A eclética aldeia indígena da capital federal
De bordunas em punho, grupo de 50 pessoas tenta barrar a construção de um novo bairro no centro de Brasília. Funai não reconhece local como terra indígena
Depois de ouvir um pedido para que posasse para uma fotografia, Gilberto Fulniô pediu que o repórter esperasse: “Vou ali pegar o cocar”
Nesta sexta-feira, a cena registrada nos dias anteriores voltou a se repetir: pintados para a guerra e armados com bordunas, índios se colocaram em frente a um trator e impediram o maquinista de trabalhar, no centro de uma clareira aberta em mata nativa. O episódio não aconteceu no coração da Amazônia, muito menos em uma reserva ambiental no Mato Grosso. O palco do embate foi o centro da capital federal, onde começa a surgir um bairro residencial de altíssimo padrão.
O Setor Noroeste é uma ideia do próprio Lúcio Costa, pai do desenho urbanístico de Brasília. Ao revisar seu projeto, nos anos 1980, Costa encravou dois novos bairros debaixo das asas do avião: o Sudoeste, erguido nos anos 1990, e o Noroeste, que começa a sair do papel. O metro quadrado ultrapassa os 10.000 reais, mais caro que o de bairros como o Jardim Paulista e o Itaim Bibi, em São Paulo. Alguns esqueletos de prédios já foram erguidos. No local viverão 30.000 pessoas. Nada parecia poder impedir a força dos tratores – não fosse um grupo de 50 índios protestando no meio do terreno.
Gabriel Castro
Quando os pioneiros começaram a construção de Brasília, não havia sinal da presença indígena. Estudiosos apontam que a região era apenas um ponto de passagem de grupos nativos que nunca se fixaram na área onde hoje é o Distrito Federal. Então, de onde vêm os ocupantes da área em disputa? Os moradores, integrantes dos grupos Fulniô, Guajajara, Kariri-Xocó e Terena, dizem que a área começou a ser frequentada ainda em 1957 por “parentes” que se mudaram para o Centro-Oeste com o intuito de trabalhar na construção da nova capital. “Eles queriam fumar o nosso cachimbo e o homem branco não gostava”, explica João Fulniô, que veste bermuda com cinto, usa um relógio dourado e é reconhecido como uma das lideranças da comunidade. “Por isso vieram para cá”.
A própria Fundação Nacional do Índio (Funai) não reconhece o local como uma área tradicional dos indígenas, vindos majoritariamente do Nordeste. Mas, desde 2008, o grupo tem travado uma insólita batalha para permanecer no local. Um advogado chegou a exigir 75 milhões de reais de indenização em nome da comunidade, sem sucesso. “Nós vamos ficar aqui de qualquer jeito”, garante João Fulniô. Uma das razões para a resistência é o Santuário dos Pajés, local considerado sagrado pelos habitantes da área. É lá que o grupo realiza as cerimônias religiosas.
Nesta sexta-feira, pouco depois do entrevero entre indígenas e funcionários da empresa responsável pelas obras, o site de VEJA visitou o local onde os nativos moram – ali, a presença da imprensa geralmente é vedada. O agrupamento lembra muito pouco uma aldeia tradicional: há casas de alvenaria, barracos de madeira e construções de adobe (um tipo de tijolo cru, de argila) distribuídas de forma irregular. Cachorros e galinhas dividem o espaço com os moradores.
Jovens- Mais recentemente, o cenário foi tomado por barracas de camping trazidas por jovens que se solidarizaram com a causa. A parceria dos indígenas com os defensores dos “bons selvagens” se forjou assim que o governo anunciou a construção do novo bairro. Mas, nas últimas semanas, as retroescavadeiras avançaram e a presença dos apoiadores, jovens de classe média, aumentou.
