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Bairros destruídos pela chuva cresceram sobre riachos

Ocupação de margens e encostas ocorre sem controle do município. Presidente do Clube de Engenharia defende ciração de órgão federal de geotecnia

Por João Marcello Erthal e Cecília Ritto
16 jan 2011, 06h09

“O riacho não chegava a um metro e meio de largura, um palmo de água. Ninguém dava importância a ele. Nunca respeitaram o os 30 metros de cada lado que a lei determina”, diz a promotora Anaiza Helena

Nenhuma cidade do mundo está preparada para resistir à chuva de um mês inteiro em apenas cinco horas – como ocorreu na madrugada de quarta-feira na Região Serrana do Rio de Janeiro. A análise detalhada dos pontos com maior concentração de vítimas e estragos, no entanto, conduz – tardiamente – a uma reflexão necessária sobre a forma como as cidades, particularmente as serranas, ocupam áreas de encosta e margens de rios. As três áreas que registraram mais mortes e destruição em Teresópolis coincidem com três córregos que, fora da época das chuvas, não chegam a um metro e meio de largura e com no máximo um palmo de profundidade.

As calhas de tamanho desprezível do Córrego do Príncipe, no bairro da Posse; do Santa Rita, no bairro de mesmo nome; e do Triunfo, no Caleme, transformaram-se, na madrugada de quarta-feira, em corredeira de mais de 20 metros de largura, com pedras, lama e escombros de casas, carros e móveis. Quem conheceu os três bairros nas últimas duas décadas, com prédios, comércio e ruas asfaltadas, sequer sabia da existência dos cursos d’água. Nascida e criada em Teresópolis, e há 10 anos envolvida com as questões ambientais da cidade, a promotora da Justiça Anaiza Helena Malhardes Miranda refaz, de cabeça, a história da ocupação dessas áreas ao longo dos últimos 50 anos. “No Caleme, onde ocorreu a primeira das três grandes cabeças d’água que devastaram Teresópolis, havia uma área de grande beleza natural. Ali ficava uma das fazendas da família Guinle, onde nas décadas de 20 e 30, foi construída a barragem do Triunfo (nome do córrego). Mais recentemente, a área foi sendo vendida e loteada, mas sem projeto aprovado pela prefeitura. O resultado foi o surgimento de construções sobre as margens do rio, sem que o poder público tivesse controle ou mesmo conhecimento”, alerta Anaiza.

A ocupação dessa parte do Caleme é alvo de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público de Teresópolis. “O riacho não chegava a um metro e meio de largura, um palmo de água. Ninguém dava importância a ele. Nunca respeitaram o os 30 metros de cada lado que a lei determina. Antes de 1986, essa exigência era de cinco metros, mas nem essa distância foi preservada”, relata a promotora.

No bairro Santa Rita, lembra Anaiza, surgiu há alguns anos um assentamento do INCRA, também sem o necessário planejamento para construção sobre uma área às margens de um rio. Além das construções, até bem pouco tempo era explorada, no local, a extração clandestina de granito, alterando as características naturais do curso d’água.

A cidade também avançou sobre o Córrego do Príncipe, no bairro da Posse – onde hoje se vê uma imensa concentração de pedras e a terra escavada pela força da água. “O que se vê nesses locais é que a cidade ocupou o grotão, ignorando que essa é a região por onde a água vai escoar em uma grande chuva”, diz Anaiza. “O que observamos é que sobre esses três riachos surgiram as três cabeças d’água que foram desaguar no Rio Paquequer. É esse o Rio que vai chegar a São José do Vale do Rio Preto, onde se viu a correnteza com uma força descomunal arrastar casas inteiras”, explica.

