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A carta patética de Temer (mas não a que você está pensando)

Por André Petry Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 dez 2015, 11h38

Na terça-feira passada, o vice-presidente Michel Temer divulgou duas mensagens escritas. A primeira era uma carta de desabafo dirigida à presidente Dilma Rousseff, com uma longa lista de reclamações. Causou um tremendo salseiro político e uma infindável – e impagável – sucessão de memes nas redes sociais. A segunda era uma nota à imprensa, que passou quase despercebida, mas talvez tenha duração mais longa que a carta do desabafo. Na nota, Temer responde a uma revelação publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. Segundo o jornal, o vice, tal como a presidente, também assinou decretos de crédito suplementar sem a devida autorização legislativa. O assunto é o primeiro e o principal na lista de razões que embasam o pedido de impeachment contra Dilma. Aplicando-se a mesma lógica, Temer também estaria sujeito a impeachment.

Na nota, curta, Temer diz que, nas interinidades, o vice-presidente atua “em nome do titular do cargo”, cumprindo apenas formalidades e assinando “documentos e atos” que estejam vencendo no período. “Ele cumpre, tão somente, as rotinas dos programas estabelecidos pela presidente em todo âmbito do governo, inclusive em relação à política econômica e aos atos de caráter fiscal e tributário”. Por fim, Temer afirma que, assinando esses documentos e atos, o vice-presidente não está formulando a “política econômica ou fiscal” do governo e também não “entra no mérito das matérias objeto de decretos ou leis”. Em outras palavras, Temer diz que não é responsável por sua assinatura, pois atuava em nome de Dilma, nem pelo conteúdo do que assinou, pois não o formulou nem o concebeu.

“A resposta é pífia”, reagiu o senador Álvaro Dias, do PSDB do Paraná. O senador pediu ao Tribunal de Contas da União um parecer sobre o caso de Temer. “Para mim, é uma questão pacífica”, diz o tucano. Afinal, ao analisar esses mesmos decretos assinados por Dilma, o TCU concluiu que eram irregulares. “Não podemos ser seletivos. Temos que ser coerentes. A régua para medir uns e outros tem de ser a mesma”, diz o senador. De fato, a explicação de Temer causa certa perplexidade pela singeleza. Equivale a dizer que o vice-presidente, além de decorativo, é inimputável. Pode assinar qualquer coisa, mesmo ilegal, desde que seja a mando do presidente – e nada lhe será cobrado. Vista sob esse ângulo, a nota é patética. E nem todos os vices interpretam a função com tanta passividade.

Aureliano Chaves, vice do general João Figueiredo, causou uma crise política em 1981, quando ocupava o cargo em função do infarto do titular. Na cadeira de presidente, recebeu um documento para assinar. Era a ordem de expulsão de dois padres franceses, Aristides Camio e François Gouriou, acusados de incitar invasões de terra no sul do Pará. Aureliano recusou-se a assinar. E não assinou. (Os padres acabaram condenados a 10 e 15 anos de cadeia, cumpriram dois anos e quatro meses e só então foram expulsos.) Era um assunto político, não tinha nenhum impacto econômico e financeiro. Temer, obviamente, poderia ter feito o mesmo. Mas, ao contrário, assinou. Não um decreto, mas nove, que, somados, passam de 67 bilhões de reais. Foram cinco decretos no primeiro mandato, em 2014, e quatro já no segundo mandato, agora em 2015.

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Para complicar, na mesma terça-feira da carta de desabafo e da nota à imprensa, Temer deu uma entrevista dizendo que, na sua opinião, o pedido de impeachment contra Dilma “tem, sim, lastro jurídico”. Isso significa que, na opinião do vice, assinar decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa constitui crime de responsabilidade. Se Temer sabia disso, a questão que fica no ar é outra: por que assinou nove decretos sabendo que violavam a lei? Neste caso, deveria ter-se recusado a assiná-los. Ninguém tem mandato ou poder para obrigar o vice-presidente a cometer um ato que, na sua própria opinião, constitui-se em crime de responsabilidade. (Os decretos de crédito suplementar, assinados por Dilma e Temer, não são o que se convencionou chamar de “pedaladas fiscais”. Todas as irregularidades orçamentárias que aparecem no pedido de impeachment têm sido chamadas de “pedaladas fiscais”, mas apenas para efeito de simplificação.)

