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‘Sou uma heroína sem armas nas mãos’, diz artista forense

A americana Lois Gibson, que trabalha para a polícia de Houston há 30 anos, já ajudou a desvendar mais de 1.000 crimes, apenas desenhando retratos falados

Por Cecília Araújo
29 jul 2012, 18h52

“Os policiais não sabiam o quanto eu era essencial para eles. Mas hoje admitem que estavam errados”, diz Lois

Lois Gibson, de 62 anos, é artista plástica formada e este ano comemora três décadas de uma bem-sucedida carreira na polícia de Houston, no Texas. Quando jovem, chegou a seguir a carreira de modelo por um curto período. Depois de sofrer uma agressão sexual aos 21 anos e ficar entre a vida e a morte, decidiu que faria justiça com as próprias mãos. Armada de lápis e papel, ela ajudou a identificar e prender mais de 500 criminosos e a desvendar mais de 1.000 casos policias nos Estados Unidos. Números que a colocaram no livro de recordes Guinness como a melhor especialista em arte forense do mundo. Entre os colegas, Lois é conhecida por conseguir uma descrição realista mesmo das mais relutantes vítimas – e transformá-la em um desenho claro, direto e definidor. Nos últimos anos, lançou dois livros: Faces of Evil e Forensic Arts Essencial, a fim de compartilhar seus conhecimentos na área. Atualmente, é professora de um curso sobre Segurança Pública na Universidade Northwestern, em Illinois, e também oferece aulas em Houston. Em entrevista ao site de VEJA, ela desvenda algumas de suas técnicas para entrevistar pessoas que presenciaram crimes e revela que as crianças são suas principais aliadas para levar os criminosos à prisão.

Quando surgiu a vontade de desenhar para desvendar crimes? Depois que um homem tentou me matar. Eu tinha 21 anos, era dançarina de televisão e modelo em Los Angeles. Uma garota bonita. Um dia, um homem bateu na porta da minha casa, dizendo ser um vizinho. Ao entrar ele me estrangulou e me estuprou violentamente. Foi horrível. Quando terminou, eu tinha sangue em todo o corpo. Ele realmente quase me matou!

E a senhora procurou a polícia? Para falar que fui estuprada? Eu não queria passar por isso. Tinha muita vergonha de contar o que aconteceu para qualquer pessoa, então guardei tudo para mim. Já estava começando a ficar louca, cheguei a tentar o suicídio. Mas aconteceu um milagre, seis semanas depois do ataque, eu estava dirigindo e precisei desviar do meu caminho. Acabei me perdendo e subindo uma montanha, sem ter como voltar. Cheguei ao topo e tive minha grande surpresa: vi ali o homem que tentou me matar, saindo por uma porta. Ao seu lado, um policial de Los Angeles. Só então percebi que o estuprador tinha algemas em suas mãos. Ele estava sendo preso naquele momento, por outro crime cometido: estava com seis quilos de cocaína. Vi a justiça sendo feita diante dos meus olhos e desejei muito que outras pessoas também pudessem sentir o que senti naquele momento.

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Como chegou à conclusão de que ajudaria a fazer justiça como artista? Sou formada em artes plásticas. Já tinha feito vários retratos de pessoas importantes a óleo e paisagens em aquarela, além de mais de 3.000 retratos de turistas que passeavam pelo Riverwalk, em Santo Antonio, Texas. Quando me mudei para Houston, soube que houve uma série de assassinatos naquele ano, cerca de 700. Não conseguia me conformar, até que vi o desenho de um artista forense na TV. Foi então que pensei que poderia ajudar à minha maneira. Fui até uma sede policial da cidade oferecer o trabalho, mas eles me mandaram embora. Disseram que não precisavam de mim e me ignoraram diversas vezes, até que se renderam pela minha insistência e me contrataram com o “dinheiro do café”, para meio turno apenas. Fiz meu primeiro desenho aos 32 anos. Na terceira vez, a polícia conseguiu prender um assassino graças a mim. Continuei como freelancer por sete anos, sem qualquer benefício. Os policiais não sabiam o quanto eu era essencial para eles. Mas hoje admitem que estavam errados. O chefe da polícia de Houston já disse que quer se aposentar antes de mim.

