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Um poeta contra a luz que se apaga

Em mais de meio século de atividade, Dylan nunca ficou parado o bastante para ser classificado. Inquietude é sua reação furiosa contra o tempo e a morte

Por Eurípedes Alcantara
Atualizado em 17 out 2016, 10h22 - Publicado em 15 out 2016, 13h35

Os sete integrantes do comitê de literatura do Prêmio Nobel deram, na quinta-feira passada, o prêmio de 2016 a Bob Dylan, autor de Blowin’ in the Wind e Like a Rolling Stone, hinos da geração libertária dos anos 1960. O que isso significa? Primeiro, o óbvio. Os membros do comitê quiseram premiar Dylan. Em 1974, eles quiseram premiar dois literatos que haviam sido eles próprios juízes do comitê sueco: Eyvind Johnson ganhou “pela arte narrativa e pela capacidade de enxergar longe entre terras e eras”, e Harry Martinson, “por escritos que em uma gota de orvalho refletem o cosmos”. Tudo bem, mas, para eternizarem os colegas, os membros do comitê sueco tiveram de barrar as candidaturas de Vladimir Nabokov (Lolita), Graham Greene (O Fator Humano) e Saul Bellow, que foi agraciado dois anos depois. Ainda mais ilustrativo do poder discricionário dos membros do comitê sueco é o fato de o satirista italiano Dario Fo ter ganho o Nobel (1997) e nunca ter sido premiado com o Nobel o argentino Jorge Luis Borges, o mais universal, influente e original criador em idioma espanhol do século passado.

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Por mais histórico e litúrgico que seja, o Prêmio Nobel de Literatura é resultado de uma escolha acadêmica, porém humana, política, falível, discutível e apenas ocasionalmente unânime. A escolha de Bob Dylan está longe de ser unanimidade. O escocês Irvine Welsh, que escreveu e adaptou para o cinema em 1996 o romance Trainspotting, resumiu a perplexidade dominante em certos círculos. Tuitou Welsh: “Sou fã de Dylan, mas esse prêmio é apenas uma nostalgia equivocada e rançosa das próstatas senis de hippies delirantes”. Sara Danius, secretária permanente do Comitê do Nobel de Literatura, recorreu ao título de uma das canções de Dylan para explicar por que premiar um poeta que cria versos não para ser lidos, mas ouvidos acompanhados de música, segundo ela, “na tradição de Safo e Homero”. Disse Sara Danius: “The times they are a-changin’ ” (“Os tempos estão mudando”). Danius poderia ter lembrado também dos Camerata, grupo de homens da Renascença, entre eles Vincenzo Galilei — pai de Galileu Galilei, um dos criadores do mundo moderno —, que, ao recuperar a tradição grega de poesia cantada e acompanhada de instrumentos, inventou a ópera. Enfim, Dylan ganhou o Nobel por ser autor de uma obra poética que, tendo raízes profundas na história, está viva e vai permanecer influente no horizonte visível da civilização ocidental.

Será que, em vez de ler, Dylan vai cantar o discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura? Improvável. Dylan tem sido agraciado com medalhas e títulos de professor honorário por diversas universidades. Ele recebe as honrarias vestindo roupas estranhas e com ar constrangido. Compareceu de gravata-borboleta e óculos de sol à cerimônia em que o presidente americano Barack Obama pendurou, há quatro anos, em seu pescoço a Medalha da Liberdade. Atrás das lentes escuras, quem sabe, ele repassava os versos finais da assombrosa The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest: “The moral of the story; the moral of this song; is simply that one should never be where one does not belong” (“A moral dessa história; a moral dessa canção; é a de que você deve cair fora logo de um lugar onde você não se encaixa”).

