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Brasil

Amazônia: o que pensa quem vive nela

VEJA foi ao Amapá para ouvir índios Waiãpi e comunidade de castanheiros a respeito da extinção da Renca

por João Pedroso de Campos (texto) e Egberto Nogueira (fotos e vídeo), do Amapá Atualizado em 25 set 2017, 20h56 - Publicado em
2 set 2017
12h17

A autorização para a atividade mineradora em 21% da área da Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca), decretada pelo presidente Michel Temer no último dia 23 de agosto, desencadeou uma onda de protestos encabeçada por gente internacionalmente conhecida, como a modelo Gisele Bündchen e o ator Leonardo DiCaprio, ganhou a adesão de artistas brasileiros e atenção da imprensa estrangeira. Diante da grita mundial, que o acusava de vender a Amazônia a mineradoras, e de trombadas entre ministros de seu governo, o presidente recuou. Primeiro, revogou o decreto e editou um novo, com explicações sobre os termos da exploração mineral na Renca. Na última quinta-feira, já depois de um juiz revogar o decreto, o Ministério das Minas e Energia comunicou a suspensão dos efeitos da medida por 120 dias e anunciou a intenção de “debater com a sociedade” sobre a extinção da reserva. A medida governista ameaça, de fato, a preservação da floresta e procura atrair mineradoras ao local. Contudo, o cenário não é o que se espalhou pelas redes sociais.

VEJA visitou áreas de preservação dentro da Renca na semana passada e constatou a aflição real de indígenas e de uma comunidade extrativista voltada à exploração sustentável de castanhas. 

O decreto trouxe de volta as piores memórias da tribo Waiãpi. Espalhada por 6.000 quilômetros quadrados em áreas de densa floresta amazônica no Amapá, a etnia tinha uma população de cerca de 230 índios até a década de 70, quando teve o primeiro contato com o homem branco. Desde então, teve cerca de 80 membros mortos, em grande parte devido à mineração clandestina no centro-oeste do Estado. Conflitos decorrentes de invasões de garimpeiros e, sobretudo, o sarampo, contraído deles e também de operários de obras viárias, reduziram a população a 151 pessoas. A tribo, cujas terras foram demarcadas em 1996, tem hoje cerca de 1.300 membros, um crescimento de 49% em relação à população de 874 pessoas registrada em 2010, pelo Censo Demográfico do IBGE.

Eleito vereador da cidade de Pedra Branca do Amaparí (AP), que tem 15.000 habitantes e abriga parte do território da tribo, Jawaruwa Waiãpi é um dos líderes da etnia. Ele relata que os índios do grupo sequer tinham conhecimento da existência da Renca quando Temer a extinguiu. “O povo Waiãpi conhece as unidades de preservação [dentro do território da reserva mineral], e não a Renca. Não sabíamos que existia. Soubemos quando apareceu esse decreto presidencial. Na nossa cultura não existe mineração e exploração”, afirma ele, que em 2018 disputará uma vaga na Câmara dos Deputados pelo Amapá.

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(Arte/VEJA)

Embora o decreto presidencial mantenha a proibição ao desmatamento e à mineração nos territórios indígenas e nas reservas ambientais e extrativistas englobadas pela Renca, o vereador teme possíveis invasões do território da tribo por uma nova onda de garimpeiros clandestinos, trazidos no vácuo dos grandes empreendimentos, o desmatamento e a contaminação de rios e sua fauna com substâncias tóxicas e metais pesados, como o mercúrio. Não sem razão. Um estudo conduzido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a ONG WWF Brasil analisou 187 peixes  no Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, vizinho ao território Waiãpi, e na Floresta Nacional do Amapá e chegou a uma conclusão alarmante. Entre os espécimes examinados, 151 (ou seja: 81%) tiveram mercúrio detectado. Peixes de cinco das oito espécies mais consumidas na região apresentaram níveis da substância acima do limite fixado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 0,5 micrograma do metal para cada grama de tecido muscular.

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A falta de informação e diálogo antes da liberação de garimpo privado na reserva mineral também causou revolta por ali. “Não somos crianças, somos líderes. Por que o líder do Brasil não veio conversar primeiro, antes de assinar? Por que ele não consultou a sociedade? É insustentável o que ele está fazendo”, critica Jawaruwa Waiãpi, que em um vídeo publicado na internet cita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da ONU, cujo conteúdo prevê consulta a povos “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

Não somos crianças, somos líderes. Por que o líder do Brasil não veio conversar primeiro, antes de assinar?

Jawaruwa Waiãpi, vereador e liderança indígena

“Se esse diálogo não é estabelecido, é muito difícil que durante o processo se consiga encontrar formas de garantir que as culturas sejam preservadas. Na Amazônia, esse é um risco tremendo em grandes projetos”, afirma Cassandra Pereira de Oliveira, uma das gestoras do Parque do Tumucumaque, que faz fronteira com a reserva indígena.

Ao comunicar que os efeitos do decreto e os “procedimentos relativos a eventuais direitos minerários na área da Renca” seriam suspensos por 120 dias, o Ministério das Minas e Energia, comandado por Fernando Bezerra Filho, declarou que “dará início a um amplo debate com a sociedade sobre as alternativas para a proteção da região. Inclusive propondo medidas de curto prazo que coíbam atividades ilegais em curso”.

