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Governo do Acre expõe haitianos a riscos no Brasil

Falta de uma política direcionada a receber fluxos imigratórios, como o do país caribenho, coloca centenas de haitianos em situação de risco no Brasil

Por Mariana Zylberkan
4 Maio 2014, 09h13

Há três semanas, uma igreja no bairro do Glicério, no Centro de São Paulo, abriga cerca de 700 haitianos que deixaram a cidade de Brasileia (AC), na fronteira brasileira com o Peru, e foram despachados para a capital paulista em ônibus fretados pelo governo acriano. A chegada dos haitianos pegou de surpresa os governos estadual e municipal. E agora há sinais perigosos. Nesta semana, o Ministério do Trabalho recebeu a primeira denúncia de que um grupo de haitianos recém-chegados à capital paulista foi aliciado para trabalho escravo. Além disso, a secretaria estadual de Justiça aumentou o policiamento na região do abrigo após alerta de que imigrantes poderiam ser cooptados para o tráfico de drogas.

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Não bastasse a imprudência de embarcar haitianos rumo a outros Estados do país – foram 42 ônibus em abril para diferentes regiões -, os representantes do governo Tião Viana (PT) chegaram a acusar o governo paulista e a prefeitura de São Paulo de preconceito por se tratar de grupos de negros pobres. Uma grosseria de um governo incapaz de lidar com um problema que bate à sua porta. Mas a inépcia política acriana também não anula o fato de que caberia ao governo federal, antes de qualquer outra instância do poder público, assumir sua responsabilidade e prestar ajuda um dos estados mais carentes da federação e porta natural para esses imigrantes.

Até agora, o governo federal só rompe o silêncio sobre o caso para informar que, nos últimos três anos, repassou 4,2 milhões de reais para o abrigo improvisado na Brasileia – 161 reais para cada um dos 26.000 haitianos que cruzou a fronteira após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010.

Em São Paulo, sem dinheiro, documentos nem domínio da língua portuguesa, os haitianos passam o dia no pátio em frente à igreja à espera de empresários com propostas de emprego. Um grupo de voluntários se esforça para tentar ajudar os imigrantes do país caribenho, que falam francês e a crioulo – uma minoria que trabalhou na República Dominicana arranha o espanhol. Nos primeiros dias, a alimentação foi oferecida apenas uma vez ao dia por meio de doações. Depois, o governo de São Paulo disponibilizou almoço nas unidades do Bom Prato. Além da paróquia do Glicério, uma igreja de Tucuruvi, na Zona Norte, também ofereceu abrigo a 45 pessoas. O objetivo de todos os haitianos é o mesmo: tirar a carteira de trabalho no Brasil.

Com o documento em mãos, é possível a saída do abrigo para alojamentos oferecidos por empresas da construção civil. Na última semana, um mutirão do Ministério do Trabalho emitiu mais de 300 carteiras de trabalho, quase o equivalente ao total de carteiras emitidas em todo o úlitmo ano aos haitianos no Estado de São Paulo. Segundo o Ministério da Justiça, em 2013, foram emitidos 2.072 vistos humanitários a haitianos, número que cresceu neste ano ao ritmo de 40 emissões por dia.

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A improvisação, porém, evidencia o despreparo da administração pública para lidar com o intenso fluxo migratório que atravessa a fronteira para o Brasil; e a situação tende a piorar com a presença cada vez maior de estrangeiros no Brasil. Estima-se que pelo menos 50 pessoas, vindas principalmente do Haiti, Senegal e da República Dominicana, chegam ao norte do país diariamente. Trâmites básicos da imigração, como a emissão do protocolo de entrada no país pela Polícia Federal, levam meses para ser concluídos. No alojamento da Missão Paz, no Glicério, 40 haitianos não têm o documento e cabe ao padre Paolo Parise, que coordena a missão, pressionar a PF para que eles não sejam relegados ao limbo burocrático. “É preciso uma estrutura permanente. A resposta que temos do governo é muito lenta”, diz.

Abrigo – Além da burocracia, os imigrantes sofrem com a ausência de um abrigo público. Oferecer alojamento a imigrantes recém-chegados a São Paulo é obrigação da prefeitura. Em 2001, foi publicado um decreto à lei municipal que determina a política de atendimento a moradores de rua, no qual as vagas em alojamentos também devem ser destinadas a imigrantes recém-chegados, mulheres vítima de violência e pessoas despejadas. Em todas as situações, a administração municipal é obrigada a disponibilizar alojamento com capacidade máxima para cem pessoas, equipado com condições de pernoite, higiene pessoal, lavanderia e depósito.

Alguns haitianos chegaram a ser encaminhados para centros de acolhida para moradores de rua, mas voltaram rapidamente à igreja Nossa Senhora da Paz após terem sido roubados. A Missão Paz chegou a sugerir que a prefeitura cedesse 300 vagas disponíveis em um alojamento localizado no bairro do Bom Retiro, o Complexo Prates. O local, entretanto, não funciona à noite e, por isso, não pode receber os imigrantes.

Diante desse cenário, os imigrantes haitianos se tornam vítimas de toda sorte de perigos. “O Estado não está preparado para uma crise imigratória como essa. O risco de serem aliciados para o trabalho escravo é grande e, infelizmente, apenas um dos muitos que correm”, diz Luiz Antônio de Medeiros Neto, superintendente regional do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo.

