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Os espirituosos choques de realidade de ‘Capitão Fantástico’

Para imitar ou internar? Viggo Mortensen brilha em uma versão radical do papai-sabe-tudo

Por Isabela Boscov Atualizado em 23 dez 2016, 23h45 - Publicado em 23 dez 2016, 21h47

Uma cena que eu adoro: pela primeira vez em uma mesa “civilizada”, os seis filhos de Ben Cash ouvem a tia cantar as glórias do jantar que está servindo – a galinha, os vegetais, tudo é orgânico e produzido localmente, diz ela. Uma das crianças mais novas pergunta, genuinamente interessada: “Você matou a galinha com um machado ou um facão?”. A tia, desconcertada, admite que nunca viu a cara do bicho quando ele estava vivo; ele veio assado e cortado de uma rotisserie – e tem então de explicar, muito sem-jeito, o que é “rotisserie”, enquanto vê todas as chances de conquistar alguma admiração sumindo bem diante dos seus olhos. Os filhos de Ben Cash não compram frango em rotisserie, seja ela orgânica, inorgânica ou qualquer outra coisa: os filhos de Ben caçam a própria comida. Com facão, machado ou arco-e-flecha, conforme a presa.

Na verdade, gosto de todas as cenas de Capitão Fantástico, uma a uma e em conjunto. Que filme gracioso, que fala de um pai que erra fragorosamente, é claro (como qualquer pai), mas inventa quantas horas no dia forem necessárias para os filhos, e pensa na educação deles como uma missão suprema – não só um projeto de criá-los para o mundo, mas também de capacitá-los para criar o mundo em que viverão. Capitão Fantástico sabe, ainda, evocar uma sensação de liberdade e independência na infância que quase já não existe mais. É pequeno e modesto, mas sente-se que foi cercado de cuidados, em todas as suas etapas, pelo elenco formidável e pelo seu diretor e roteirista – o ator Matt Ross, que, por ironia, é conhecido pelos personagens antipáticos e egocêntricos (nos quais ele é um arraso), como o herdeiro mórmon desequilibrado de Big Love e o todo-poderoso Gavin Belson de Silicon Valley. Pelo trabalho dele aqui, porém, só posso deduzir que Matt Ross é um doce de pessoa. Prova irrefutável: a afinidade entre ele e o maravilhoso, único e incomparável Viggo Mortensen.

Ben Cash, o personagem de Viggo, é um radical anti-sociedade de consumo. Mas não é um desses tipos, digamos assim, pré-analíticos, como o pai ripongo, vamos-abraçar-a-natureza, do francês Vida Selvagem, que foi lançado aqui este ano. Ben e a mulher criaram os seis filhos na floresta, caçando, plantando e tocando violão ao redor da fogueira, mas o fizeram com uma estrutura e uma capacidade de planejamento de dar inveja a mãe chinesa. Literatura clássica e moderna, história e atualidades, física (inclusive quântica) e matemática – o currículo acadêmico dos Cash não só é muito avançado, como é insistentemente cobrado; a vida com Ben é uma chamada oral constante. O preparo físico da criançada, também, é coisa de fuzileiro naval. Toca correr montanha acima todo dia, e fazer flexões, e escalar pedras nuas. Tudo sem choro nem vela; quando um dos meninos machuca feio a mão durante uma escalada. Ben manda ele se acalmar, e aguentar, e continuar. “Ou você sai dessa sozinho, ou não sai”, avisa o pai.

Ben, em suma, tem um viés que, se não chega a ser tirânico, é pelo menos inflexível. Mas, na interpretação de Viggo, essa rigidez vem combinada a uma serenidade, uma doçura e um humor que tornam Ben imensamente carismático. Alguns dos filhos estão, sim, à beira da rebelião. Mas nem esses conseguem deixar de responder à influência gravitacional do pai, ou de resistir ao apelo da vida que ele criou para eles: filmado um pouco na veia de Wes Anderson (lembrei algumas vezes de Moonlight Kingdom enquanto assistia ao filme), Capitão Fantástico recria a impressão do mundo como algo vasto, à espera de ser explorado, de uma beleza como ela existe nos olhos da infância e da adolescência – colorido, cheio de luz e feito de momentos marcantes, que ficam na memória.

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Já a mulher de Ben é um caso delicado – e o que dá mote ao filme. Depois de anos atormentada por problemas mentais, ela finalmente foi internada em uma clínica, por insistência dos seus pais ricos (Frank Langella e Ann Dowd, excelentes) e com o consentimento relutante de Ben. Mas ela acabou de se suicidar na internação. Ben, conforme sua filosofia, dá a notícia tal e qual aos filhos. Eles se desesperam, querem ir ao enterro. E Ben, que foi ameaçado com polícia e xadrez pelo sogro, decide que eles vão de qualquer jeito. Mete todo mundo no ônibus que é o transporte da família e se aventura com a cria na civilização.

Claro que é dos choques que virão daí que Capitão Fantástico trata. Eles não deixam de ser previsíveis, mas são mais espirituosos do que se poderia imaginar. Falta traquejo social às crianças, é evidente – o mais velho, Bodevan (o ótimo George MacKay), troca uns beijos com uma menina em um camping e já sai propondo casamento, porque não tem ideia do que mais poderia fazer. Com suas roupas que parecem catadas de qualquer jeito em brechó, todos eles dão na vista. Mas em outros aspectos são tão mais preparados, confiantes, independentes e corajosos que qualquer adulto ou criança à sua volta que fica difícil fechar a conta: Ben errou mais do que acertou, ou acertou mais do que errou? Ao mesmo tempo em que está claro que seus filhos não podem ser criados tão à parte do mundo, dói no coração pensar de quais coisas, exatamente, eles terão de abrir mão para se encaixar – porque fica o pressentimento de que algumas delas são valiosas e não se deveriam perder. Na boa, acho que se eu tivesse 15 anos e fosse obrigada a escolher, sem meio-termo, entre o pai excêntrico e a tia da rotisserie orgânica, ficaria sem sombra de dúvida com o pai. Mas que o frango estava bonito, isso estava mesmo.

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