‘Sussurros’ descerra o horror da vida privada na Rússia stalinista
Obra do inglês Orlando Figes é pesada - não só pela quantidade de páginas, mas pelos relatos reais de constrangimento
Quem se impressionou com a opressão da liberdade individual vista no filme A Vida dos Outros, retrato da Alemanha comunista dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck e premiado em 2007 com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, vai se interessar igualmente por Sussurros (editora Record, 826 páginas, 84,90 reais). O tijolão do historiador londrino Orlando Figes é pesado não apenas pelo volume das páginas, mas pelas histórias e cenas que descreve. Refazendo a trajetória de famílias que viveram sob o domínio de Josef Stalin, um dos mais sanguinários ditadores do século XX, Sussurros mostra que a crueldade stalinista não se limitava à perseguição política dos inimigos do regime ou à coletivização forçada da terra – ela estava muito presente dentro de cada casa, alimentando desconfianças entre vizinhos e até entre casais, incutindo medo nas crianças e criando seres de vida dupla, que precisavam esconder no mais fundo da alma valores que destoassem do regime.
Stalin assumiu a liderança do Partido Comunista em 1928, quatro anos após a morte de Lênin. Sua influência sobre a União Soviética, porém, já se fazia sentir há muito, pois desde o início ocupou cargos de poder dentro do partido, do qual se tornou secretário-geral em 1922. Seu plano era de forjar o verdadeiro homem comunista, com mente e espírito permeados pela doutrina do regime, obediência absoluta às suas determinações e tempo totalmente dedicado à construção de uma sociedade comunista e coletivista – leia-se: de nenhuma liberdade individual. Além, é claro, de afastar a possibilidade de traição. A paranoia stalinista foi decisiva para a prisão e a morte de camaradas que, de uma hora para outra, eram considerados perigosos. “As atitudes e os hábitos que herdamos da antiga sociedade são os inimigos mais perigosos do socialismo”, afirmou, em 1924, Stalin.
Incentivar e premiar a delação, espalhando o terror, eram suas principais armas de controle, ao lado do combate a valores considerados burgueses – entre eles, a fé religiosa. Stalin, como mostra Sussurros a partir de personagens reais como o “escritor proletário” Konstantin Simonov, elevou a níveis extremos uma política de perseguição que já ditava rumos à União Soviética, com a realização de encontros para colher delações e a construção ou divisão de apartamentos entre diversas famílias (veja mais no quadro abaixo). Para tudo, o pretexto era o bem comum, ancorado na solidez do regime. “No 14º Congresso do Partido, em 1925, foi decidido que relatar uma conversa privada devia ser uma ação geralmente vista com maus olhos, mas não se a conversa fosse considerada ‘uma ameaça à unidade do partido'”, diz Figes em um trecho do livro.
Era natural que o controle do estado sobre os soviéticos produzisse “constrangimentos” na esfera particular, para usar um termo de Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Na ditadura soviética, a vida dupla era real para muitos segmentos da sociedade, sobretudo para aqueles que começaram a ver criticamente certas práticas do estado”, diz ele. Os constrangimentos se tornavam piores no caso de famílias que se viam obrigadas a dividir casa com outros grupos familiares, todos feitos de potenciais delatores. “Compartilhar imóveis é comum em países socialistas. É um processo que acarreta perda de individualidade e privacidade e que facilita o controle do estado a respeito daquilo que as pessoas pensam e exprimem”, diz outro especialista, Pedro Paulo Funari, que é coordenador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Um regime ditatorial contribui para a paranoia.”
Paranoia que se sustenta porque, segundo o historiador Angelo Segrillo, da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Pushkin de Moscou, as pessoas receiam dizer a verdade tanto pelo risco do ostracismo social quanto por temer pela própria vida. “A consequência é uma espécie de esquizofrenia social, com pessoas tendo uma forma de viver dentro de casa e outra persona no espaço público.”
Foi a conclusões como essa que a pesquisa realizada para erigir Sussurros conduziu Figes. O historiador investigou documentos levantados durante anos por uma extensa equipe de investigadores, entre cartas, fotografias e diários, e entrevistou os membros mais antigos de famílias atingidas pelo controle stalinista, que ajudaram a contextualizar os documentos. A média dos entrevistados – dos quais pelo menos 27 ou cerca de 6% da mostra já estão mortos – era de 80 anos. Todo o material foi reunido em um arquivo especial, que representa uma das maiores coleções de documentos sobre a vida privada no período de Stalin. Localizados nos arquivos da Memorial Society em Petersburgo, Moscou e Perm, a maioria está disponível também no site de Figes, parte em inglês.
Confira, abaixo, alguns dos trechos do recém-lançado Sussurros.