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“Não retornarei à Venezuela enquanto a ditadura persistir”

A pianista venezuelana critica o autoritarismo e a violação de direitos humanos nos governos Chávez e Maduro - e ataca o silêncio conivente de colegas músicos sobre a situação do país

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 26 mar 2014, 16h22

“Tenho medo de visitar a Venezuela e não voltarei ao país enquanto a ditadura persistir. Não quero correr riscos”

Gabriela Montero, de 43 anos, tem uma sólida carreira internacional como pianista, com portas abertas nas principais salas de concerto do mundo. Há oito anos, desde que deixou a Venezuela por temor da instabilidade, ela mora em Los Angeles – mas vem acompanhando com indignação a escalada de violência em seu país natal. É uma crítica eloquente do autoritarismo do governo de Nicolás Maduro, que desde fevereiro reprime brutalmente os protestos de rua. Nas redes sociais, a pianista posta notícias que recebe da Venezuela – e ataca a omissão de personalidades como o maestro Gustavo Dudamel diante dos crimes do governo. Da Itália, onde cumpria uma agenda de recitais, Gabriela falou a VEJA sobre sua revolta diante da situação na Venezuela.

O que a levou a deixar a Venezuela?

Vivi em Caracas de 2003 a 2006. Fui testemunha direta do processo de deterioração sistemática pelo qual a Venezuela passou naqueles anos. Percebi, por exemplo, quanto nossas liberdades foram tolhidas pouco a pouco. Participei ativamente dos protestos em 2004, contra o presidente Hugo Chávez. E, sendo mãe de duas meninas, decidi sair do país quando percebi que não era mais seguro viver lá. Estou muito feliz por ter tomado essa decisão. Acredito que temos direito a viver em uma sociedade em que a vida humana é valorizada, não em uma sociedade que tem de se submeter a altas taxas de criminalidade e em que os alimentos e produtos básicos são escassos, apesar do influxo de capital na economia. Acima de tudo, eu acredito na democracia, não no comunismo. Hugo Chávez era um ditador, e Nicolás Maduro segue a mesma cartilha política de seu antecessor. Nos últimos quinze anos, a Venezuela tem passado por uma terrível provação. Mas acho que podemos superar este momento difícil graças à vontade do povo e à coragem dos estudantes que estão saindo às ruas para protestar. Só assim livraremos a Venezuela dessa cleptocracia violenta.

A senhora tem medo de retornar?

Sim, tenho. E não retornarei enquanto persistir a ditadura no país. Não me sinto segura em visitar a Venezuela e não quero correr riscos desnecessários, muito menos pôr minhas duas filhas em risco.

Em suas postagens nas redes sociais, a senhora tem noticiado o que está acontecendo na Venezuela, sempre com imagens fortes de pessoas que sofreram abuso do governo Maduro. Como obtém tanta informação?

Recebo centenas de mensagens e notícias todos os dias. A maior parte desse material vem do meu público, desesperado por mostrar o que acontece de fato na Venezuela – que atualmente vive sob forte censura. Minha página nas redes sociais é a única saída que essas pessoas encontraram, e por isso acabei me tornando uma fonte de informação para a comunidade internacional.

A senhora tem recebido notícias sobre tortura?

Sim. E são imagens e relatos tenebrosos.

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No ano passado, durante um concerto em Curitiba, a senhora foi insultada aos gritos por um militante chavista quando tentou falar da situação política na Venezuela. Como foi esse episódio?

Foi uma prova de que muitas pessoas ainda ignoram que na Venezuela atualmente existe, sim, uma ditadura. Antes de Maduro, Chávez gastou uma quantia obscena de dinheiro para angariar simpatizantes no mundo inteiro, tudo para criar a imagem de uma utopia socialista venezuelana. Mas as pessoas que ainda hoje ignoram o que está acontecendo no país ou são manipuladas ou são ingênuas – ou então recebem benefícios diretamente do governo. Seria leviano da minha parte afirmar que o sujeito que me atacou no concerto de Curitiba foi plantado ali por alguém do governo Maduro. Tudo o que eu disser a respeito das motivações dele será apenas especulação. Por mais que o ataque me tenha deixado perturbada, foi bonito receber o apoio da orquestra e do público presente naquela noite. Não foram poucos os que me ofereceram solidariedade após o concerto, o que me leva a acreditar que o mundo está acordando para o que realmente se passa na Venezuela.

