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‘Não estamos pregando o aborto’, diz diretora de vídeo que despertou fúria

Petra Costa, premiada no mais recente Festival do Rio pelo filme 'Olmo e a Gaivota', diz que se surpreendeu com a agressividade das respostas na internet ao vídeo 'Meu Corpo, Minhas Regras', que fez com atores da Globo

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 18 nov 2015, 19h08

Autora de dois belos documentários, Elena (2012), sobre a irmã que se matou, e Olmo e Gaivota (2014), sobre um casal às voltas com a gestação do primeiro filho, este assinado em parceria com a dinamarquesa Lea Glob e vencedor do último Festival do Rio, a mineira Petra Costa passou da comemoração do troféu às críticas nas redes sociais em questão de poucos dias. O vídeo Meu Corpo, Minhas Regras, que dirigiu com um punhado de atores da Globo, questiona a proibição ao aborto – e ela recebeu, ao lado do elenco, uma saraivada de críticas, com frequência, muito agressivas.

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“Não esperávamos que fossem tão agressivos”, diz ela. “Mas, historicamente, tudo o que diz respeito ao universo feminino é cercado de tabus, proibições, deturpações, silenciamentos, condenações.”

Inspirado no documentário vencedor do Festival do Rio, o vídeo, segundo Petra, não tem a intenção de “pregar” o aborto. “É um vídeo que levanta questões sobre a mulher e não um vídeo de campanha”, diz ela.

Abaixo, a cineasta de 32 anos fala do vídeo, de sua posição a respeito do aborto e das críticas que recebeu:

O vídeo “Meu Corpo, Minhas Regras” nasceu para ajudar na divulgação do filme Olmo e a Gaivota ou para reclamar o direito ao aborto? Ele foi idealizado a partir dos temas de Olmo e A Gaivota, um filme que acompanha, em uma mistura de ficção com realidade, a gravidez da atriz italiana Olivia Corsini (do Théâtre du Soleil). O direito ao aborto não é o tema mais importante no teaser, e menos ainda no filme. O que nos motivava era chamar atenção para a invisibilidade da mulher. E essa invisibilidade é transversal em nossa sociedade, aparece em diversos setores e, infelizmente, contamina toda a discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o tema do aborto. Há algo de errado em um país em que as mulheres são mais de 50% da população e ocupam menos de 10% dos assentos no Parlamento. Há algo de errado no cinema em que as personagens femininas falam em menos de 30% dos filmes, segundo o Teste de Bechdel [que homenageia a cartunista americana Alison Bechdel e avalia se em uma obra de ficção há pelo menos duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não sejam homens] e, muitas vezes, não têm sequer nome. O vídeo surgiu do desejo de levantar questões a partir das temáticas do filme. Claro que o roteiro foi mesclado com improvisações no momento de filmagem. Decidimos brincar com a imagem de homens e mulheres “grávidos”, vestidos com o figurino da protagonista do longa, Olivia, um vestido vermelho e uma peruca azul. Um dos intuitos era colocar a questão: o que aconteceria se os homens engravidassem? Em segundo lugar, queríamos levantar também a questão de como a gravidez no cinema é geralmente representada como algo “cor de rosa, sublime”, esvaziado de complexidade. Hoje, a gravidez é uma escolha e, como toda escolha, pode se tornar um dilema. É curioso que uma escolha tão crucial na vida tanto dos homens quanto das mulheres seja tão pouco explorada nas telas.