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Matilde Feo, na encosta onde construiu sua casa e de onde tirava o sustento, com aluguel de cômodos: primeira construção foi autorizada, as expansões, não
Matilde Feo, na encosta onde construiu sua casa e de onde tirava o sustento, com aluguel de cômodos: primeira construção foi autorizada, as expansões, não (VEJA)

Acúmulo – As condições climáticas que antecederam o desastre também precisam ser levadas em conta. Teresópolis teve chuva intermitente praticamente ao longo de todo o mês de dezembro. Esse acúmulo de líquido, em um solo raso, com finas camadas de terra sobre rocha, pode ter elevado muito o nível dos lençóis freáticos. O resultado dessa elevação é que muito rapidamente os terrenos inclinados atingem sua capacidade máxima de reter a água e, em seguida, começam a rolar montanha abaixo.

A violência de um deslizamento dessas proporções é tanta que mal dá tempo de a população perceber que a avalanche está se formando. Matilde Rodrigues Feo, 53 anos, toma remédios para dormir. Ela só acordou quando sua casa já tinha sido atropelada pela montanha de lama e pedras que desceram da localidade de Fransico Mendes, próximo a Santa Rita, em Teresópolis. Quem a salvou da morte foi um homem que conseguiu escavar a parede e uma camada de terra. Morando na casa de uma amiga, ela se assusta com os vizinhos que insistem em permanecer, mesmo depois da tragédia, morando nos barrancos em casas penduradas – ou no que sobrou delas.

“Ninguém está acreditando no azar. Deus está mostrando perigo e as pessoas não estão querendo acreditar. Não tenho mais coragem de construir aqui”, diz, depois de perder a casa e os cômodos que garantiam seu sustento, com a cobrança de aluguel.

Quando chegou a essa parte da cidade, Matilde era criança e viveu com os pais em uma casa de pau a pique. Com o tempo, melhorou de vida e ampliou a construção, com tijolos e cimento. A primeira casa, conta ela, foi autorizada pela prefeitura. As demais, não. “Vivia dessas casas. Agora, não tenho renda”, afirma, enquanto recolhe tudo o que sobrou da casa: dois tapetes sujos de lama.

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Matilde se enquadra em um incontável contingente que, com a melhoria de vida, resolveu como pôde suas demandas de moradia e renda. E essa é uma questão que, no Brasil, mesmo com o crescimento econômico, as políticas públicas não conseguiram resolver. O presidente do Clube de Engenharia do Rio, Francis Bogossian, afirma que as prefeituras não têm dinheiro nem condições para manter engenheiros e geólogos a serviço permanente da cidade. Em 2005, a instituição enviou uma carta à então governadora Rosinha Garotinha e ao Márcio Fortes, ex-ministro das Cidades, sugerindo a criação de um órgão federal nos moldes do Instituto de Geotécnica do Município do Rio (Geo-Rio). Algumas de suas funções na cidade do Rio são mapear áreas de risco e fazer contenção de encostas.

O órgão, então, abrigaria um grupo de engenheiros e geólogos para mapear todos os lugares arriscados de se morar e, em seguida, analisar caso a caso. De acordo com Bogossian, não há estudos feitos na região serrana, por exemplo, assim como em muitas outras cidades. “A maioria não tem mapeamento e nem órgão que cuide desse problema de enchentes e estabilidade de encostas”, diz o presidente do Clube de Engenharia do Rio.

Por isso, Bogossian lembra a importância de se traçar estratégias antes de se reconstruir as cidades. O primeiro passo é detalhar cada região da cidade. Depois, cuidar das encostas. O “tratamento passivo”- nomenclatura de engenheiros- já deveria ter sido feito há tempos na região serrana, uma vez que suaviza a encosta, cria drenagens e, quando possível, faz uma proteção superficial, como com a colocação de grama. É um método preventivo que serve, sobretudo, em locais que não foram habitados.

Já o “tratamento ativo” é feito quando a área está com a iminência de sofrer deslizamentos- como a maior parte da região serrana. Nesse caso, os lugares devem ser estabilizados e obras de contenção e de drenagem têm de ser feitas. O “tratamento passivo” custa menos de 10% do que o “tratamento ativo”. É o preço que se paga – caso isso seja feito – pela falta de prevenção.

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