“Este é um momento em que silenciar para preservar os próprios interesses configura uma irresponsabilidade. A música não pode estar acima do dever cívico ou da denúncia de um Estado que se tem provado criminoso”

A senhora criticou os dirigentes do Sistema, projeto venezuelano de inclusão social através do ensino de música, por não se terem posicionado contra a violência com que o governo Nicolás Maduro responde às manifestações de rua. Qual sua avaliação do projeto e da relação dele com o governo?

Não tenho dúvida de que há muito que admirar no trabalho iniciado há 39 anos pelo maestro José Abreu, idealizador do projeto. O Sistema abrange cerca de 450 000 estudantes de música em todo o país. Mas, como acontece em todos os grandes empreendimentos, o projeto tem não apenas aspectos positivos, como também negativos. Sei, por exemplo, quanto os pais e os estudantes do Sistema dedicam a vida à música. Seria um erro monumental cancelá-lo da noite para o dia. Eu não sei dizer quanto os estudantes do Sistema acreditam no chavismo. Com certeza, alguns são chavistas e outros, não. Tampouco posso falar sobre as convicções de José Abreu ou dos integrantes da Orquestra Jovem Simon Bolívar. No entanto, acredito que nossas atitudes são mais significativas do que nossas palavras. Este é um momento em que silenciar ou se manter neutro para preservar os próprios interesses configura uma irresponsabilidade. A música não pode estar acima do dever cívico ou da denúncia de um Estado que se tem provado criminoso. Os responsáveis pelo Sistema deveriam pensar no país como um todo, e não apenas em seu programa educacional. De que servirá o Sistema em uma nação que está deixando de existir como tal?

Os responsáveis pelo Sistema dizem que o programa já contava com ajuda governamental antes do período Chávez, e por isso seus beneficiários não podem recusar a participação em eventos oficiais. Essa justificativa faz algum sentido para a senhora?

Não. O legado de Chávez é muito diferente daquele deixado pelos presidentes anteriores. Nosso país passou por uma grande transformação, e para pior. Quem se associar a um governo tão desastroso terá de arcar com as responsabilidades. Não há como comparar a gestão de Chávez e a de Maduro às suas predecessoras. O governo de Maduro é um reinado de terror. Minha única esperança é que o Sistema e seus diretores abram os olhos para o mal que o silêncio deles diante das violações aos direitos humanos faz ao país.

Como o Sistema contribui para a imagem do governo chavista?

Quando os músicos, em suas apresentações, vestem agasalhos com uma versão estilizada da bandeira da Venezuela – a mesma indumentária usada pelos atuais governantes do país -, eles efetivamente manifestam apoio ao governo. Em seus concertos, costumava haver distribuição de panfletos de propaganda chavista. O sucesso do Sistema é usado para ofuscar os problemas que ocorrem atualmente na Venezuela. Já ouvi muitas pessoas dizerem que, se o Sistema é tão maravilhoso, então o governo que apoia o programa deve ser bom. É uma forma de propaganda muito inteligente – pouco importa se José Abreu reconhece isso ou não.

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O maestro Gustavo Dudamel é a grande estrela internacional saída do Sistema. Ele tem sido muito criticado – pela senhora, inclusive – por sua conivência com o governo e, sobretudo, por ter regido um concerto em Caracas no dia em que três manifestantes foram assassinados na cidade. Dudamel respondeu que o Sistema não é político e que seus objetivos são a paz e o amor. Foi uma resposta satisfatória?

Não. A minha crítica a Gustavo Dudamel está no silêncio dele a respeito das cenas de brutalidade que têm sido constantes no país desde o início de fevereiro, quando se intensificaram os protestos. Se Dudamel estivesse tão preocupado com a paz e o amor, ele no mínimo teria de se dissociar de um governo tão violento e opressor. Não é o que fez até o momento. Mas ainda tenho esperança de que ele venha a se posicionar contra as constantes violações de direitos humanos que estão sendo infligidas ao povo venezuelano pelos seus governantes. As pessoas estão sofrendo. As pessoas estão morrendo. A música perde totalmente o sentido perante uma realidade tão brutal.

