Assine VEJA por R$2,00/semana
Cultura

Mulher-Maravilha: feminista desde o princípio

Personagem foi criada por um psicólogo que acreditava na superioridade das mulheres e achava que elas deveriam liderar o mundo

por Mabi Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 jun 2017, 12h25 - Publicado em
3 jun 2017
06h00

Personagem foi criada por um psicólogo que acreditava na superioridade das mulheres e achava que elas deveriam liderar o mundo

“O Superman tem sua dívida com a ficção científica, o Batman, com os detetives particulares. Porém, a dívida da Mulher-Maravilha é com a utopia feminista e com a luta pelos direitos das mulheres.” Assim Jill Lepore, historiadora da Universidade de Harvard e redatora da revista New Yorker, resume a origem da personagem em livro que sai agora no país pela Best-Seller, A História Secreta da Mulher-Maravilha (tradução de Érico Assis, 480 páginas, 64,90 reais). Não é exagero: a Mulher-Maravilha, que ganha enfim uma aventura solo no cinema, em um tempo em que é relativamente fácil falar e propagar o feminismo, defende a causa desde o longínquo ano de 1941.

Era um mundo ainda mais estreito, para as mulheres, do que é hoje. Diana Prince, a princesa das amazonas que seria conhecida pelo nome de guerra de Mulher-Maravilha, emergiu em meio a uma dominação quase absoluta de homens não só nos quadrinhos, mas em todos os campos da sociedade. As conquistas femininas eram poucas e recentes. As mulheres haviam acabado de obter o direito de voto, em vigor nos Estados Unidos a partir de 1920 e no Brasil desde 1932, e lentamente começavam a ocupar o mercado de trabalho, mesmo que para suprir a falta de homens, enviados à Europa para lutar na Segunda Guerra Mundial.

‘Apresentando a Mulher-Maravilha: força e agilidade cem vezes maiores do que as dos nossos melhores atletas e lutadores’
‘Apresentando a Mulher-Maravilha: força e agilidade cem vezes maiores do que as dos nossos melhores atletas e lutadores’ (//Reprodução)

“Finalmente, em um mundo dominado pelo ódio e pela guerra dos homens, surge uma mulher para quem os problemas e proezas masculinas são meras brincadeiras de criança – uma mulher cuja identidade é desconhecida de todos, mas cujos feitos sensacionais são excepcionais em um mundo em rápida transformação”, escreve William Moulton Marston nas primeiras linhas de Introducing Wonder Woman, história que apresentou a personagem ao mundo, no gibi All Star Comics, uma espécie de almanaque de heróis da DC Comics.

A comparação com os homens continua no mesmo quadrinho. “Com força e agilidade cem vezes maiores do que as dos nossos melhores atletas e mais fortes lutadores, ela vem do nada para vingar uma injustiça e consertar as coisas”, diz o criador da personagem, que assinava Charles Marston e também se valia de uma mistura de mitologia grega e romana para defini-la. “Tão amável quanto Afrodite, tão sábia quanto Atena – com a velocidade de Mercúrio e a força de Hércules –, ela é conhecida apenas como Mulher-Maravilha. Mas quem ela é de onde ela vem ninguém sabe.”

Continua após a publicidade

Não foi difícil para Marston erigir uma heroína tão poderosa – ou empoderada, para usar um termo caro aos dias de hoje – quando convidado pelo amigo Maxwell Gaines a criar um personagem de gibi, mídia que ele via como veículo pedagógico. Ex-aluno de Harvard que viu a luta das mulheres pelo voto e a maneira como o mundo masculino, incluindo a importante instituição onde estudava, as repelia, Marston era, ele próprio, um feminista. Precoce se comparado a muitos de seus contemporâneos, reconhecia o enorme potencial das mulheres. Mais que isso. O garoto que se matriculou em direito e acabou se tornando psicólogo e cineasta achava que as mulheres eram superiores, porque capazes de compaixão, uma das características que Diana carregaria com ela. E que os quadrinhos eram uma forma de preparar os adolescentes para a inevitável ascensão feminina.

