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O relato de um fotógrafo na guerra civil da Síria

Agosto foi o mês com o maior número de mortes na Síria desde o início do levante armado contra a ditadura Assad - e não há bonzinhos nessa história. Em VEJA desta semana, o fotógrafo Adam Dean relata, de Alepo, que nada é pior para os civis do que os bombardeios aéreos ordenados pelo governo

Por Da Redação
3 set 2012, 18h37

“Todos acreditam nas atrocidades praticadas pelo inimigo, e recusam-se a crer nas cometidas pelo seu próprio lado, sem ao menos examinar as provas”, escreveu o inglês George Orwell sobre a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), da qual participou durante dez dias antes de ser ferido com um tiro no pescoço. Até poucas semanas atrás, a maioria dos relatos e das imagens da violência que está destroçando a Síria há um ano e meio vinha de um dos lados do conflito. O site YouTube é abastecido diariamente com vídeos terríveis, de autenticidade nem sempre inequívoca, produzidos pelos rebeldes com o intuito de mostrar ao mundo os atos brutais do regime do ditador Bashar Assad. Da mesma forma, o governo sírio apresenta versões mirabolantes, difundidas pelos canais de TV do país, sobre quem seriam os verdadeiros autores da barbárie nacional, atribuindo a matança de civis a terroristas financiados pelo Ocidente. Poucos observadores e jornalistas independentes haviam conseguido entrar no país, e muitos dos que o fizeram morreram.

Há cerca de um mês, a verdade sobre a guerra civil na Síria começou a sair da penumbra em que se encontrava depois que combatentes anti-Assad tomaram o posto de fronteira de Bab Salama, que dá passagem para a Turquia, e asseguraram o controle dos povoados e da estrada na rota entre o país vizinho e Alepo, a cidade mais populosa da Síria e uma das mais destruídas pelos combates. Abriu-se, assim, um corredor relativamente seguro para a entrada de armas para os rebeldes e da imprensa internacional, no mesmo momento em que o conflito se alastra e mata como nunca. Estima-se que 4 000 sírios tenham sido mortos em agosto (dos quais 1 000 combatentes pró-Assad), mais do que em qualquer outro mês desde o início da revolta — que começou em março do ano passado com manifestações pacíficas por reformas políticas e econômicas, prontamente reprimidas por franco-atiradores do governo, e que aos poucos se transmudou em um levante armado. Segundo a ONU, a luta entre os rebeldes do Exército Sírio Livre, formado principalmente por mulçulmanos sunitas, e as forças leais a Assad, apoiado por alauitas e por uma parcela de outras minorias do país, como os drusos e os cristãos, já provocou 18 000 mortes e obrigou 1,2 milhão de pessoas a abandonar suas casas. Nos campos de refugiados da Jordânia estão chegando até crianças órfãs que cruzam a fronteira sozinhas.

Entre os múltiplos fatores, três se destacam para explicar o aumento no número de mortes. O primeiro foi a tentativa dos rebeldes de tomar Damasco e Alepo. O governo conseguiu recuperar os bairros da capital em que os insurgentes haviam se aventurado e impediu seu avanço em Alepo, mas o fato é que os combates, antes restritos a cidades menores e à zona rural, agora ocorrem em meio às áreas densamente povoadas dos grandes centros urbanos. O segundo fator é o desespero. Em meio à batalha por Damasco, em julho, quatro membros do gabinete de segurança de Assad foram mortos em um atentado a bomba. Conforme o conflito se acirra e chega mais perto de Assad e seus próceres, menos eles sentem que têm a perder com a intensificação da violência. Dessa postura de indiferença nascem episódios como o massacre em Daraya, no sábado 25, o mais letal desde o início da revolta. Calcula-se que 380 pessoas tenham sido mortas na cidade, situada nos arredores de Damasco, muitas delas, inclusive crianças, executadas dentro de casa, aparentemente por integrantes de uma milícia pró-Assad. O terceiro motivo para o recrudescimento das mortes de civis é o uso de aviões e helicópteros para atacar indiscriminadamente alvos civis e rebeldes. Só em Alepo, os caças do governo bombardearam dez padarias onde os moradores faziam fila para comprar comida. Se é verdade que ambos os lados do conflito já cometeram sua dose de atrocidade, também não há dúvida de que a tática de terra arrasada fez do governo, até agora, o maior algoz de seu povo. Essa realidade foi testemunhada pelo fotógrafo americano Adam Dean, colaborador frequente de VEJA. Seu relato está nas páginas a seguir.

