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Geneton, o jornalista que pegou Drummond de cuecas

Último a entrevistar Carlos Drummond de Andrade, Geneton Moraes Neto também fez revelações sobre a amante que acompanhou o poeta por 36 anos

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 ago 2017, 17h12 - Publicado em 23 ago 2016, 18h43

Entre tantas grandes reportagens lembradas nos necrológios de Geneton Moraes Neto, seu trabalho sobre Carlos Drummond de Andrade ficou em segundo plano. O jornalista pernambucano, morto na segunda-feira, 23, em consequência de um aneurisma, realizou a última entrevista com o poeta mineiro, em 1987, para o Jornal do Brasil. A entrevista seria mais tarde incorporada a Dossiê Drummond, que Geneton publicou em 1994. Não é a peça mais reveladora do livro: Geneton também entrevistou Lygia Fernandes, que por 36 anos foi amante do poeta. É um vislumbre raro da intimidade que Drummond buscou zelosamente resguardar. Geneton, de certo modo, pegou Drummond de cuecas (é assim, pelo menos, que Lygia o descreve em um episódio constrangedor).

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A entrevista final foi realizada por Geneton cinco dias antes da morte de Maria Julieta, filha única de Drummond, em agosto de 1987. No livro, o jornalista relata que o autor de A Rosa do Povo ainda pediu, por telefone, que a publicação da entrevista fosse suspensa: achava que havia um tom de deboche em certas respostas, o que seria inapropriado para um pai velando a filha que morrera de câncer. Era tarde demais: o caderno literário do Jornal do Brasil  àquela altura já estava impresso. O deboche, porém, submerge sob a melancolia. No último depoimento para um jornalista, Drummond mostra uma reticência amarga em relação às próprias realizações como poeta. “Fui um burocrata, um jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance importante na minha vida”, dizia. Criticava o que julgava ser um mau legado do modernismo brasileiro: a ideia que qualquer um pode ser poeta, sem conhecimento técnico de versificação ou sequer de língua portuguesa. E recusou a avaliação, então generalizada, de que seria o o maior poeta do Brasil: “Não é um julgamento literário: é uma opinião transmitida socialmente, mas sem nenhuma ponderação crítica”.

Nada se perguntou sobre a amante que, dias depois, estaria segurando a mão de Drummond quando ele morreu em um hospital carioca, em 17 de agosto de 1987, aos 84 anos. Esta seria uma revelação póstuma. Foi na condição que julgava tão desinteressante  – a de burocrata do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico – que Drummond, um convencional pai de família mineiro, casado com dona Dolores desde 1925, conheceu a bibliotecária Lygia Fernandes. Ele tinha, naquele ano de 1951,  49 anos; ela, 24. Começaram então um caso que se estenderia até a morte do poeta (Lygia morreu em 2003). Em rara entrevista, a amante (ou “namorada”, se o leitor preferir o eufemismo empregado em Dossiê Drummond) relatou a Geneton que Drummond buscava outras mulheres. Ela fez até a contabilidade das outras “namoradas”: seriam 83. Lygia, porém, foi o único amor duradouro. Drummond frequentava seu apartamento regularmente. Certo dia, o casal foi surpreendido pela chegada da mãe de Lygia, que tinha as chaves da entrada.  Drummond e Lygia estavam, de acordo como relato dela, na cama, conversando em “trajes menores” – e foi assim que ele pulou para trás de uma porta, onde ficou oculto até que a namorada despachasse a mãe. Geneton teve acesso ainda a uma gravação que Lygia fez de uma conversa com o amante, transcrita em Dossiê Drummond. Mesmo na intimidade, Drummond recusava o elogio fácil. Quando Lygia diz que seus versos são geniais, ele rebate: “É genial, no sentido moderno de genial, que não é nada”.

Dossiê Drummond colige ainda depoimentos de amigos e conhecidos do poeta, como Otto Lara Resende, Ziraldo e Oscar Niemeyer. Parecerá talvez que essa coleção de entrevistas, testemunhos, gravações tenha pouco a acrescentar para a compreensão de obras como Claro Enigma ou Lição de Coisas. Nas perguntas, Geneton não se debruça particularmente sobre o ofício do escritor, sobre a “oficina irritada” (título de um soneto de Drummond) da qual saiu a mais poderosa lírica brasileira do século XX. Mas o caso de Drummond com Lygia (e com outras amantes, que supostamente seriam 83) terá consequências para sua poesia amorosa e erótica. A revelação dessa história extraconjugal ilumina poemas como Escada, que fala do amor em um furtivo lugar de passagem: “Na curva desta escada nos amamos”. Ou como Ciclo, meditação cafajeste na qual se lê a melancólica constatação da diferença etária entre dois amantes: “tristeza de nudez que se sabe julgada / comparação de veia antiga a pele nova”. Geneton Moraes Neto, em Dossiê Drummond, cumpriu a missão que atribuía a sua profissão: “fazer jornalismo é produzir memória”.

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