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A ameaça se materializou na última segunda-feira, quando um ônibus parou em frente à igreja Nossa Senhora da Paz e embarcou um grupo de vinte haitianos com a promessa de trabalho em uma fazenda na cidade de Lajes (SC) – em condições irregulares. O caso é investigado pelo Ministério do Trabalho.

O episódio não foi o primeiro envolvendo imigrantes haitianos em condições análogas à escravidão no Brasil. Em novembro do ano passado, a Polícia Federal flagrou 160 trabalhadores em condições degradantes – 100 deles haitianos – em uma obra da construtora Diedro, em Conceição do Mato Dentro (MG). Também no ano passado, 21 haitianos foram encontrados por fiscais do trabalho em Cuiabá (MT) acomodados em condição análoga à escravidão numa obra do programa federal Minha Casa, Minha Vida.

Ajuda – No Brasil, os imigrantes haitianos recorrem aos conterrâneos como a única ajuda real quando chegam ao Brasil. Pierre Benoit, de 28 anos, vai diariamente à igreja no Glicério para procurar conhecidos oriundos de sua cidade, Gonaives. Há um ano no Brasil – sete meses em São Paulo -, ele já alojou cinco conterrâneos em sua casa no bairro do Campo Limpo, onde vive com a mulher. O filho do casal, de nove anos, ficou no país natal com sua sogra. “Ninguém explica como as coisas funcionam, quero retribuir a ajuda que tive quando cheguei.”

Na última quarta-feira, Benoit foi escalado pelo Ministério do Trabalho para ajudar na tradução durante a emissão das carteiras de trabalho. Ele está desempregado depois de deixar o trabalho como auxiliar de pedreiro em uma obra que, segundo ele, não lhe pagava corretamente. Antes disso, ele e a mulher passaram três meses em Santa Catarina, onde ganhava 1.150 reais por mês, como auxiliar de produção. “Lá faz muito frio, por isso vim para São Paulo.”

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Benoit carrega uma pasta azul com três certificados de cursos profissionalizantes feitos em São Paulo: auxiliar de pedreiro, azulejista e segurança. “Desses todos, eu prefiro ser segurança. É um trabalho menos pesado.”

A mesma pasta colorida não sai das mãos de Ronald Balame, de 26 anos, recém-chegado do Acre. Ele carrega a carteira de trabalho e pede emprego a qualquer pessoa que se aproxime. “No Haiti, disseram que eu tinha direito de vir para o Brasil para trabalhar, mas ao chegar aqui, me sinto perdido e maltratado”, afirmou. Ele diz ter passado fome na viagem até São Paulo – passou mais de 48 horas a bordo de um ônibus à base de água. A mesma reclamação é repetida por muitos haitianos abrigados na igreja.

Balame quer trabalhar e sonha se formar engenheiro – ou, num projeto mais a curto prazo, completar cinco reais em moedas para telefonar para a família no Haiti. “Faz mais de duas semanas que não dou notícias, eles devem estar preocupados”, disse, com pouco mais de cinquenta centavos nas mãos.

Porta de entrada – De acordo com a secretaria de Desenvolvimento Social do Acre, o envio de haitianos às regiões Sul e Sudeste do país visa diminuir o número de imigrantes no Estado para agilizar a documentação dos que chegam diariamente. Segundo o secretário de Justiça do Acre, Nilson Mourão, a decisão do governo de assumir apenas o papel de receber e registrar a entrada dos haitianos no Brasil será mantida. “A maioria não quer ficar no Acre, então vamos ajudá-los a seguir até o seu destino final”, disse. “Assim que conseguimos documentar 45 haitianos, lotamos um ônibus e eles seguem viagem.”

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Sem saneamento básico adequado e com capacidade para receber 400 pessoas – a lotação constantemente chega a 2.500 -, o abrigo da Brasileia foi fechado no mês passado por causa da cheia do rio Madeira. Com a rodovia BR-364 bloqueada, os imigrantes não conseguiam deixar o local em busca de emprego. Diante disso, o governo estadual usou os aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) que transportaram mantimentos a Brasileia para levar os imigrantes até Porto Velho (RO), de onde foram despachados em ônibus até São Paulo.

De acordo com Mourão, os imigrantes preenchem um cadastro quando chegam ao Brasil. Como a maioria demonstra interesse em seguir para Santa Catarina e Paraná, o governo acriano os envia para a rodoviária da Barra Funda, em São Paulo. Detalhe: para o governo do Acre, os haitianos devem seguir da rodoviária paulista para os outros Estados com recursos próprios. “Eles chegam aqui com o endereço escrito em um pedaço de papel”, diz o padre Paolo Parise.

A crise provocada pela cheia do rio Madeira foi uma forma oportunista usada pelo governo do Acre para transferir os haitianos da pequena Brasileia, com cerca de 20.000 habitantes. Ao mesmo tempo em que declarou situação de calamidade pública no Estado, o governo Tião Viana (PT) procurou o padre Paolo Parise da Missão Paz. “Dias depois, já havia dezenas de pessoas batendo em nossa porta”, diz Parise.

Atualmente, o Acre abriga cerca de 273 haitianos em um novo alojamento aberto no Parque de Exposições de Rio Branco. O local, porém, deverá ser desocupado até o fim de maio, quando começam os preparativos para a feira Expoacre. Não é difícil imaginar qual será o destino desses 273 imigrantes nos próximos dias.

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