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Por que o aborto entrou no script? Dentro desse espectro, aparece o aborto, que é uma das questões levantadas no vídeo. Alguns dos textos referentes ao aborto presentes no vídeo foram retirados dos comentários que recebemos na página do filme após a premiação do Festival do Rio, em que dediquei o troféu às mulheres no desejo de que nenhuma brasileira seja vítima do machismo, físico ou verbal, e que toda mulher possa ter soberania sobre o próprio corpo. Comentários como “vadia, se não quer ter filho, fecha as pernas” inundaram a nossa página. Incorporamos tanto os comentários agressivos quanto os que defendiam os direitos das mulheres sobre o próprio corpo. Não estamos “pregando o aborto”. Como falei, é um vídeo que levanta questões e não um vídeo de campanha. Já no meu discurso no Festival do Rio, eu falei a favor da descriminalização do aborto. Se a questão principal é salvar vidas, é preciso dizer que, onde se legalizou o aborto, reduziu-se drasticamente não só o número de mulheres mortas em abortos clandestinos mas o número de abortos realizados. A taxa de abortos nos Estados Unidos, por exemplo, onde a prática é legalizada desde 1973, é duas vezes menor do que no Brasil. A experiência recente do Uruguai mostra que, após a legalização em 2012, o número médio caiu de 33.000 para 7.000 abortos em 2013. Estamos falando de 26.000 abortos evitados por ano. Por quê? Porque, além de ter promovido sua descriminalização, o governo rompeu o tabu e implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.

Como se deu o engajamento de diversos atores da Globo na campanha? Eu já conhecia e era amiga de boa parte deles. A maioria assistiu ao filme no Festival do Rio e, quando falei que tinha a ideia de fazer um vídeo que levantasse questões do universo feminino a partir do filme Olmo e A Gaivota, eles aceitaram participar. Ninguém recebeu cachê – os atores são Bruna Linzmeyer, Barbara Paz, Johnny Massaro, Nando Alves Pinto, Ricardo Targino, Alexandre Borges, Julia Lemmertz, Mumu, Nanda Costa, Gus Machado e Julia Bernat. Trabalharam com extrema generosidade doando seu tempo e talento. Acredito que participaram também no desejo de ajudar a divulgar um filme independente, de arte, que sempre enfrenta dificuldades de acesso ao público.

Você conversou com os atores sobre as críticas recebidas pela campanha? Atores e atrizes que colaboraram no vídeo com extrema generosidade passaram a ser perseguidos com mensagens de ódio e ameaças. Os agressores vêm propondo o boicote ao vídeo, ao filme, aos atores e atrizes e até às empresas que os empregam. Nanda Costa se viu forçada a fechar suas contas nas redes sociais diante da virulência dos ataques. Chegou-se ao cúmulo de um vereador de Campinas propor uma moção de censura ao vídeo, na mesma Câmara que aprovou uma “moção de repúdio” a Simone de Beauvoir, após a questão do Enem que citava a frase “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Temos conversado diariamente sobre esses ataques. Não esperávamos que eles fossem tão agressivos. Mas, historicamente, tudo o que diz respeito ao universo feminino é cercado de tabus, proibições, deturpações, silenciamentos, condenações.

Que críticas a incomodaram mais? As críticas que mais incomodaram foram as que nos ofendem como mulheres. Críticas de baixo nível, inaceitáveis, que expressam o machismo mais agressivo. Deveriam ser passíveis de processo como ocorre com o racismo. Alguns exemplos são: “Vocês têm tem que morrer, suas assassinas”, “Cambada de p***, fecha as pernas”, “Seus doentes, tenho nojo da classe de artistas”, “Fedorentas, vulgares, mal amadas”, “Arranca os úteros, bando de satânicas”, “Ao invés de abortar, se mate”, “Pena de morte é a única pena justa para uma homicida como você”.

Por que é tão difícil tocar nesse tema no Brasil? Por sermos um país majoritariamente cristão, temos evitado sistematicamente falar da questão do aborto. O assunto ainda é sensível ou tabu em diversas crenças. Algumas religiões ainda condenam até mesmo o uso de anticoncepcionais! No entanto, como diz a OMS (Organização Mundial de Saúde), “acabar com a epidemia silenciosa de abortos clandestinos é um assunto urgente de saúde pública e imperativo aos direitos humanos.”