Diana Prince incentiva mulher a lutar pelo país
Diana Prince incentiva mulher a lutar pelo país (//Reprodução)

“William Moulton Marston acreditava que as mulheres eram superiores aos homens e logo iriam dominar o mundo. Ele viu nas revistas em quadrinhos um veículo para levar suas teorias aos mais jovens. Diana foi criada para demonstrar a força, o poder e a compaixão das mulheres. A intenção era, primeiro, acostumar os meninos à ideia de que as mulheres eram mais fortes e poderosas, e assim facilitar a implantação do matriarcado; segundo, inspirar as meninas a se tornarem fortes e poderosas, para que pudessem dominar o mundo”, diz o americano Tim Hanley, pesquisador que assina o livro Wonder Woman Unbound: The Curious History of the World’s Most Famous Heroine (editora Paperback, Mulher-Maravilha Desvendada: A Curiosa História da Super-Heroína Mais Famosa do Mundo, em tradução livre), ainda sem tradução no Brasil.

“É claro que mulheres comuns não têm superpoderes, mas a personagem as encoraja”, diz Hanley, em entrevista a VEJA. “A personagem incentivou as mulheres a se envolver com os esforços de guerra. Regularmente, Diana aconselhava outas mulheres a ocupar cargos auxiliares oferecidos no serviço militar ou qualquer outro minimamente envolvido com a guerra. Moulton Marston também apreciava a ascensão da força de trabalho feminina. Ele acreditava que, quanto mais as mulheres experimentassem fazer parte de um local de trabalho, mais teriam autoestima e confiança, e mais próxima estaria a revolução do matriarcado.”

Continua após a publicidade

Capa do primeiro número da revista ‘Mulher Maravilha’
Capa do primeiro número da revista ‘Mulher Maravilha’ (Reprodução/Reprodução)

Fator que pode levar feministas a rejeitá-la, a Mulher-Maravilha é, como outras heroínas dos quadrinhos, bastante sensual: um corpo cheio de curvas, coberto por roupas que parecem ter um número a menos. Em seus 76 anos, ela teve apelo mais ou menos sexual de acordo com o desenhista que a assinava, mas nunca deixou de ser sexy, desde o traço de Harry G. Peter, parceiro de Marston na criação de Diana. Até isso era parte do plano do psicólogo, que era também cineasta, de difundir os seus ideais: a sensualidade era um recurso, na opinião dele, para fisgar leitores e submetê-los aos seus pensamentos.

A primeira aparição da Mulher-Maravilha aconteceu na revista em quadrinhos All Star Comics, da DC. Era o número 8 do título que reunia heróis como Batman e Super-Homem. Não demorou a se popularizar e mostrar que Marston tinha um bom faro para a cultura pop. Já no ano seguinte, a personagem debutava em um gibi próprio, Introducing the Wonder Woman, que depois seguiria sob o título de Wonder Woman apenas. Em 1944, suas histórias, distribuídas nessa revista e em outras – Sensation, Comic Cavalcade e de novo a All Star Comics – foram lidas por 10 milhões de pessoas.

Publicidade

Diferentona

O êxito da Mulher-Maravilha não deixa de ser espantoso, quando se considera a base ideológica que engendrou sua criação e o mix pouco usual de cultura pop e clássica que recheou esse angu. Ou, talvez, seja explicado exatamente por isso. A Mulher-Maravilha já nasceu sui generis.

“Ela não é a típica personagem de gibi porque Marston não era um homem comum e sua família não era uma família comum. Marston era um polímata. Era um especialista em falsidade: foi o inventor do exame do detector de mentiras. Sua vida era sigilosa: ele tinha quatro filhos com duas mulheres e todos moravam juntos, sob o mesmo teto. Eram mestres na arte da dissimulação”, escreve Jill Lepore em A História Secreta da Mulher-Maravilha. “Suas origens estão no passado de William Moulton Marston e na vida das mulheres que ele amou — elas também criaram a Mulher-Maravilha.”

Bondage (prática de amarrar o parceiro) teve sua influência na HQ
Bondage (prática de amarrar o parceiro) teve sua influência na HQ (//Reprodução)

William Moulton Marston é, de fato, um personagem à parte – leia o box abaixo. Além de adepto do feminismo, era a favor do sadomaquismo muito antes de o mundo sonhar com a sua versão adocicada em Cinquenta Tons de Cinza, e do amor livre trinta anos antes de os hippies o abraçarem com suas flores e roupas rasgadas. Marston vivia uma relação poliamorosa com duas mulheres, ambas expoentes do feminismo e ligadas às sufragistas americanas. Elizabeth Holloway, sua esposa, financiou sozinha a sua graduação em direito, em uma época em que poucas mulheres iam à faculdade. Ela trabalhou junto a Marston na criação do detector de mentiras, outra invenção do psicólogo. Já Olive Byrnes, a inspiração para Mulher-Maravilha, era ligada ao movimento de controle de natalidade. Sua mãe e tia abriram a primeira clínica de planejamento familiar nos Estados Unidos, onde Olive trabalhou a vida toda. Os três viviam juntos, e criavam quatro filhos, dois de cada uma.

