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Da Cracolândia para a barbárie no Piauí

Traficante apontado como mentor do estupro coletivo de quatro meninas tem longa ficha criminal. Mas estava fora da cadeia graças a benefícios judiciais

Por Felipe Frazão 13 jun 2015, 11h46

Cinco dias antes de estuprar e tentar matar quatro adolescentes em Castelo do Piauí, uma pequena e pobre cidade a 180 quilômetros de Teresina, Adão José Silva Souza, de 39 anos, atirou contra uma gerente de posto de gasolina de quem roubou 3.000 reais. Embora ele fosse procurado pelo assalto, a polícia não o capturou a tempo de evitar que – ao lado de quatro menores – acrescentasse à longa lista de crimes a barbárie contra as jovens na tarde de 27 de maio: as meninas foram estupradas, agredidas, jogadas de uma altura de oito metros e apedrejadas. Uma das vítimas morreu dias depois, no hospital. Outras duas tiveram alta e uma permanece internada em estado grave. Natural de Castelo, o traficante deu início à carreira criminosa em São Paulo, na Cracolândia. Ele voltou à cidade natal há dois meses, justamente quando cumpria pena de reclusão em regime aberto – e deixou o Estado sem autorização da Justiça.

Vídeo: menor detalha estupro de meninas no Piauí

Dois dias após o crime que chocou o país e levou a ONU a fazer uma cobrança pública de punição aos agressores, Souza foi detido em Campo Maior, cidade vizinha a Castelo. Usava a identidade falsa de Marcos Jones, um mendigo. “Não tive nada a ver com o estupro”, afirmou na ocasião. Ele contou à polícia que se escondeu no matagal e deixou Castelo de moto-táxi no sábado anterior, logo após assaltar a gerente de um posto de gasolina, que ficou baleada. Contou ainda que gastou os 3.000 reais roubados em uma noite no prostíbulo “A casa das sete mulheres”.

Souza foi indiciado e deve ser denunciado na segunda-feira pelo Ministério Público por corrupção de menores, associação criminosa, estupro, homicídio consumado, três tentativas de homicídio e porte ilegal de arma. Pela série de crimes cometidos no mês passado, as penas somadas podem chegar 165 anos e dez meses de prisão, conforme cálculo do promotor de Justiça Cezário Cavalcante Neto.

Em 31 de maio, o juiz Leonardo Brasileiro havia expedido um mandado de prisão preventiva contra o traficante “apenas para fim de permanência do preso na prisão”. O cuidado se explica não apenas pela monstruosidade cometida no Piauí, mas pelo histórico de Souza. Traficante, ele morou e fez carreira no crime em São Paulo. Já respondeu a processos por roubo e homicídio. Ao falar de sua vida, o bandido semianalfabeto revelou que conheceu “os irmãos do PCC” na cadeia e que trouxe de São Paulo 200 gramas de maconha e crack para montar uma boca de fumo em Castelo do Piauí. O pai dele mora em uma casa simples na periferia da cidade, próximo ao Morro do Garrote, local dos estupros.

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Ficha corrida – Os registros da Secretaria de Administração Penitenciária mostram que Souza fez um périplo por ao menos dez cadeias diferentes em São Paulo: as penitenciárias de Tremembé I e Franco da Rocha I, os Centros de Detenção Provisória (CDPs) de Franco da Rocha, Pinheiros III, o Centro de Progressão Penitenciária de Valparaíso, a Penitenciária de Lucélia, o CDP de Pinheiros I, a Penitenciária de Lavínia I, o CDP de Suzano e o Centro de Progressão Penitenciária.

Em outubro de 2002, a Justiça paulista o condenou a três anos de prisão em regime integralmente fechado e ao pagamento de cinquenta dias de multa por tráfico de drogas. Em maio de 2005, foi condenado mais uma vez, agora por porte ilegal de arma. Souza já cumpria pena em regime semiaberto quando, em 22 de dezembro de 2006, ganhou o benefício da saída temporária, o ‘saidão’ de Natal e Ano Novo, mas não voltou para a cadeia.

Ele foi novamente preso em flagrante por tráfico de drogas no dia 28 de dezembro daquele ano, em um conhecido ponto de tráfico paulistano: a Cracolândia. Souza traficava 45 pedras de crack quando foi abordado por policias militares. Em uma das decadentes hospedarias da Cracolândia, na Rua General Osório, ele escondia mais dez trouxinhas de maconha e outras quinze pedras de crack. Apontado como seu comparsa, o traficante Jonathan Eufrasino da Silva tentava vender mais 43 pedras de crack e sete papelotes de cocaína. Condenado anteriormente por roubo, ele também gozava de uma saída temporária.

Em setembro do ano seguinte, Souza receberia sua maior pena: dez anos, dez meses e vinte dias de reclusão em regime fechado e mais 1 399 dias-multa por tráfico de drogas e associação para o tráfico com Silva. Mas o traficante jamais chegaria a cumprir todo o prazo. Com auxílio da Defensoria Pública, Souza e o comparsa Silva apelaram da condenação: negaram os crimes, disseram que o flagrante havia sido forjado pela PMs e que não se conheciam. Souza revelou ser usuário de droga e alegou que seguia para o hotel na Cracolândia acompanhado de uma garota de programa. Silva afirmou que tentava apenas comprar drogas para consumo próprio.

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Os criminosos convenceram os desembargadores da 16ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo a livrá-los da pena por associação criminosa. “Não há nos autos um único elemento de prova a evidenciar que os réus se associaram para traficar entorpecentes. Foram presos, é verdade, em poder de drogas, inclusive no mesmo lugar, mas negaram se conhecer e nenhuma outra testemunha foi ouvida no sentido de que agiam unidos a fim de explorar o comércio de entorpecentes”, votou o relator, desembargador Otávio de Almeida Toledo.

Em setembro de 2009, a pena de Souza caiu para seis anos, nove meses e vinte dias de prisão, além de 583 dias-multa.

Fuga – Ele teve ainda mais dois recursos julgados favoravelmente na 16ª Câmara Criminal, ambos relatados pelo desembargador Otávio de Almeida Toledo. Os acórdãos do TJ-SP retiraram de sua ficha penitenciária duas anotações de falta grave – as infrações disciplinares no prontuário provocariam a perda de benefícios como dias de pena abatidos e poderiam atrasar a saída dele do cárcere. Os desembargadores decidiram não puni-lo em duas ocasiões: primeiro, por não ter retornado ao presídio após o saidão do Natal de 2006, quando foi preso em flagrante na Cracolândia; depois, decidiram inocentá-lo de participação em uma tentativa de fuga do Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha (SP).

Em julho de 2013, ele deixou o sistema carcerário para cumprir reclusão em regime aberto domiciliar, concedido quando não existe casa do albergado para que o condenado se recolha à noite. Há cerca de dois meses, deixou o Estado sem permissão da Justiça. Era o início de uma viagem que custaria a vida de uma jovem e marcaria de terror para sempre a vida de outras três.

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