A batalha por Alepo, o centro industrial e econômico da Síria, não se tornou o ponto de virada que levaria à queda de Damasco, como esperavam os integrantes das forças rebeldes. O regime de Assad está sendo forçado a adotar medidas cada vez mais desesperadas e desproporcionais, usando aviões de guerra e artilharia terrestre. O governo reluta em enviar as tropas para combates diretos por temer as deserções em massa de um Exército já com o moral abalado. Como resultado, o número de civis mortos nos bombardeios aumenta a cada dia, e milhares de moradores fugiram — muitos pela segunda vez, depois de escapar no começo da guerra de Homs, uma das primeiras cidades a ser atacadas pelo regime, para Alepo.

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Entre as famílias que permaneceram em Alepo estavam os Kayali e os Katab. Eles pensaram que estariam em segurança se se escondessem no porão de sua casa, mas se enganaram. Eu vi quando os caças de fabricação russa MIG, da Força Aérea Síria, começaram a voar em círculos a poucos quilômetros de distância de onde eu estava, em um centro de comando do Exército Sírio Livre localizado em uma velha escola. Perto dali moravam os Kayali e os Katab. Os aviões faziam disparos constantes e intensos sobre um subúrbio densamente povoado.

Os caças então silenciaram, e intuí que não era prudente permanecer naquele quartel-general improvisado dos rebeldes. Eu mal havia cruzado o pátio do colégio, correndo, quando os aviões chegaram e despejaram suas bombas sobre o centro de comando do qual eu acabara de fugir. Erraram o alvo. As bombas caíram a 50 metros de distância, destruindo a casa de três andares onde moravam os Kayali e os Katab, matando doze membros dessas famílias, dos quais quatro eram crianças.

Esse tipo de tragédia ocorre diariamente em Alepo, e também nos subúrbios de Damasco, enquanto a guerra civil persiste. O Exército Sírio Livre, mal armado e quase sem munição, é formado por civis e alguns poucos desertores das forças de Assad. A maioria dos rebeldes que eu encontrei eram muçulmanos sunitas de diferentes origens sociais. Havia comerciantes, pequenos agricultores, e até um jovem que trabalhava numa loja de roupas da GAP em Dubai e outro que fazia faculdade no exterior e decidiu voltar para lutar na Síria.

O COTIDIANO SÍRIO - À esquerda, familiares e amigos choram a morte do vendedor de galinhas Ayman Alito, que pegou em armas contra Assad. À direita, o líder rebelde Hajji Mari dá instruções em Alepo
O COTIDIANO SÍRIO – À esquerda, familiares e amigos choram a morte do vendedor de galinhas Ayman Alito, que pegou em armas contra Assad. À direita, o líder rebelde Hajji Mari dá instruções em Alepo (VEJA)
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Os rebeldes pouco podem fazer contra os bombardeios aéreos, já que não possuem armamento adequado. Abdulqadr Saleh al Hajji, que usa o nome de guerra Hajji Mari, comandante da Brigada da União, responsável pela tomada de Alepo, ironiza as promessas do governo dos Es-tados Unidos e da Inglaterra de oferecer ajuda “não letal” aos rebeldes. “O que têm a nos oferecer contra esses ataques aéreos são ‘equipamentos de comunicação’? Que utilidade isso pode ter para a situação que vivemos aqui?”, diz Hajji, um comerciante de sementes de 32 anos sem experiência militar prévia. Ele é sunita e muito religioso, mas em nenhum momento deixou transparecer o desejo de fazer uma guerra santa contra as minorias do país. Seu objetivo é derrubar o “velho regime” e o clã Assad. Esse pequeno exemplo, porém, não serve para descartar os temores de que a guerra se torne um conflito de contornos sectários. Por enquanto, as forças rebeldes aceitam qualquer um que queira se juntar à sua luta. Mas basta dizer que a Força Aérea Síria confia seus caças apenas a pilotos alauitas, a mesma facção religiosa de Assad, para entender como as rixas religiosas podem determinar os rumos do conflito.

Ninguém consegue mais se manter neutro ou imune aos horrores da guerra. Nem a classe média urbana, nem os habitantes de cidades humildes como Tal Refaat, 40 qui-lômetros ao norte de Alepo, onde testemunhei o funeral de Ayman Alito, de 25 anos, morto por um estilhaço na cabeça enquanto lutava ao lado de outros rebeldes no subúrbio de Salaheddin, em Alepo. O jovem vendia galinhas antes de ver as primeiras fotos de soldados atirando contra manifestantes no sul da Síria, e decidiu se juntar aos protestos contra Assad. Acabou preso. Na cadeia, foi espancado e teve a mão esmagada. “Ele não era um homem instruído, nem se interessava por política, mas viu as matanças na televisão e quis fazer algo”, diz seu primo Mahmoud. Na casa da família, a mãe de Ayman e outras mulheres choraram sobre o defunto antes que ele fosse levado pelos homens para a mesquita. Em respeito ao sangue derramado em combate, o corpo de Ayman não foi lavado, como seria o costume. O funeral foi apressado porque os caças começaram a sobrevoar a cidade. Um dia como tantos outros na rotina dos sírios.

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