Além das más lembranças e temores que a mineração traz aos Waiãpi, para os membros da tribo os caminhões e máquinas que exploram o solo ferem de morte Yvy Jarã, a entidade espiritual responsável pela terra. “Faz tempo que estamos preocupados com nossa terra e agora ouvimos esse decreto. Nós não queremos ter mineração onde vivemos em paz, onde bebemos água, onde sustentamos nossos filhos e netos. Essa terra quem fez para nós é o nosso dono”, diz Jurara Wajãpi, de 70 anos, um dos chefes da tribo, em declaração traduzida pelo professor Viseni Wajãpi, um dos poucos membros da tribo fluente em português – a língua deles é o Waiãpi, uma variante do Tupi-Guarani.

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A tribo se divide em 92 aldeias pequenas e familiares (algumas já na Guiana Francesa), desmontadas e remontadas de tempos em tempos em outras localidades da floresta. As ocas são erguidas a partir de colunas de troncos de árvore, nas quais são fixadas redes, e cobertas por tetos de palha. “As aldeias são abandonadas depois de cinco a seis anos, quando os recursos a sua volta se esgotam, como áreas para roça, materiais para construir casas, lenha, animais caçados e peixes”, explica a antropóloga Dominique Tilkin Gallois, da Universidade de São Paulo, que estuda e convive com os Waiãpi há quarenta anos. Ela pondera, contudo, que a etnia não é nômade – as novas aldeias são abertas de cinco e 20 quilômetros de distância do ponto de partida.

Não há energia elétrica nas aldeias Waiãpi. Seus líderes, ou chefes, decidiram dispensar os postes do programa federal Luz Para Todos para preservar a cultura e manter as aldeias descentralizadas, prática da etnia que facilita a vigilância dos limites de seu território.

Apesar do apego às tradições e do distanciamento com a cultura branca, o isolamento não é total. A estrutura da aldeia visitada por VEJA na semana passada, a cerca de 100 quilômetros de Pedra Branca do Amaparí, comporta uma unidade de saúde onde trabalham técnicos de enfermagem, enfermeiros e um médico cubano do programa Mais Médicos, um posto da Fundação Nacional do Índio (Funai), o Centro de Documentação Waiãpi e uma escola. Há sessenta índios da etnia cursando o magistério indígena para atuarem em aldeias e outros que se dedicam à licenciatura intercultural no campus da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) no Oiapoque. “A intenção é depender menos dos não índios”, afirma Jawaruwa Waiãpi.

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Castanheiros temem por economia

Os cerca de trezentos moradores da vila São Francisco do Rio Iratapuru também se assustaram com a notícia de que o governo abrirá caminho para mineração em 21% da área da Renca. Mesmo localizados em uma área que sempre foi e segue protegida, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru, também visitada por VEJA, a comunidade teve suas casas derrubadas depois da conclusão da hidrelétrica de Santo Antônio do Jari, em 2014. A empresa responsável pela obra construiu as novas moradias no mesmo padrão, em madeira, a cerca de 500 metros do local original, mas ficou a desconfiança de projetos grandiosos.

No caso da abertura para a mineração, o temor é de que a corrida do ouro nas áreas onde a exploração será permitida se torne tão competitiva que garimpeiros clandestinos abram frentes de exploração ilegal, promovam o desmatamento de áreas em que os membros da vila tiram o sustento, os castanhais, e contaminem cursos d’água. A comunidade fica às margens do Rio Jari, no município de Laranjal do Jari (AP), fronteira do Amapá com o Pará, região onde seus membros já convivem com a ameaça da pesca predatória.

“Esse decreto é sem fundamento, porque não houve nenhuma consulta a esse povo que está dentro da floresta, não tem avaliação técnica. É insustentável”, afirma Aldemir Pereira da Cunha, presidente da Cooperativa Mista dos Produtores Extrativistas do Rio Iratapuru, criada em 1992, cinco anos antes da demarcação da reserva.

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Baseada até os anos 1990 na exploração de látex das seringueiras, a economia local gira hoje em torno da colheita de castanhas nos mais de 120 castanhais espalhados pelos 8.000 quilômetros quadrados de extensão da reserva. “Se acabar a castanha, acabou a gente”, diz a castanheira Teresinha de Jesus Rodrigues, de 58 anos.

As castanhas são colhidas pelos membros da comunidade, que em abril de cada ano partem para dentro da mata em grupos de cerca de 25 pessoas e de lá só saem em julho, quando termina a época de colheita. O local mais próximo de coleta da matéria prima fica a duas horas do centro da vila da reserva, de barco. O mais distante, a três dias de viagem. O único meio de acesso à comunidade são barcos motorizados, as chamadas voadeiras.

Se acabar a castanha, acabou a gente.

Teresinha de Jesus Rodrigues, castanheira, 58 anos
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O resultado dos quatro meses de trabalho dos castanheiros dentro da floresta é processado dentro de uma fábrica de óleo de castanhas, criada em 2000 nas imediações da vila de São Francisco do Rio Iratapuru e gerida pela cooperativa dos castanheiros. O empreendimento, onde trabalham 34 pessoas, funciona entre julho e dezembro. Desde 2004, a produção de óleo da comunidade é vendida integralmente à Natura, que transporta mensalmente, em média, conforme a cooperativa, cinco toneladas do produto até uma fábrica em Belém.

O quilo de óleo produzido na reserva do Iratapuru é vendido à empresa por 137 reais. Segundo o presidente da cooperativa de castanheiros, a Natura também paga à comunidade 0,5% de royalties referentes a produtos que tem em sua composição na resina chamada breu branco, retirada das árvores do breu dentro da reserva. O dinheiro é depositado em um fundo, que custeia projetos sociais e ajuda a financiar os estudos de jovens da comunidade em universidades.

Além da fábrica de óleo de castanha, a comunidade tem uma escola com 68 alunos e um centro médico.

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