Por que seu trabalho é tão essencial? Os retratos falados resolvem 30% dos casos policiais, enquanto impressões digitais só conseguem solucionar 10% deles. Os artistas forenses são muito mais eficientes! Mesmo assim, ainda somos poucos. Nos Estados Unidos, temos menos de 30 artistas forenses contratados, menos de dez no Canadá, apenas alguns na Alemanha e na Romênia, dois na Austrália, um em Israel, nenhum em Portugal, Itália ou França. Estamos crescendo aos poucos, mas ainda num ritmo lento. Estou lutando para isso, com a publicação dos meus dois livros e com as minhas aulas. Uma brasileira já veio fazer um curso comigo na academia do FBI. Pessoas já voaram de Abu Dhabi para Houston só para ter aulas comigo. Tenho certeza que muitos artistas que lerem ou ouvirem falar sobre o meu trabalho vão querer fazer o mesmo.

E qual é o segredo para conseguir a descrição perfeita de um criminoso a partir de alguém que acabou de ter uma experiência traumática? As vítimas ajudam mais do que elas próprias podem imaginar. E conseguem nos dar dicas suficientes para levarmos os criminosos à prisão, mesmo que digam a princípio que não podem ajudar ou que não lembram o suficiente. É preciso ignorar essa reação inicial da vítima e insistir, com paciência e cuidado. Para facilitar, temos catálogos com imagens de diversos tipos de cabelos, narizes, olhos, orelhas, sobrancelhas e lábios, com as mais variadas características. A vítima pode se lembrar de detalhes do criminoso em questão ao ver essas imagens. Ela simplesmente aponta o dedo para o desenho correto. Há vítimas crianças que ainda não sabem falar muito bem, outras que estão em choque a ponto de não conseguirem se expressar. Mas, mesmo em silêncio, podem ajudar bastante.

Quanto tempo dura em média a entrevista com uma vítima? A conversa mais longa que já tive durou quase 4 horas, mas isso foi há muito tempo. Geralmente, demora em torno de 2 ou 3 horas quando se é iniciante em arte forense, mas depois não dura mais que 1 hora. Hoje em dia, consigo fazer tudo em 25 minutos, se realmente for preciso. Em todo caso, a entrevista tem que fluir da forma mais agradável possível, para que a vítima possa se distrair daquilo pelo que acabou de passar. Ela precisa adorar a conversa, daí a importância de se falar sobre os mais variados assuntos. É necessário trazer a alegria de volta a ela. Claro que isso é muito difícil, mas não é impossível.

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A senhora se lembra de algum caso em especial? Já consegui fazer um garoto sorrir mesmo depois de assistir à morte de sua mãe. Ele a viu ser assassinada, aos 12 anos. Ela foi cortada em pedaços até a morte. Eu abraçava o menino, e ele só chorava. Então, comecei a consolá-lo. Disse que ele nunca teria medo de mais nada na vida e fiz com que imaginasse momentos felizes que viveria no futuro, como a possibilidade de comprar e dirigir um carro. Se fosse uma garota, falaria do vestido que ela iria usar na formatura. O segredo é trazer para a conversa assuntos sobre os quais as vítimas realmente gostariam de falar. Não peço detalhes do crime em si.

Então, a técnica é alternar assuntos felizes com a descrição do criminoso? Exato! Num momento, pergunto a cor preferida da vítima para seu futuro carro ou vestido; no seguinte, mostro a imagem de um nariz e peço para que reconheça o criminoso. Depois, volto para um assunto leve e agradável. Você pode não acreditar, mas os meus melhores desenhos foram feitos a partir de conversas com crianças pequenas. Elas costumam ajudar mais do que os adultos.

A senhora se considera mesmo a melhor do ramo? Entrei para o Guinness em 2004 pelo sucesso do meu trabalho e sei que ainda me manterei por muito tempo com o recorde. Vai ser difícil me alcançar, pois já estou velha e não deixo a arte forense por nada. Sou apaixonada pelo que faço, mesmo que a maioria das pessoas não lhe dê a devida importância. Não sou policial, mas me considero uma heroína sem armas nas mãos. Sou uma pessoa doce que desenha enquanto conversa gentilmente com desconhecidos traumatizados. E sei que tenho meu valor.

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