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O baterista

Todo problema virava uma questão a ser resolvida através da bateria. Ansiedade? Ah, se eu puder tocar cada vez mais lentamente, aniquilarei a ansiedade! (...) Percebi que, quanto mais se tem domínio sobre o andamento lento, mais maturidade musical se adquire. E isso vale para o resto das coisas da vida. Do sexo à conversa de botequim

Por Lobão
3 Maio 2014, 09h05

Um dia desses, em visita a uma redação de jornal, uma das editoras, talvez por ca­coe­te de profissão, perguntou qual era a minha formação. Sem pensar muito, respondi: “Sou baterista. Baterista autodidata”.

Refletindo melhor depois, vi que a resposta não poderia ser outra. Penso como baterista, percebo e deduzo o mundo ao meu redor como baterista. Expandi meu universo de interesses e angariei uma série de outros ofícios a partir desse.

Tocar bateria, pra mim, se confunde com o tempo em que aprendi a andar. Talvez por ter adquirido sozinho e tão cedo essa habilidade, acabei por desconfiar de qualquer tipo de professor que não fosse aquele que designasse.

Todas as pequenas descobertas que fazia quando criança, e que me causavam intensas alegrias, eram sempre relacionadas ao fato de tocar bateria: todo número ímpar somado a si mesmo vira par. Toda proparoxítona é uma quiál­te­ra. O ritmo ternário induz ao círculo, à espiral – daí a valsa. O binário tem a ver com o sexo, com a guerra – por isso o samba, a marcha.

Todo problema virava uma questão a ser resolvida através da bateria. Ansiedade? Ah, se eu puder tocar cada vez mais lentamente, aniquilarei a ansiedade! Sim, pois se você estiver ansioso jamais conseguirá seguir um andamento lento com conforto e naturalidade (experimente baixar no seu celular um daqueles aplicativos de metrônomo e tente acompanhar um ritmo qualquer com os dedos. Em seguida, vá diminuindo gradativamente o andamento e verá a dificuldade que é manter a precisão na proporção em que ele cai).

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Percebi que, quanto mais se tem domínio sobre o andamento lento, mais maturidade musical se adquire. E isso vale para o resto das coisas da vida. Do sexo à conversa de botequim.

Quem sabe toda criatura que ama seu ofício seja conduzida a enxergar o mundo sob a ótica dessa atividade. Para mim é assim. A bateria me apresentou conceitos como temperança, arrojo, contenção, paciência, concentração, precisão e também convicção (essa não tem porcentual: se você é 99,9% convicto, você é um vacilão). Também me ensinou a ver o outro: para saber tocar, antes de mais nada, é preciso aprender a ouvir. E a respirar, imaginar, entender o silêncio e o tempo.

Minhas primeiras indagações sobre a alma tiveram a mesma origem: vieram da relação de gratidão que passei a ter com a minha independência motora. Afinal, se eu possuía membros de uma solicitude comovente (meus pés, meus braços, meu calcanhar – todos em sincronia com a minha vontade), onde minha alma habitaria? De onde partiria a vontade de organizar as ordens para o resto do corpo? A partir de que ponto eu não teria mais a fronteira que separa o que é meu (meu corpo) do lugar que eu verdadeiramente habito?

E assim, impelido pela curiosidade e pela autoconfiança que a bateria me proporcionou, parti para outras várias atividades. Escrever foi uma das primeiras. Quando escrevia, sentia que as vírgulas eram as viradas dos tambores. A exclamação, a explosão dos pratos. A poesia, o fluir sonoro de uma levada.

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Tocar um instrumento nos desenvolve profundamente como indivíduos e nos educa para conviver numa coletividade – o aprendizado deixa clara a ordem natural das coisas: primeiro é preciso construir-se.

Por isso decidi fazer esta pequena homenagem ao meu principal e primevo ofício – um sinal de gratidão e amor àquilo que me tornou uma pessoa melhor, mais útil e mais criativa. Desejo do fundo do coração que cada leitor experimente intensamente essa paixão.

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