Acusado de difundir calúnias contra o governo e classificado como “um dos líderes da esquerda no cinema”, sendo o que “mais atuava na campanha contra o país na Europa”, o cineasta Glauber Rocha foi alvo de espionagem e perseguição pela ditadura militar brasileira. Segundo a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, contudo, as intenções do regime eram ainda mais sombrias. Documentos encontrados no Arquivo Público do Estado contêm marcas que expressariam a intenção dos militares de eliminar o diretor.
“O dossiê contém a palavra ‘morto’ escrita a lápis no alto da primeira página”, diz Nadine Borges, presidente da comissão. “Recebemos a informação de um agente da repressão que era hábito escrever à mão um indicativo de ordem. Isso nos faz pensar que Glauber estava marcado para morrer. Por sorte, ele se exilou antes.” A presidente cobra que o general José Antonio Nogueira Belham, que assina um dos documentos, preste depoimento para esclarecer esse e outros casos.
No sábado, a Comissão Estadual da Verdade deu publicidade aos documentos produzidos pelas Forças Armadas contra o cineasta. A entrega do dossiê militar à família foi feita no Parque Lage, na zona sul do Rio de Janeiro, com uma série de atividades que marcaram os 50 anos do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, completados no último dia 10. Glauber morreu de septicemia em 1981.
Produzidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), os documentos compilam atividades do cineasta, declarações dadas a jornais internacionais e uma lista de artistas ligados a Glauber e que criticavam o regime militar, como o cineasta Luiz Carlos Barreto, apontado como “porta-voz da esquerda cinematográfica nacional”.
Um dos documentos lembra que Glauber foi preso por ter vaiado o presidente Castelo Branco em 1965 e acusa o diretor de ter “difundido calúnias” ao denunciar a jornais ingleses torturas e perseguições executadas pela ditadura no Brasil.
No dossiê, estão transcritos ainda trechos de artigos de Glauber. Entre eles, uma justificativa para sua atuação contra o regime. “O cinema não será para nós uma máscara, porque, o cinema não faz revolução – o cinema é um dos instrumentos revolucionários e para isto deve(-se) criar uma linguagem latino-americana, libertária e reveladora”, disse à revista Cine Cubano, em 1971.
O ator Othon Bastos, que interpretou um dos personagens principais do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, é mencionado no dossiê do SNI com o favorito de Glauber e citado por “conhecido envolvimento político e ideológico”. Presente ao evento na Comissão da Verdade, Bastos disse que ficou surpreso com a revelação. “Eu não sabia de nada”, disse.
Durante a divulgação dos documentos, o cineasta Zelito Viana, parceiro de Glauber no filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, que venceu o prêmio de melhor diretor no Festival de Cinema de Cannes, em 1969, e Terra em Transe, que concorrera no mesmo festival dois anos antes, lembra os tempos difíceis da ditadura. “Viver era arriscado no Brasil”, ressaltou. Ele levou Terra em Transe clandestinamente para participar do festival na França.
Amigo de Glauber, Silvio Tendler destacou que a perseguição ao diretor, que se exilou entre 1971 e 1976, e às pessoas que contestavam o regime prejudicou o Brasil. “Aliás, prejudicou os artistas, os estudantes, os sindicalistas. A ditadura foi um preço muito alto para a nação. Sou de uma geração que desaprendeu a falar e estamos aprendendo a falar depois de velhos. Antes, era tudo proibido”.
(Com Agência Brasil)