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Dylan nasceu Robert Allen Zimmerman, há 75 anos, em Dulluth e se criou na vizinha Hibbing, uma drummondiana Itabira americana, pequena cidade plantada sobre e cercada de jazidas de ferro, no Estado de Minnesota. Escolheu o nome artístico de Bob Dylan em homenagem ao poeta galês Dylan Thomas. O verso de Dylan Thomas de que ele mais gosta prega a luta, mesmo que inútil, contra a morte: “Do not go gentle into that good night / Old age should burn and rave at close of day /Rage, rage against the dying of the light” (“Não entre sem resistência pela noite da boa morte / A velhice tem de arder e imprecar quando o fim estiver próximo / Fúria, fúria contra a luz que se apaga”). Com sua incansável turnê de shows ao vivo, a Never Ending Tour, Dylan vem encarnando a pregação do poeta galês. A cada subida ao palco da turnê mundial, Bob Dylan toca (teclado, pois a dor na coluna não lhe permite mais segurar a guitarra), canta, grita e tosse sua fúria contra a luz que se apaga.

Dylan Thomas pouco aparece distintamente nas letras de suas canções. Mas Dylan homenageou, deixou-se influenciar, foi tocado, inspirado e até plagiou (pouquíssimo, é verdade) grandes poetas — principalmente o inglês nascido nos Estados Unidos T.S. Eliot, o James Joyce da poesia, e o londrino John Keats, morto em 1821, de quem se diz ter sido o último romântico, embora ele próprio nunca soubesse ter sido romântico e, muito provavelmente, se revoltaria contra essa classificação. Dylan, por seu turno, nunca ficou parado o suficiente para ser classificado. Quando parecia se estabelecer como um compositor e cantor folk, abandonou o violão acústico pela guitarra elétrica, abrindo horizontes temáticos e líricos para o ­rock. Quando os jovens do fim dos anos 60 acharam ter encontrado em Dylan seu maior cantor de protesto, ele escapou de novo. Em 1969 foi ausência sentida no festival de Woodstock. Pretextou um grave acidente de motocicleta para se enfurnar em um sítio nas montanhas. Montou um estúdio no porão de casa e passou anos compondo e gravando com seus únicos amigos de então, os integrantes do grupo canadense The Band.

O resultado do mítico retiro na companhia de Robbie Robertson, Richard Manuel, Garth Hudson e Rick Danko revolucionou a música americana. Reunidas sob o título de The Basement Tapes, as canções do porão tiveram na cultura pop o efeito de um experimento nuclear subterrâneo. Dylan se tornara não só o demiurgo da geração de protesto americana, mas também a força tectônica a influenciar o pensamento e o comportamento de milhões de jovens em todo o mundo. “Só uma coisa me interessava nos Estados Unidos além do blues: Dylan”, disse o guitarrista inglês Eric Clapton. Com o verso “I don’t believe in Jesus; I don’t believe in Zimmerman”, John Lennon tentou negar Dylan, mas tudo o que conseguiu foi endeusá-lo ainda mais, comparando-o ao filho do Todo-Poderoso.

A força artística notável de Bob Dylan está mesmo em se reinventar, radical e dramaticamente. Está em destruir pontes, queimar as caravelas, cortar laços consigo mesmo e seguir em frente de peito aberto em busca de novos sons, de palavras e notas. “Well, there ain’t no goin’ back” (“Não tem volta”), decreta na canção Foot of Pride.

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“I ain’t lookin’ to simplify you, classify you / Deny, defy or crucify you… Frighten you or tighten you / Drag you down or drain you down / Chain you down or bring you down… Race or chase you, track or trace you / Or disgrace you or displace you / Or define you or confine you… Or select you or dissect you / Or inspect you or reject you.”

Nos versos da canção acima, All I Really Wanna Do, Dylan lança seu manifesto. Ao contrário de outros manifestos da arte contemporânea, que precedem a obra, o manifesto de Dylan é a obra. Dylan é o artista que se recusa a ser simplificado, classificado, negado, desafiado ou crucificado. É o poeta que ninguém conseguiu amedrontar, amarrar, derrubar, desidratar, acorrentar ou diminuir, e que também não se propõe a correr atrás, caçar ou imitar nenhum outro. Tampouco é seu objetivo destruir, tomar o lugar, definir, selecionar, dissecar, inspecionar ou rejeitar ou confinar. Esse é o poeta que ganhou o Nobel.

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