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Crianças no crime

VEJA analisou todas as mortes de menores de até 14 anos pela polícia de São Paulo desde 2010 e descobriu um padrão de fuga, confronto e tragédia

Por Pieter Zalis 3 jul 2016, 10h02

As mortes de dois meninos, um de dez e outro de onze anos, em perseguições policiais jogaram luz sobre o envolvimento de garotos ainda pré-adolescentes com o crime. Nos dois casos, eles fugiam em carros roubados e desobedeceram à ordem dos policiais de parar. Essa é a parte incontestável. O que aconteceu daí em diante também toca em outro ponto relevante, o da abordagem policial. Os policiais militares que mataram Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, afirmam que ele atirou de dentro do carro enquanto dirigia. O guarda civil metropolitano que matou Waldik Gabriel Silva Chagas, de 11, também diz que ele atirou. As investigações estão em andamento.

Desde 2010, nove garotos de até 14 anos foram mortos pela polícia, além de Ítalo e Waldik. VEJA analisou um a um os boletins de ocorrência desses casos e constatou que, longe de ser uma exceção, o que aconteceu nesses casos é a regra. Os depoimentos prestados pelos policiais repetem um padrão. Durante suas atividades de ronda, ou até fora do expediente, eles se depararam com uma cena suspeita e dão o comando de parada, que nunca é respondido. Os criminosos, dizem os BOs, sempre tentam fugir, atirando ou ameaçando policiais. A reação é o revide, que tem como consequência a morte dos garotos.

Desses nove casos, em apenas um os policiais foram denunciados pelo Ministério Público (veja abaixo), por homicídio qualificado – dois policiais perseguiram e mataram um garoto de 14 anos, que tinha apenas uma pistola falsa. Outros quatro incidentes foram arquivados. Um ainda segue nas mãos da polícia, em fase de diligências, e outros três foram juntados a processos criminais que já tramitam na Justiça, mas ainda não tiveram uma decisão.

Segundo a Ouvidoria da Polícia Militar, boa parte das incertezas e diferentes versões que ocorrem durante as investigações poderia ser resolvido com a presença de câmaras em viaturas. Experiências passadas mostram que a técnica pode dar certo. Cientistas do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge que acompanharam por doze meses um grupo de policiais na cidade de Rialto, Califórnia, constataram que o uso de câmeras presas ao corpo dos policiais, por exemplo, reduziu em 50% os casos de violência por parte da tropa. As reclamações da população sobre a corporação tiveram uma queda ainda maior: 90% em relação ao ano anterior. “Também apoiamos avaliações psicológicas anuais e a restauração da Comissão da Letalidade, que até 2005 investigava mortos pela polícia. Casos como desses menores são simplesmente inaceitáveis”, afirma o ouvidor, Julio Cesar Neves.

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A socióloga Tania Pinc, especialista em estudos de abordagem policial e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, completa: “Há protocolos criados pela polícia de São Paulo para garantir a sobrevivência do policial e do suspeito, além de fazer com que o uso de arma de fogo seja apenas o último recurso. Mas o que se observa na prática é a existência de uma lacuna na implementação destas instruções”.

O detalhamento de dois casos ocorridos nos anos de 2012 e 2014 e que já possuem investigações mais avançadas (leia abaixo) mostram que as histórias de Ítalo e Waldik são apenas a faceta mais conhecida de uma realidade diária que expõe duas mazelas tipicamente brasileiras: a da infância que entra prematuramente no crime e a da polícia mal treinada.

Victor Fernandez Ferraz, 14 anos, foi morto pela polícia enquanto fugia armado
Victor Fernandez Ferraz, 14 anos, foi morto pela polícia enquanto fugia armado (VEJA)
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Victor Fernandez Ferraz, 14 anos – Victor Fernandez Ferraz, de 14 anos, era fanático por futebol. Na noite de sábado de 14 de abril de 2012, ele e seu primo C.C., de 12 anos, passaram na casa do pai de Victor, após uma partida em um dos campos do bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo. O relógio já passava das 22h30 e apenas a avó de Victor estava em casa.

Em depoimento ao Ministério Público, o pai afirmou que seu filho teria ido à sua casa apenas para pegar a arma: uma pistola calibre 0.76, que ficava escondida em caixas de sapato. O pai não sabia que o filho sabia da arma. Ele também afirmou que amigos relataram que Victor tinha se envolvido numa briga com colegas da escola e queria usar a arma para assustá-los.

