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Os últimos anos do homem com hora marcada para morrer

O cineasta Marcos Prado, diretor do documentário sobre brasileiro executado na Indonésia, fala sobre sua relação com Marco Archer no corredor da morte

Por Daniela Macedo 11 fev 2017, 08h49

O carioca Marco Archer Cardoso Moreira foi executado com um tiro no peito na madrugada de um domingo, 18 de janeiro (tarde de sábado, no Brasil) na Indonésia. Ele havia sido preso em 2003 e condenado no ano seguinte por tráfico de drogas depois de tentar entrar no país asiático com 13 quilos de cocaína escondidos na asa delta. Curumim, como era conhecido entre os amigos, permaneceu doze anos preso antes de ser fuzilado.

Os últimos três anos do brasileiro foram registrados pelo cineasta Marcos Prado em conversas telefônicas semanais, entrevistas com amigos e imagens feitas pelo próprio preso com um câmera escondida na cela. Seu projeto era otimista: produzir um documentário sobre a volta para casa do brasileiro que passou mais de uma década em uma prisão da Indonésia. “Ninguém achava que ele seria executado”, lembra Prado. Em janeiro de 2015, seus planos mudaram. Lançado em novembro, Curumim – O Homem Que Queria Voar mostrou o final da vida de um homem com hora marcada para morrer. Nesta entrevista, Prado fala sobre sua relação com Archer e a triste mudança no projeto do documentário:

Marco Archer acreditava que seria libertado com vida? Ele tinha certeza que ia sair. Ao longo de cinquenta anos com regime de pena de morte, a Indonésia só tinha executado cinco pessoas. Ele achava que o Joko Widodo, presidente civil que assumiu depois dos militares, em 2014, mandaria todos os estrangeiros presos para casa. Ele só percebeu que era para valer, que não tinha volta, na última semana.

Você também acreditava que ele seria libertado? Ninguém achava que ele seria executado. Tanto que a ideia original do meu projeto era fazer um documentário sobre a biografia do Curumim, suas histórias, o período na prisão e depois sua volta ao Brasil. Eu queria contar como ele ia se estabelecer no Brasil depois de mais de uma década preso na Indonésia. E ele concordava com tudo. ‘Eu vou fazer palestras. Não quero que nenhum jovem brasileiro passe pelo que eu estou passando aqui’, dizia.

Como era o Marco Archer na juventude? Vocês se conheciam? A gente se conhecia, mas não éramos amigos. No começo dos anos 90, chegou uma droga nova no Rio de Janeiro, o skunk [uma variante mais forte da maconha], e ele virou um cara meio lendário entre a garotada porque era o sujeito que havia trazido a droga que todo mundo estava experimentando. Eu sabia que ele estava traficando, sabia do perigo que era estar com ele, por isso fazia questão de manter distância. Mas ele não se comportava como um traficante clássico. Achava que não estava fazendo nada demais, porque traficava maconha, que ele achava inofensiva. Nunca pegou em uma arma, nunca coagiu ninguém. Nas minhas pesquisas para o documentário, todos os entrevistados falavam ‘Curumim é o cara mais engraçado do mundo’. Era carismático, inteligente, piadista. Quando soube que tinha sido preso na Indonésia, com treze quilos de cocaína, me surpreendi. Havia aquele mito de que o Curumim só traficava droga que ele considerava inofensiva, e agora ele estava preso e condenado à morte.

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Marco Archer, preso por tráfico de drogas, durante coletiva de imprensa em 2003 na Indonésia
Marco Archer, preso por tráfico de drogas, durante coletiva de imprensa em 2003 na Indonésia (SETIYO SC/EFE)

Como você contatou o Marco Archer para produzir o documentário? Quatro anos depois da prisão (Archer foi preso em 2003), eu recebi um telefonema de um amigo em comum, que era escritor e morava em Bali, falando que o Curumim queria contar a história dele em um livro. Ele tinha muitas histórias interessantes, então eu me interessei. Resolvi esperar a biografia ficar pronta para adaptar o livro em um filme. Em 2011, o Curumim me ligou dizendo que o livro ia ficar pronto e a gente começou a conversar com frequência por telefone.

