminuir a violência no país?

De diversas maneiras. Em primeiro lugar, exercendo uma liderança estratégica nas mudanças políticas necessárias no sistema de Justiça e segurança. Um exemplo urgente: encampar reformas das polícias, o que implica mudanças constitucionais. Eu chamo de desconstitucionalização da segurança pública, porque é preciso tirar da Constituição o capítulo que trata das polícias. Hoje, somos obrigados a ter Polícia Militar e Civil. O resultado é que temos duas polícias que não somam uma e não dialogam. Isso foi resultado de um lobby na Constituinte de 1988 e que engessou a segurança pública. Essas mudanças também podem ocorrer pela indução de reformas institucionais e organizacionais nas polícias, sistema prisional e Justiça. Em segundo lugar, o governo federal tem capacidade de financiamento que pode suplementar recursos e induzir mudanças importantes nos estados e municípios. Também cabe a ele introduzir inteligência no sistema, através da organização de informações e análise de dados, bem como a utilização de tecnologias para o manejo de dados e preparo de profissionais de segurança pública aptos a esses novos modelos.

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O que falta no Brasil: policiais ou eficiência na investigação?

Precisamos de policiais com perfil diferente daquele de que dispomos no Brasil hoje. Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal, com habilidade para identificar padrões e analisar dados de diversas naturezas e serem capazes de incorporar esse conhecimento no planejamento e investigação policial. Nossas polícias são extremamente corporativas e ainda estão apegadas a orientações bacharelescas ou militarizadas. Pior: por determinação constitucional são divididas em duas, e com uma baixa propensão a compartilhar dados e informações. Isso termina comprometendo tanto a capacidade investigativa como o policiamento ostensivo. Outra questão fundamental é a formação de massa crítica em criminologia que vai estudar, mas também gerir projetos aplicados em segurança pública. Atualmente, o Brasil não dispõe de nenhum curso de mestrado ou doutorado para a formação específica em pesquisa e gestão da segurança pública. Os Estados Unidos têm mais de 50 cursos de doutorado e 150 de mestrado em criminal justice.

Que medidas deram certo em outros países e podem ser adaptadas para o Brasil?

Podemos começar com os processos de reengenharia institucional, tal como ocorreu nas polícias de Nova York ou Los Angeles, especialmente no preparo de profissionais que saibam gerir as ferramentas de análise e informação para fins de gestão e aferição de resultados das atividades policiais. Temos também projetos pontuais de controle de violência de gangues feitos anteriormente em Boston, ou o projeto atualmente desenvolvido pelas escolas de Chicago, onde são identificadas através de análise estatística as vítimas em potencial da violência, com o intuito de evitar que elas se tornem vítimas. É o uso de ciência para intervenção. Da Colômbia, especialmente em Bogotá, Medellín e Cali, podemos tomar os projetos sociais somados à reestruturação das polícias e reformas legislativas. A Polícia Nacional da Turquia está atualmente num processo de qualificação de seus policiais, mantendo mais de cem deles fazendo cursos de doutorados nos principais centros de criminologia do mundo.

Os jovens são a principal vítima da violência no país. Há dezenas de programas sociais, mas os resultados parecem ser tímidos. O que fazer especificamente para diminuir os homicídios?

Esses projetos padecem de falta de foco. Não existem jovens de 15 a 24 anos em abstrato. Eles residem em diferentes territórios nas cidades, podem estar envolvidos ou não com gangues, são usuários de drogas e em contato mais ou menos frequente com o sistema de Justiça e centros de internação ou prisões, frequentam ou não escolas, oriundos de famílias desestruturadas ou não e assim por diante. Cada situação requer programas e estratégias distintos. Existem exemplos dessa abordagem mais focada no Brasil. O mais estudado e avaliado deles é o Fica Vivo, em Minas Gerais, cujo objeto são jovens nessa faixa etária envolvidos com gangues em áreas de alto risco de homicídios.

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O Mapa da Violência aponta uma interiorização dos assassinatos no território brasileiro. Por que isso ocorre e como combater o problema?

Trata-se do mesmo processo que ocorreu nas grandes cidades e que agora desembarca nas cidades de porte médio. Tem a ver com processos de urbanização e exclusão espacial, no qual temos vastas áreas de informalidade e de desorganização social. Temos também a expansão do crack nas cidades médias e pequenas que se associa a esse crescimento. De qualquer maneira, a maior parte da criminalidade violenta se concentra nas áreas metropolitanas: 60% dos homicídios ocorrem nessas áreas.

A legislação brasileira privilegia a impunidade?

Sim. Mas não pelas penas aplicadas, que já são severas, mas pelo sem número de brechas, subterfúgios e postergações propiciadas pela legislação processual penal. Aliás, isso não ocorre apenas no Código de Processo Penal, mas no Código de Processo Civil também. Somados a outros aspectos que legislam sobre a fase propriamente policial, e que compõem a fase pré-processual, termina-se gerando uma boa parcela da impunidade brasileira.

Que exemplos de inteligência policial já são utilizados no país e o que falta fazer?

Existem vários exemplos, e o mais destacado deles em termos de inteligência estritamente policial está na Polícia Federal. Diversos estados têm investido na profissionalização de analistas criminais e na implementação de tecnologias de mapeamento de crimes e de organização de dados para a orientação do planejamento. São Paulo e Minas Gerais são os exemplos mais consolidados dessa tendência.

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Fechar os bares mais cedo é uma medida que ajuda a reduzir a violência?

Não existem muitas avaliações consistentes desse tipo de programa no Brasil. Em Bogotá, estima-se que isso contribuiu para a redução de cerca de 10% a 12% dos homicídio. Em Diadema (SP), houve também uma redução através do fechamento seletivo de bares em áreas de risco. De qualquer forma, em segurança pública não existem soluções miraculosas e únicas, porque os problemas são muito variados. Como o governo federal pode ajudar na implementação de polícias comunitárias? Policiamento comunitário pode ser uma orientação induzida pelo governo federal da mesma maneira como o governo Clinton fez nos Estados Unidos. Esse é um modelo que sucede o policiamento profissional que ainda está em curso em muitas polícias brasileiras. Trata-se de implantar uma nova forma de relacionamento da polícia com o público, algo que me parece estar na ordem do dia em muitos estados brasileiros.

Em São Paulo, a queda de criminalidade ocorreu simultaneamente ao aumento do número de presos e construção de cadeias. Prender mais ajuda ou as cadeias brasileiras apenas criam mais bandidos?

É evidente que o aumento da população prisional diminui o crime, e diversos estudos atestam isso. Mas a questão é o custo associado a esse processo. O custo econômico dos presos é muito alto, e se for menor de idade é ainda muito maior. Diversos estudos mostram que estratégias de prevenção e repressão, muitas vezes combinadas entre si, obtêm o mesmo grau de sucesso a um custo bem menor. Não significa que temos que abrir mão do sistema prisional, mas que podemos utilizá-lo de forma muito mais seletiva e racional, em combinação com outras formas de controle do crime.

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