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Os bicheiros querem se livrar do Carnaval

Afastamento gradual dos 'patronos' põe as agremiações diante de um desafio impensável nas últimas décadas: viver sem o dinheiro da contravenção

Por Rafael Lemos
3 mar 2012, 17h34

A estratégia de sair de cena já foi testada por outro dirigente. O Capitão Guimarães, ex-presidente da Liesa, afastou-se do cargo em 2007, após ser preso na Operação Furacão, da Polícia Federal. Depois de solto, ainda voltou a ser preso em desdobramentos da mesma investigação, mas aos poucos foi sendo esquecido pela polícia

Ao longo de quatro décadas, o poder econômico dos bicheiros transformou o Carnaval carioca em uma festa chamada, no mundo do samba, de “o maior espetáculo da Terra”, hoje transmitido para todo o mundo. Nesse período, figuras como Castor de Andrade (Mocidade Independente de Padre Miguel), Anísio Abraão David (Beija-Flor) e Luiz Pacheco Drumond (Imperatriz Leopoldinense) conquistaram um prestígio social incontestável. Compraram apartamentos nos endereços mais caros do Rio de Janeiro, receberam e foram convidados para festas de socialites e empresários e foram tratados com deferência pelas autoridades. No ano passado, homenageado pela Beija-Flor, o rei Roberto Carlos não foi exceção a esse estranho arranjo, e posou feliz para fotos ao lado de Anísio.

Apesar do poder que acumularam e da influência que exercem, nem sempre às claras, o reinado dos capos da contravenção dá sinais de que chega a seu fim. Depois do desfile deste ano, o patrono da Beija-Flor, que está internado sob custódia em um hospital da zona Sul do Rio de Janeiro, decidiu se afastar da escola. A medida teria como objetivo tirá-lo do foco do noticiário, depois que mais uma grande e barulhenta operação policial voltou a pôr em evidência o patrimônio acumulado com a contravenção. “Dizem que o patrono não quer mais saber de samba, que cansou”, confirmou Laíla, diretor de Carnaval da Beija-Flor, durante a apuração no Sambódromo.

Para o bem do samba, espera-se que outros bicheiros sigam o exemplo de Anísio, em movimento incentivado também por uma postura mais firme do governo do estado contra a contravenção, depois de décadas de conivência institucional. O governador Sérgio Cabral disse, em entrevista no Sambódromo, que está na hora de as escolas terem independência financeira. A permanência dos bicheiros no comando das agremiações é, para Cabral, “a ilegalidade em cima da ilegalidade”.

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A estratégia de sair de cena já foi testada por outro dirigente. O Capitão Guimarães, ex-tenente do DOI-Codi e ex-presidente da Liesa, afastou-se do cargo em 2007, após ser preso na Operação Furacão, da Polícia Federal. Depois de solto, ainda voltou a ser preso em desdobramentos da mesma investigação, mas aos poucos foi sendo esquecido pela polícia.

Roberto Carlos e Anísio: simpatia é quase amor
Roberto Carlos e Anísio: simpatia é quase amor (VEJA)

Além de Anísio, a Operação Dedo de Deus tinha como alvos os presidentes da Grande Rio, Hélio de Oliveira, e da Imperatriz, Luiz Drumond. Os dois, no entanto, estão livres. Helinho conseguiu um habeas corpus, e Luizinho está foragido. No ano passado, o ex-presidente da Vila Isabel, Wilson Vieira Alves, o Moisés, foi condenado a 23 anos de prisão pelos crimes de contrabando, quadrilha e corrupção ativa.

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Ascensão e queda – As escolas de samba costumam sentir o baque da perda de seus bicheiros. Um exemplo desse efeito é a Mocidade, que nunca mais foi campeã após a morte de Castor de Andrade. Com o patrono, a escola conquistou os títulos de 1979,1985,1990, 1991 e 1996. Desde 2003, a agremiação de Padre Miguel não volta no Sábado das Campeãs. Recentemente, a família Andrade ensaiou uma volta à escola, com Rogério, sobrinho de Castor. No entanto, o patrono está foragido e, desde então, parou de ajudar a Mocidade.

O Salgueiro também sentiu a morte de seus patronos Miro Garcia e Maninho, no final de 2004. A escola ainda teve um bom desempenho no Carnaval de 2005, ficando em quinto lugar, mas quase foi rebaixada no ano seguinte, amargando a 11ª colocação.