A explicação de Temer sobre suas pedaladas, ao dizer que cumpria mera formalidade e não definira a política econômica ou fiscal, tem alguma semelhança, guardadas as enormes diferenças de fundo e de natureza, com aquela manobra dos militares da Argentina. Tentando escapar da responsabilidade dos sequestros, torturas e assassinatos durante a ditadura, eles inventaram a “lei da obediência devida”. Pela lei, eles sequestraram, torturaram e mataram porque tinham ordens para fazê-lo e tinham a obrigação funcional de cumprir tais ordens. Portanto, não podiam ser punidos por isso. Mas Temer não pode alegar nem algo como uma “obediência devida”. Vice não cumpre ordens de ninguém, nem da presidente. Muito menos ordens que dão “lastro jurídico” a impeachment.

Em condições normais, tudo o que um vice pretende ao assumir o cargo é cumprir a rotina burocrática e não causar problemas. Temer, nas suas interinidades, certamente preocupou-se em não paralisar a máquina pública, o que poderia criar sabe-se lá quais turbulências. Por isso, cumpriu as tarefas formais que lhe foram exigidas. Mas, se tinha ciência de que os decretos eram irregulares, era recomendável que Temer comunicasse a presidente que não os assinaria. Dilma que encontrasse uma saída. Ela poderia decidir cancelar as viagens internacionais nas datas de renovação dos decretos. Ou podia mandar os decretos às favas. Em qualquer situação, Temer estaria a salvo sem ter sido desleal e sem parar a máquina pública. Mas Temer também não fez isso.

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A outra hipótese é que Temer não soubesse que se tratava de um crime. É plausível. Mas, se admitir isso agora, Temer se colocaria numa posição politicamente cavilosa: se assinou por não saber que era crime, por que estaria agora vindo a público dizer que o impeachment tem “lastro jurídico”? Seria mais elegante dizer que o “lastro jurídico” do impeachment é frágil, tão frágil que mesmo ele, Temer, constitucionalista por formação, não tinha conhecimento da irregularidade ao assinar os decretos. Mas, com o poder em jogo, esses tempos não estão para elegância.

A armadilha em que Temer se meteu é quase inescapável. Mesmo que o TCU decida isentá-lo de qualquer responsabilidade, restará a questão política que sempre permeia um processo de impeachment: como convencer os brasileiros a entregar a cadeira presidencial a uma autoridade que cometeu o mesmo crime da autoridade que sai? É defensável punir Dilma por um crime e premiar Temer pelo mesmo crime? Já surgiu pedido na Câmara dos Deputados para incluir o nome de Temer no pedido de impeachment contra Dilma. Do ponto de vista das ruas, talvez seja até mais animador pedir o impeachment dos dois, Dilma e Temer. Afinal, estão juntos há cinco anos, no mesmo ambiente com cheiro de enxofre. Mas levar o Congresso a aprovar um impeachment sem apoio do PMDB de Temer é coisa que talvez nem as ruas tenham força para fazer.

Tudo considerado, a explicação lógica para o comportamento de Temer parece ser a seguinte: ele não sabia o que estava assinando. Provavelmente, não imaginava que, no exercício da Presidência da República, lhe dariam documentos irregulares para assinar. Confiava que só lhe pediam para cumprir rotinas lícitas, inquestionáveis. E, assim, sem ler detidamente o conteúdo dos decretos, assinava-os. O drama de Temer é que a alegação de que assinou sem ler, ou sem saber o que assinava, não isenta ninguém perante tribunal nenhum do mundo. A nota irônica é que, na carta de desabafo a Dilma, Temer começou com uma citação em latim: “verba volant, scripta manent” (as palavras voam, os escritos permanecem). Agora, encontra-se numa sinuca em latim: “verba volant, decreta manent”* (as palavras voam, os decretos permanecem).

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*Com tradução do professor Adriano Scatolin, professor de Língua e Literatura Latina da Universidade de São Paulo.

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