A arma nem chegou a ser apresentada aos brigões da classe. Na mesma noite de sábado, caminhando pela Avenida Mateo Bei, em São Mateus, Victor e C.C. se depararam com dois policiais militares, os soldados Mazzei e Watanabe. Assustado por estar com uma arma, Victor tentou fugir rumo à avenida Rio das Pedras, enquanto seu primo desarmado ficou parado.

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Os policiais, que ainda estavam no veículo, alcançaram Victor. Segundo testemunhas, ele mantinha o braço direito colado ao corpo, como se estivesse atento à posição da arma do pai, que carregava no corpo.

O soldado Mazzei teria dado voz de parada. A reação do menor foi apontar a arma na direção do policial, sem realizar um disparo e seguir fugindo.

Mazzei reagiu com dois disparos, que não atingiram Victor. Como a perseguição continuou, ele teria dito “larga a arma!” antes de voltar a atirar. Os últimos dois tiros acertaram a escápula direita e a coxa direita de Victor. Victor ainda foi levado com vida, mas morreu no Hospital São Matheus.

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Segundo depoimento de familiares, ele jamais havia cometido crimes ou se envolvido com drogas. Era apontado como um bom aluno e excelente filho. Apesar de estarem separados há dois e meio, os pais se davam bem e a família era estruturada.

O primo C.C., em depoimento, admitiu que Victor tinha fascínio por armas. No celular apreendido pela polícia no dia de sua morte, foram encontradas diversas imagens com ele portanto pistolas sozinho e ao lado de amigos. O inquérito policial concluiu que os soldados agiram em legitima defesa. O Ministério Público acatou o pedido, e o processo contra os policiais foi arquivado.

Rodrigo Martins Siqueira, 13 anos – Passava de 4:40 do dia 29 de novembro de 2014. Os policias militares Xavier e Quirino, em ronda, avistaram dois rapazes, de saída de um baile funk, trafegando em uma moto no sentido contrário da avenida Dom Rodrigo Sanches, no bairro Parque do Engenho, zona sul de São Paulo. Eles iam em direção a um posto de gasolina e estavam sem capacete. Os policiais fizeram o retorno e começaram a acompanhar os dois jovens.

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O primeiro sinal suspeito veio, segundo relato do soldado Quirino no boletim de ocorrência, do rapaz da garupa: Rodrigo Martins Siqueira, de 13 anos, que sinalizou ao condutor Alisson Ribeiro de Oliveira, também de 13, para acelerar a moto. Rodrigo vestia camisa vermelha, calça de moletom cinza e blusa branca, da mesma cor do tênis.

O soldado Xavier emitiu, então, ordem pela parada do veículo suspeito, o que não ocorreu. A única resposta veio de Alisson que, enquanto conduzia a moto, sacou sua arma e disparou contra o soldado Quirino, sem acertá-lo. Como reação, o policial Xavier atirou contra a moto, fazendo-a cair.

Já sem poder da moto, Alisson aproveitou a escuridão da via e conseguiu fugir pelas vielas do bairro. Rodrigo não e acabou pego pela polícia. Em relato ao Ministério Público, Alisson disse ter ouvido nesse momento Rodrigo pedir clemênica pela vida: “Pelo amor de Deus, senhor!”.

Rodrigo foi encontrado morto com cinco tiros no tórax e outro no rosto. As alegações da polícia, no boletim de ocorrência, de que Rodrigo portava drogas – cocaína e lança-perfume – não foram confirmadas pela perícia. Também foi encontrada uma arma falsa com Rodrigo.

Pelos fatos até agora apurados, o Ministério Público denunciou os dois policias pelo crime de homicídio qualificado, sob a justificativa da superioridade numérica de dois policiais contra Rodrigo e pelo fato de o não carregar uma arma. Com isso, alega o MP, ele não representava risco a vida dos policiais.

A defesa dos policiais defende que houve legitima defesa e que se trata de um “instinto natural” que leva o agressor a “repelir a ofensa”. Os advogados relembram também que Rodrigo, apesar da pouca idade, já tinha seis passagens pela polícia e que a própria mãe, em depoimento, afirmou que o filho “costumava dar muito trabalho, praticando atos infracionais e fazendo uso de substâncias entorpecentes”, como maconha.

A primeira oitiva das vítimas e das testemunhas será realizada em setembro deste ano.

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