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O que acha do projeto do deputado Eduardo Cunha para restringir a possibilidade de aborto no país? Um retrocesso. No Brasil, estamos andando na direção contrária ao que recomenda a OMS desde que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, colocou em pauta a questão do aborto, ao aprovar em primeira instância o Projeto de Lei 5.069, de sua autoria, que, entre outras coisas, dificulta a realização do aborto legal, complica ainda mais o atendimento de vítimas de abuso sexual e, conforme o entendimento, pode vir a proibir a pílula do dia seguinte. O projeto não leva em consideração as condições em que a violência sexual pode acontecer, às vezes dentro de casa, nem a fragilização a que uma mulher vítima de abuso pode ser submetida. A violência contra a mulher tem diversas facetas no Brasil. Desde os ataques machistas verbais que tantas recebem diariamente, às milhares de mulheres estupradas que morrem anualmente como vítimas de violência doméstica. É chocante se dar conta de que mais mulheres morrem assassinadas no Brasil do que na Síria, e de que o nosso país é o quinto no mundo onde mais se matam mulheres: 13 são assassinadas por dia. Mais de 5.000 por ano. A proteção dessas mulheres é o que deveria estar em pauta na Câmara.

Você acaba de lançar um filme que acompanha a trajetória de uma gravidez. Nele, a mãe, Olivia, se sacrifica para ter o bebê, já que a gestação se mostra delicada logo no início. Ela fica de repouso, se arrisca a perder o trabalho, enfrenta uma crise no casamento. Uma leitura possível do filme é de que vale a pena fazer de tudo por uma vida. Isso não contrariaria a campanha pelo aborto? Em primeiro lugar, como expliquei, o vídeo não é uma campanha pelo aborto, mas um vídeo que levanta diversas questões do universo feminino que são suscitados pelo filme. Em segundo lugar, a descriminalização do aborto, se bem feita, levaria a menos abortos, e menos mortes em abortos clandestinos. Portanto, salvaria muitas vidas. Eu sou a favor de acabar com uma epidemia silenciosa de mortes.

Na sua opinião, há situações em que o aborto é condenável? O limite máximo de 3 meses de gravidez deve ser respeitado, tempo aceito por cientistas e especialistas da saúde. Acredito que o Estado e a sociedade deveriam fazer campanhas de planejamento familiar muito mais amplas, com educação e distribuição de diferentes tipos de anticoncepcionais com o acompanhamento necessário. E esses métodos ainda não são perfeitos, falham, e aí entra a hipótese do aborto, mas sempre em último caso. Defender que uma mulher não seja criminalizada por abortar é diferente de defender o aborto como método anticoncepcional. Isso é uma confusão que muitos que nos atacam cometem. Eu não estou em posição de condenar uma mulher pela atitude que ela tomar durante uma gravidez. Quando a gravidez é sacrifício ou prazer, se a mulher se acha em condições ou não de ter um filho, acho que cada mulher tem que julgar por si. A escolha é da mulher em última instância. E não se pode impor um pensamento religioso sobre outra pessoa. Vivemos em um estado laico.

A atriz Patricia Arquette fez um discurso na última premiação do Oscar afirmando que homens e mulheres são tratados de maneira desigual em Hollywood. Como você percebe essa questão no cinema brasileiro? Nunca sofri discriminação no cinema como mulher. No entanto, comecei a fazer cinema por não ver na tela filmes que tratavam das questões que eu vivia como jovem e mulher. Já como atriz, vi algumas vezes discriminação e assédio. Como atriz, algumas vezes me vi tendo de representar papéis maniqueístas, que dividem a mulher entre a imaculada e a profana. O universo feminino é muito mais rico e complexo do que isso. Comecei a fazer cinema por desejo e também por uma sensação de dever de adentrar nessas complexidades. Algo que acontece sistematicamente no cinema é que muitas mulheres conseguem fazer o primeiro filme com poucos recursos. O quadro se complica nas grandes produções que dependem de muito financiamento e que estão nas mãos de produtores. Na maior parte dos casos, esses produtores são homens brancos que querem convidar diretores parecidos com eles para dirigir o filme que eles idealizam. Isso é o caso nos Estados Unidos, que têm uma indústria bem estabelecida. No Brasil, à medida que nossa indústria vá se fortalecendo, espero que possamos traçar um caminho diferente e mais justo.

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