Lá existe de tudo: rapaz branco com o rosto pintado, vestindo um agasalho da famosa grife GAP, índio com camisa da Reebok, punks, integrantes do Movimento Sem-Teto, universitários. Recém-formada em Jornalismo pela Universidade de Brasília, Taíssa Dias, 22 anos, já se acostumou com os mosquitos. “O problema é a água fria”, diz. A queixa faz sentido: a casa de João Fulniô tem aquecimento solar, mas nem sempre a energia gerada é suficiente para garantir o banho quente. A jovem argumenta que, enquanto não há uma decisão definitiva da Justiça sobre a situação do local, as construtoras não poderiam derrubar a vegetação.
Gabriel Castro
“Estou aqui para garantir o direito à informação”, conta um fotógrafo francês, de 37 anos. Por estar em situação ilegal no Brasil, ele prefere não se identificar. O estrangeiro diz não confiar nos meios de comunicação. Por isso, registra o dia-a-dia da tribo e publica as imagens na internet. O francês é casado com uma antropóloga brasileira, que se mostra indignada com quem questiona a pureza dos índios do Noroeste.
“Essa ideia de que índio é determinado por sangue é uma falácia”, teoriza. “Índio é quem se identifica como índio e é reconhecido como tal pela própria cultura”. A antropóloga afirma que prefere não se identificar por causa da “criminalização dos movimentos sociais”.
O advogado Gilson Santos se ofereceu para representar o grupo na Justiça. Ele garante que, embora ocupem um terreno restrito, os indígenas precisam de 50 hectares para sua sobrevivência. E eles caçam? “De certa forma, não”, afirma Gilson. Não caçam. Nem pescam, porque não existem rios na região. O pouco que plantam não é suficiente para sobreviverem. Um dos únicos moradores com emprego fixo é Santxiê Fulniô, o cacique, que trabalha na Funai. Por isso, os indígenas sobrevivem de doações.
Convívio – Embora mantenham algumas tradições, como o uso da língua e a prática de rituais, os índios da capital são integrados à civilização. Gilberto Fulniô, por exemplo, é formado em Teologia. “Estudei para conhecer, mesmo”, justifica. “Não sou de nenhuma religião”. Gilberto agora pretende se matricular num curso de Pedagogia. Ele é natural de Pernambuco – estado onde se concentram os Fulniôs. Depois de ouvir um pedido para que posasse para uma fotografia na entrada da casa de cimento em que dorme, o teólogo pediu que o repórter esperasse alguns instantes: “Vou ali pegar o cocar.”
As mulheres são raras no ajuntamento: as esposas dos indígenas voltaram para a terra-natal. Levaram consigo as crianças. Durante o tempo em que a reportagem de VEJA esteve na aldeia – antes de ser convidada a se retirar por João Fulniô – nenhum idoso foi visto. Mais do que uma comunidade, a vila dos indígenas se transformou num ponto de passagem para nativos de outras etnias. Apenas o cacique Santxiê está no local desde os primeiros anos. A diversidade de origens não atrapalha o convívio, garantem os moradores da comunidade: “Somos todos parentes”, explica Daniel Terena, que veio do Mato Grosso do Sul.
Polícia – Escalada para evitar um conflito entre a construtora e os manifestantes, a Polícia Militar tenta acalmar os ânimos dos indígenas. “Não queremos nem colocar a mão nos índios”, afirma o coronel Cléber Lacerda, que comandou a operação desta sexta-feira. Ao todo, 130 homens foram deslocados para o local. E até um helicóptero chegou a ser acionado. Mas os soldados se limitam a revistar os jovens entusiastas dos nativos. Apenas a Polícia Federal tem autonomia para lidar com os indígenas. Contudo, como ainda há uma disputa judicial sobre a terra, a corporação prefere não aparecer por lá. Já os aliados dos indígenas não têm tido vida fácil: nesta quinta-feira, 14 deles foram presos ao tentar impedir o trabalho da construtora.
Apesar de reivindicar uma área de 50 hectares, os índios do Noroeste só conseguiram garantir a preservação do trecho de 4,6 hectares onde estão as casas dos nativos. É pouco provável que eles consigam o que querem, até porque as máquinas continuam avançando. Os futuros moradores do Noroeste devem viver uma situação insólita: em plena capital do país, um centro urbano de mais de 2 milhões de habitantes, terão como vizinhos 50 indígenas de penacho e cocar.