Na infância, a senhora chegou a participar de um concerto regido pelo maestro José Abreu, com músicos do Sistema, e depois ganhou uma bolsa para estudar nos Estados Unidos. O que mudou desde então?

Quando eu tinha 8 anos, participei de um concurso do governo venezuelano que dava direito a uma bolsa de estudos – e venci. Meu professor de piano tinha acabado de sair do país e meus pais, que eram de uma família simples da classe média, sacrificaram tudo o que tinham para bancar meus estudos nos Estados Unidos. Eu desejava desesperadamente ficar na Venezuela. Sonhava com o dia em que, adulta, estaria de volta ao meu país natal. Tentei fazer com que meu sonho se concretizasse, mas isso é praticamente impossível nos dias de hoje, em razão dos problemas de que falei. A Venezuela já foi tolerável. Não tínhamos a criminalidade com a qual convivemos hoje. Não tínhamos o ódio e a hostilidade com os quais convivemos diariamente. Hugo Chávez mudou o estado moral e psicológico do país.

Existe algum aspecto positivo do chavismo na vida venezuelana?

O único aspecto positivo do chavismo foi despertar a consciência social das classes média e alta. Eu acredito que nós, como país, não tínhamos tanta empatia pelo sofrimento e pelos problemas sociais como temos hoje. Estamos mais atentos para as necessidades da população de baixa renda, para o desejo de que seus anseios sejam ouvidos e respeitados. Creio assim que, quando e se houver uma transição para a democracia, os novos líderes políticos se mostrarão mais sensíveis a essas desigualdades e à insatisfação que causam – foram elas, afinal, as responsáveis diretas pela eleição de Hugo Chávez em 1998. O caso é que Chávez não buscou remediar as feridas do passado. Não trabalhou por uma sociedade mais homogênea, transparente e funcional. Pelo contrário, ele alimentou a dor e o ressentimento das classes menos favorecidas em relação às classes média e alta. A missão de um líder deveria ser a união, não a divisão. Hoje, porém, a Venezuela é uma nação dividida.

“Hugo Chávez não buscou remediar feridas do passado. Pelo contrário, alimentou a dor e o ressentimento das classes menos favorecidas. A missão de um líder deveria ser a união, não a divisão. Mas a Venezuela é hoje um país dividido”

ExPatria, peça para piano e orquestra que a senhora compôs, é uma homenagem às vítimas de homicídio na Venezuela. Como as plateias ao redor do mundo têm recebido essa composição?

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Escrevi ExPatria em homenagem às 19 336 vítimas de homicídio registradas em 2011. Mas, só no ano passado, esse número já saltou para cerca de 25 000. Trata-se de uma peça muito complexa e dolorosa, e o que espero é que o público, ao ouvi-la, consiga compreender a nossa dor. No ano passado, gravei a composição com a Orquestra Jovem das Américas, regida pelo maestro Carlos Miguel Prieto. Devemos lançar o disco nos próximos meses.

É verdade que a senhora tomou aulas com a pianista argentina Martha Argerich?

Não, Martha na verdade não dá aulas. Mas ela teve uma influência enorme na minha carreira como concertista. Martha mudou minha vida treze anos atrás, quando me escutou e passou a falar bem do meu jeito de tocar. Depois dos elogios dela, não faltaram convites para me apresentar. E até hoje não faltam.

A arte pode ser separada da política?

Na verdade, a arte não pode ser separada da vida. Não estou lutando pela política, e não estou falando pela política. A minha luta é pela defesa da moralidade e pelo respeito à humanidade. Eu faço oposição à brutalidade e à violação dos direitos humanos. E, como artista, não posso me dissociar do ambiente em que as pessoas vivem. Não importa que emprego você tem ou que tipo de vida leva, você deve ter empatia com a vida humana. O resto vem depois.

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