Marston, no entanto, não viveu muito mais para ver a bem-sucedida trajetória que a sua personagem trilharia. Morreu em 1947, às vésperas de completar 54 anos. Mas Diana nunca se desviou dos planos do seu criador. Feminista desde criancinha, por assim dizer, a Mulher-Maravilha jamais o deixou de ser, nem mesmo na megaprodução de Patty Jenkins para a Warner, em que aparece mais compassiva e inclusiva do que nunca – os homens não são inimigos, parece propor a diretora, mas podem render boas parcerias se souberem ouvir e acatar as mulheres. Entre altos e baixos de sua trajetória, Diana Prince se consolidou como modelo para as feministas.

Continua após a publicidade

Mulher-Maravilha na capa da revista feminista ‘Ms.’
Mulher-Maravilha na capa da revista feminista ‘Ms.’ (//Reprodução)

“Isso foi especialmente verdade no início dos anos 1970, quando Gloria Steinem colocou a Mulher-Maravilha na capa da revista feminista Ms. Magazine, e a reconfigurou como a personificação da independência feminina”, lembra Tim Hanley.

O autor também aponta a interpretação de Lynda Carter na série dos anos 1970 como a mais emblemática e uma das maiores contribuições, até o longa com Gal Gadot, para a popularização e perpetuação da heroína no imaginário popular.

“Ainda que a forma de abordar o feminismo da Mulher-Maravilha tenha mudado com os anos, dependendo de quem escrevia a história, os valores feministas sempre estiveram embutidos na personagem e perduram até hoje”, conclui Tim Hanley. Não poderia ser mais verdade – o detector de mentiras de William Moulton Marston que o diga.

Publicidade

Marston, outro grande personagem

William Moulton Marston, o excêntrico criador da Mulher-Maravilha
William Moulton Marston, o excêntrico criador da Mulher-Maravilha (Reprodução)

Foi nos tempos de estudante de direito na Universidade de Harvard que William Moulton Marston entrou em contato com os ideais do feminismo e com a luta pela igualdade de gêneros, graças a um professor de Filosofia, George Herbert Palmer, viúvo de uma grande defensora da causa. O futuro criador da Mulher-Maravilha viu o movimento das ligas pelo sufrágio feminino, que pululavam pelo país, e testemunhou a estreiteza de pensamento dos dirigentes da universidade, que literalmente fecharam as portas para a sufragista Emmeline Pankhurst, célebre e perseguida ativista do direito do voto para as mulheres, convidada por um grupo a dar uma palestra no local.

Pode-se dizer que, juntos, Emmeline Pankhurst e George Herbert Palmer salvaram a vida de Marston. No auge de seus 18 anos, irritado com uma disciplina que julgava inútil na faculdade, o jovem chegou à conclusão de que uma vida sem sucesso não valia a pena. Ele chegou a adquirir um frasco de cianureto para cometer suicídio, mas, por sorte, conheceu o professor Palmer e Emmeline Pankhurst e passou a enxergar um novo propósito na vida. Eles deram ao estudante algo em que acreditar – algo por que lutar. E inspiração não apenas para uma vida fora do comum, com um relacionamento simultâneo com duas mulheres na primeira metade do século XX, mas também para a criação de uma das maiores personagens dos quadrinhos.

No futuro, esse namoro sombrio com o suicídio reverberaria nas histórias da Mulher-Maravilha. Assim como o detector de mentiras inventado por Marston, com base na pressão arterial, serviu de ponto de partida para o laço de Héstia, arma das amazonas que obriga a pessoa amarrada a dizer a verdade mesmo contra a vontade, e também o gosto do autor pela prática sadomasoquista do bondage – que influiu na escolha da corda como arma. A substância que o psicólogo elegeu para tirar a vida seria a aposta do primeiro vilão de sua heroína, um químico que trabalhava na construção de uma bomba de cianureto. Seu nome era Dr. Veneno – como a Dra. Veneno vivida pela espanhola Elena Anaya (A Pele que Habito) no filme dirigido por Patty Jenkins para a Warner. Jill Lepore, historiadora e colunista do New Yorker, conta os acontecimentos no livro A História Secreta da Mulher-Maravilha (tradução de Érico Assis, 480 páginas, 64,90 reais).

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.