Ele ligava do presídio com facilidade? Ele tinha telefone celular na cela e me ligava toda quinta-feira. O Curumim tinha não só celular, tinha também TV a cabo, DVD, Blu-ray. A corrupção nos presídios da Indonésia é pior do que no Brasil.

Ele gravava imagens da rotina dele na prisão com uma filmadora escondida. Foi você quem levou a câmera para ele? De jeito nenhum. Imagina se ele fosse preso com uma câmera em um presídio de segurança máxima, no corredor da morte! Iria para a solitária, morreria lá e a culpa seria do documentarista. Um dia, ele me ligou e disse que tinha uma câmera com ele na cela. Falei pra ele jogar fora, que o documentário não precisava daquilo. Ele dizia ‘não, quero contar a minha história. Sem imagem não tem história’. Ele arrumou a câmera com um guarda. Disse que ia fazer imagens para a mãe dele, que estava doente, e o guarda consentiu. O próprio guarda trouxe a câmera para dentro da prisão e até pediu emprestado algumas vezes. Mas nunca fiquei tranquilo com aquela câmera lá dentro.

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Como ele enviava as imagens? Nos três anos seguintes, ele mandou os cartões de memória contendo as imagens. A esposa de um dos companheiros de cela pegava os cartões durante as visitas e me mandava pelo correio.

Correndo o risco de ser deportado, fui visitá-lo na prisão sem autorização, fingindo ser pastor

Você o visitou no presídio? Eu pedi ao embaixador do Brasil na Indonésia para pleitear uma entrevista formal com o Curumim na prisão. Para visitar alguém em um presídio de segurança máxima na Indonésia é preciso ter autorização do governo de lá, mas o embaixador não quis fazer o pedido porque achou que as negociações para a libertação estavam de vento em popa e um documentário seria prejudicial às negociações. Em 2013, eu tinha uma viagem para a Indonésia marcada para entrevistar amigos do Curumim que moram em Bali. Quando contei da viagem para o Curumim, explicando que não poderia visitá-lo, ele disse: ‘negativo! Eu arrumo uma maneira de você entrar. Venha de calça preta, camisa branca e bíblia na mão’. Eu corri o risco de ser deportado, mas aceitei entrar fingindo ser pastor. A esposa indonésia do italiano que estava preso com o Curumim ajudou. Ela ia praticamente todos os dias e já conhecia todos os guardas. Eu fiz um teatrinho na entrada, mas os guardas sabiam que eu era um amigo do Curumim, sem autorização pra entrar.

O documentário não deixa claro se o Marco estava enlouquecendo, como diz o padre que acompanhava os presos condenados à morte. O que você percebia das conversas por telefone? O padre achava que o Curumim estava louco, mas o italiano, amigo dele na prisão, dizia ‘o Marco está fazendo teatro’. O Curumim não era bobo, sabia que a Indonésia é signatária de um tratado da ONU que não deixa executar pessoas que não estejam em sã consciência. Então ele se fazia de louco para o padre e para o psicólogo para tentar ser enquadrado como esquizofrênico. Mas ele estava lúcido e conseguiu manter a lucidez preso por doze anos. Qualquer pessoa enlouquece se ficar presa todo esse tempo. Ele vivia no limite entre a lucidez e o desespero, mas nunca achei que ele estivesse louco.

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Qual foi o momento mais marcante nesses três anos em que vocês mantiveram contato para a produção do documentário? O momento da execução foi o dia mais triste. A gente sabia que às três e meia da tarde no Brasil ele estaria tomando um tiro no peito. Como eu tinha contato com muitos amigos dele, a gente se encontrou num gramado de São Conrado, uns trinta amigos dele, e fizemos uma roda de oração na hora que ele estaria levando o tiro para ele partir tranquilo. Durante os anos de produção de documentário, eu me iludi. Para mim, era só um registro do período em que ele ficou preso, para complementar a biografia dele. Só depois da execução tive que abandonar um documentário sobre o retorno do Curumim ao Brasil para produzir um tratado sobre a pena de morte, sobre um sujeito com hora marcada para morrer.

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