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O papel da Alemanha na atual ordem internacional

País de Angela Merkel deve atuar como ‘poder de formação’ com capacidade para resolver conflitos que afetam parte ou a totalidade da comunidade global

Por Anne-Marie Slaughter
23 fev 2014, 19h41

O presidente norte-americano Barack Obama vem repetindo desde o início de sua primeira administração um mantra simples alusivo a outros países que diz: “Junto com o poder vem a responsabilidade”. A França tem demonstrado em muitas ocasiões que entende e aceita essa responsabilidade; a Alemanha, por sua vez, pode estar seguindo a mesma via.

Há algumas semanas, o discurso de abertura do presidente alemão, Joachim Gauck, para a 50ª Conferência de Segurança de Munique, reflexionou sobre a evolução da Alemanha a propósito da adesão do país à OTAN, um período que deu origem a “uma boa Alemanha, a melhor que já conhecemos.” E, por a Alemanha se beneficiar mais do que a maioria dos países da atual ordem internacional aberta e baseada em valores, ela tem, disse Gauck, uma maior responsabilidade em defender e expandir essa ordem.

O discurso de Gauck refletiu o pensamento de um importante novo relatório, intitulado Novo Poder, Nova Responsabilidade, lançado pela Stiftung Wissenschaft und Politik and the German Marshall Fund of the United States. O relatório – produto de vários meses de debate dentro da comunidade de política externa e de segurança alemã – identifica os valores atuais da Alemanha e interesses como um compromisso com a “dignidade humana, liberdade, democracia, o estado de direito e da ordem internacional que se baseia em normas universais.” Gauck anunciou que o “objetivo estratégico principal” da Alemanha deve ser a “preservação e adaptação contínua” desta ordem.

Para alcançar esse objetivo, a Alemanha deve se tornar um “poder de formação”, um estado com capacidade de resolver problemas e conflitos que afetam a totalidade ou parte da comunidade internacional. Os tradicionais determinantes do poder dos Estados em relação a outros Estados – geografia, demografia, peso econômico e poder militar, juntamente com a disponibilidade de recursos e proficiência tecnológica – continuam a ser importantes; mas tais determinantes são muitas vezes insuficientes para confrontar a influência real na política internacional. Um poder de formação constrói relações e investe em instituições que lhe permitem trabalhar bem com os outros, criar e mobilizar “coalizões e redes de países que compartilham a mesma ideia”.

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Como um “poder de formação” com enorme interesse em preservar e expandir a abertura do sistema internacional, a Alemanha tem especial responsabilidade em ajudar a integrar novas potências mundiais nesse sistema. Aqui é onde as coisas ficam interessantes.

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ONU – A Alemanha tem reivindicado um assento no Conselho de segurança das Nações Unidas, fazendo causa comum com o Japão, Brasil e Índia. Mas o “Novo Poder, Nova Responsabilidade” sugere um caminho diferente, em defesa da reforma do Conselho de Segurança da ONU de forma que os assentos franceses e britânicos fossem fundidos em um assento permanente europeu, em um “círculo ampliado de membros permanentes”, garantindo também uma representação europeia entre os membros não permanentes.

Neste cenário, a Alemanha desempenharia um papel na promoção da paz e segurança a nível global por meio do assento europeu, e também serviria como membro rotativo periódico. Da mesma forma, a Alemanha reconhece a necessidade de consolidar o poder de voto da Europa e reduzir o número de assentos europeus em outras instituições globais, tais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, para dar espaço a potências emergentes.

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Este compromisso renovado para uma Europa unida e forte é o segundo pilar de uma política externa alemã do século XXI. Novo Poder, Nova Responsabilidade faz um chamado para um “aprofundamento” da União Europeia através de medidas que incluiriam a democratização da tomada de decisões financeiras na União Europeia, envolvendo diretamente parlamentares nacionais e a troca de restrições fiscais mais rígidas dos orçamentos de governos membros da UE por uma união bancária europeia, um orçamento comum da zona euro e eurobônus.

Em política externa e de segurança, o Novo Poder, Nova Responsabilidade propõe reforçar o papel dos altos representantes da UE e o papel do Serviço Europeu de ação externa. A alta representante da UE, Catherine Ashton, continua a demonstrar que a política externa do bloco vale a pena, como exemplo, na notável negociação de paz entre Sérvia e Kosovo e o papel fundamental nas negociações nucleares com o Irã.

A terceira observação diz respeito ao uso da força. Gauck disse aos alemães, em termos inequívocos, que eles deveriam estar dispostos a usar a força, pelo menos como um último recurso, e repreendeu os concidadãos que “utilizam a culpa do passado da Alemanha como escudo ou preguiça de libertar o mundo”.

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De forma mais controversa, Gauck proclamou a necessidade de uma autorização prévia do Conselho de Segurança para qualquer uso de força, mas também apontou em Kosovo um precedente para uma possível intervenção militar na Síria. Como ressaltou, quando uma comunidade internacional enfrenta um caso claro do uso da força para proteger a população de seu próprio governo, e o Conselho de segurança está dividido, “a relação entre legalidade e legitimidade continuará duvidosa”.

Os participantes das deliberações que resultaram no Novo Poder, Nova Responsabilidade ficaram divididos nessa questão. Alguns defenderam a exigência absoluta de prévia autorização do Conselho de segurança, enquanto outros foram taxativos ao contemplar a intervenção humanitária sem tal autorização em “casos excepcionais específicos claramente definidos”.

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Estados Unidos – O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, também falou na Conferência de Segurança de Munique. Mas, por não ter mencionado o discurso de Gauck, perdeu a oportunidade de sublinhar o sucesso de um dos principais princípios de política externa de Obama: uma vez que os Estados Unidos recuam em seu papel de “polícia do mundo” e se concentra mais na diplomacia do que na força, onde outros países podem fazer o mesmo.

Mais importante ainda, Kerry e Obama fariam bem em pensar seriamente sobre uma lição essencial incorporada no discurso de Gauck e no relatório por trás dele. Países que queiram conservar o poder em uma economia mundial em evolução devem aprender a dividi-lo, o que requer a aceitação e a adoção dos contornos de um novo mundo. A administração de Obama deve pensar seriamente sobre a reforma do Conselho de Segurança, sinalizando uma vontade real de substituir uma ordem que espelha o mundo de 1945 por uma que reflita o mundo de 2015. Isso significa apoiar um maior papel global para todos os poderes que entendem e aceitam a responsabilidade real para manter a paz e a segurança globais.

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Anne-Marie Slaughter é presidente e executiva-chefe da Fundação Nova América, autora de “The Idea That Is America: Keeping Faith with Our Values in a Dangerous World”.

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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