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“Pintando, eu era livre”, diz sobrevivente do campo de Terezin com mostra no Rio

Adolescente, a austríaca Helga Pollak fugia dos horrores da guerra desenhando a vida antes do campo de concentração, legado agora em exposição no Rio

Por Maria Clara Vieira
2 Maio 2016, 19h02

Instalado em uma velha fortaleza a 60 quilômetros de Praga, na antiga Checoslováquia, Terezin era uma espécie de campo de passagem onde os nazistas amontoavam judeus que depois mandavam para a morte em Auschwitz. A austríaca Helga Pollak chegou lá em 1943, aos 13 anos, acompanhada do pai (a mãe conseguiu fugir para Londres). Durante quase dois anos, morou no quarto 28 – um espaço minúsculo habitado por trinta meninas da mesma idade. Em meio à fome, ao frio e ao isolamento, elas tiravam alento das aulas de pintura dadas por outra prisioneira. Dos 3  000 desenhos e aquarelas que sobreviveram, quarenta estão na exposição As Meninas do Quarto 28, que já passou por seis países e pode ser vista no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, até 17 de julho. Aos 86 anos, morando em Viena, Helga contou a VEJA sua história.

O CAMPO “Morávamos em Viena quando o nazismo chegou. Eu e meu pai nos mudamos para a Checoslováquia, onde tínhamos família. Ali passei o último verão feliz da minha infância. Em 1943, fomos levados para o campo de Terezin. Éramos 1 000 pessoas espremidas em um trem. No campo, as crianças foram divididas por idade. Fiquei com outras meninas nascidas em 1930. Sozinha, carregando minha mala, entrei no prédio que me apontaram. Alguém disse que havia lugar no quarto 28. Parei na porta e, tímida, falei para as garotas que estavam lá: ‘Bom dia, sou Helga Pollak e me disseram que vou morar aqui’.”

O QUARTO “De janeiro de 1943 a outubro de 1944, moramos, trinta meninas, em um cômodo de 28 metros quadrados onde os únicos móveis eram alguns beliches. Minha pior lembrança é de crianças dormindo no chão, doentes e famintas. Recebíamos só café de manhã, batata estragada no almoço, duas vezes por semana um pouco de carne, nenhuma fruta ou verdura, um pedaço de pão a cada três dias. Meu pai perdeu 20 quilos porque me dava parte da comida dele. Os adultos nos favoreciam, porque viam em nós o futuro. Nosso quarto era infestado de carrapatos e percevejos. Só podíamos sair um pouco no fim da tarde. Se algum prisioneiro escapava, trancavam-nos a semana inteira. Ficava aterrorizada quando ouvia os soldados chegando. Às vezes levavam algumas meninas embora, para Ausch­witz, mas nós não sabíamos. Lembro quando uma das minhas melhores amigas se foi. Tive pesadelos a noite toda. Apesar de tudo, nunca achei que fosse morrer naquele quarto.”

OS DESENHOS “Havia muitos artistas e intelectuais judeus em Terezin. As mulheres mais velhas tentavam dar às crianças uma vida o mais normal possível. Friedl Dicker-Brandeis, famosa artista plástica austríaca, levou seu material de pintura para o campo e nos ensinou a desenhar. As horas com ela eram o ponto alto do dia, como estrelas na escuridão. Desenhávamos as coisas de que tínhamos saudade, detalhes do cotidiano antes da guerra e da família. Friedl dizia: ‘Pinte o que tem importância para você’. Durante a aula, esquecia tudo que não fosse aquela mesa grande, o material de pintura, o papel de má qualidade, às vezes de embrulho. Lá eu era livre.”

A SOBREVIVÊNCIA “Em outubro de 1944, fui levada para Auschwitz, onde passei cinco dias terríveis. Tosquiados como ovelhas, ficamos de pé, no frio, esperando nosso destino. Morrer ou viver era uma questão de sorte. Tive sorte: fui mandada para o trabalho forçado em uma fábrica de munições, onde fiquei seis meses. Aí veio o período das ‘marchas da morte’. Os nazistas estavam perdendo a guerra e tentavam tirar os judeus da rota dos aliados. Éramos transportados em trem de gado, até 100 pessoas de pé em cada vagão aberto, no frio e sem comida.”

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A LIBERTAÇÃO “Depois de sete dias, descemos do trem perto de Terezin e caminhamos de volta para lá. Eram os últimos dias da guerra. Os nazistas estavam queimando documentos e a Cruz Vermelha se preparava para entrar. Fui posta em quarentena em uma barraca, porque os ‘trens da morte’ carregavam o risco de tifo. Pude vestir roupas limpas e deitar-me em uma cama com cobertor e travesseiro. Eu me senti um ser humano de novo. Meu pai me localizou e, um mês depois, voltamos para nossa cidade na Checoslováquia, esperando o resto da família. Só um primo chegou, muito doente. Perdi sessenta parentes.”

O REENCONTRO “A guerra já tinha acabado fazia quarenta anos quando uma companheira do quarto 28 teve a ideia de organizar uma reunião das quinze sobreviventes em Praga. Algumas não quiseram ir, para não ter de lembrar-se. No primeiro de vários encontros, éramos quatro ou cinco. Foi inesquecível. Rimos, choramos e rodopiamos na recepção do hotel, com as pessoas em volta nos olhando, espantadas. No começo, falávamos de tudo, menos da guerra. Aí nos lembramos das amigas que não sobreviveram – meninas sem túmulo, sem nome, que não viviam na lembrança de ninguém. Foi então que resolvemos fazer o livro As Meninas do Quarto 28.”

O PÓS-GUERRA “Passei muitos anos esforçando-me para não me lembrar da guerra. Não pensava nem nos parentes que tinham morrido. Reencontrei minha mãe em Londres, casei-me e fui morar na Tailândia e depois na Etiópia – lugares onde não havia resquício de tudo o que queria esquecer. Tive dois filhos e por muito tempo não toquei no assunto. Um dia, conheci uma produtora que fazia um documentário sobre o campo de Terezin. Mostrei-lhe meu diário, e ela ficou tão entusiasmada que senti ter algo importante para contar. Desde então, venho compartilhando minhas memórias. Sofri muito com pesadelos sobre a guerra. Hoje não sonho mais com isso.”

Desenho feito no campo: cores para controlar a saudade
Desenho feito no campo: cores para controlar a saudade (VEJA)
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