Já a Beija-Flor, campeã em seis dos últimos 10 anos, tem enfrentado a forte concorrência da Unidos da Tijuca, uma agremiação sem patrono. Além do carnavalesco Paulo Barros, a Tijuca, campeã em 2012, tem como trunfo uma gestão empresarial, com departamento de marketing e captação de patrocínios. Este ano, estima-se que o vitorioso desfile da Tijuca tenha custado 10 milhões de reais, sem um centavo da contravenção. A folia ainda nem acabou, e a Comissão de Frente da escola já tem 30 shows agendados, para manter a máquina funcionando. Ainda é um exemplo isolado. Mas pode significar uma virada no Carnaval carioca, com escolas capazes de sobreviver sem a figura do bicheiro.

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O primeiro patrono – Nas décadas de 1940 e 50, o bicheiro Natal da Portela inaugurou a figura do patrono, destinando parte da fortuna obtida na contravenção para transformar a sua agremiação na maior de todas. Ganhou muitos campeonatos e prestígio na sociedade. Mais tarde, em busca da mesma legitimação, outros bicheiros se aproximaram das escolas de samba das suas áreas de atuação. Nos anos 1970, 80 e 90, figuras como Castor de Andrade (Mocidade Independente de Padre Miguel), Anísio Abraão David (Beija-Flor) e Luiz Pacheco Drumond (Imperatriz Leopoldinense) alçaram as escolas de samba a outro patamar. O poder econômico da contravenção levou luxo aos desfiles e agigantou a festa, que ganhou projeção internacional com o trabalho de artistas como Joãosinho Trinta, Max Lopes, Renato Lage e Rosa Magalhães.

“O processo começou nos anos 60, mas a década de 70 foi fundamental para o estabelecimento dessa relação. Um marco é o título da Beija-Flor em 1976, com o enredo Sonhar com rei dá leão, do carnavalesco Joãosinho Trinta”, explica o historiador Felipe Magalhães, pesquisador e autor do recém-lançado livro Ganhou, Leva! (editora FGV).

História – O jogo do bicho nasceu no Rio de Janeiro, precisamente no dia 3 de julho de 1892. É uma criação do Barão de Drummond, que fundara poucos anos antes o primeiro Jardim Zoológico da cidade, no bairro de Vila Isabel. Como estratégia para alavancar a receita do negócio, o empresário pleiteou, e conseguiu, uma licença da Câmara dos Vereadores para a exploração de apostas em jogos.

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A dinâmica era simples. O bilhete de entrada no Zoológico trazia a imagem de um animal, e dava direito a participar de um sorteio no fim do dia. Quem tivesse o bilhete do bicho sorteado ganhava como prêmio o valor do ingresso multiplicado por 20.

O historiador Felipe Magalhães conta que, desde o início, o jogo do bicho pulou os muros do zoológico, com a instalação de uma loja na Rua do Ouvidor, a mais movimentada da cidade. Ali, era possível comprar o bilhete e, consequentemente, participar do sorteio, sem sequer passar perto do zoológico. Ninguém sabe ao certo o motivo, mas o jogo do bicho caiu nas graças do povo e fez um sucesso estrondoso. Em pouco tempo, o Barão perdeu o monopólio do jogo, que passou a ter bilhetes vendidos também por terceiros.

“No final do século XIX, as apostas faziam parte da rotina no Rio de Janeiro. Apostava-se em tudo: remo, turfe, boliche, corrida… Havia um grande número de loterias espalhadas pela cidade, entre legais e ilegais. As legais eram as que pagavam a taxa para a prefeitura”, explica.

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O jogo do bicho, no entanto, logo passou a ser mal visto. Em 1895, veio a primeira proibição. O zoológico acabou falindo. “Vila Isabel foi o primeiro bairro planejado do Brasil. Era um projeto modernizador, inspirado em Paris. Nesse contexto, o zoológico foi pensado como um espaço de diversão, útil e agradável. Com o jogo, acabou sendo visto como um antro de vício e sendo o símbolo do fracasso de um projeto civilizador”, analisa Magalhães.

Só em 1940 o jogo entrou no Código Penal como contravenção – condição em que permanece até os dias de hoje. A justificativa de tal classificação é a de que este seria “um crime menor”, no qual seria determinante a conivência da vítima. A atuação dos contraventores, no entanto, sempre foi muito além da ilegalidade nas apostas, e a perpetuação do poder se dá também com crimes como homicídios, ameaças e a conexões com quadrilhas de outras áreas de atuação.

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