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Brasil ficou menos perverso, mas racismo persiste, diz FHC

Miscigenação brasileira será um dos temas do ex-presidente na conferência de abertura da Flip, que homenageará o pernambucano Gilberto Freyre

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 31 jul 2010, 09h54

“Pode-se dizer que a sociedade brasileira seja racialmente mais igualitária? Menos perversa que a sociedade escravocrata, sem dúvida. Isenta de preconceitos ou de discriminações? Duvido.”

Personalidade que abre a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, na próxima quarta-feira, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso terá a missão de discorrer sobre o homenageado do evento, o antropólogo pernambucano Gilberto Freyre. Não será um grande desafio. Sociólogo de formação, FHC é autor do prefácio à edição de 2004 de Casa Grande & Senzala, a obra basilar de Freyre. Um prefácio que, aliás, empresta o título à sua conferência na Flip: “Um livro perene”.

A perenidade da obra se deve, segundo FHC, ao fato de Freyre construir “uma imagem do Brasil com traços que muitos brasileiros gostariam que fossem verdadeiros”. Leia-se, nas entrelinhas, a ideia de que o Brasil é um país formado por três raças, cuja miscinegação proporcionaria riqueza cultural e uma “controvertida” tolerância racial. Freyre nunca chegou a cunhar o termo “democracia racial”. A maneira como descrevia a relação entre senhores e escravos, contudo, deu a muitos críticos munição para chamá-lo de míope ou conservador.

Nem mesmo hoje, 77 anos após o surgimento de Casa Grande & Senzala, afirma FHC, se pode falar de democracia de raças no Brasil. “Pode-se dizer que a sociedade brasileira seja racialmente mais igualitária? Menos perversa que a sociedade escravocrata, sem dúvida. Isenta de preconceitos ou de discriminações? Duvido.” Leia, abaixo, a entrevista de Fernando Henrique Cardoso a VEJA.

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FHC
FHC (VEJA)

Que elementos descritos por Gilberto Freyre ainda podem ser vistos na sociedade ou na cultura nacional?

A imagem que Gilberto Freyre projeta de um Brasil centrado nas oposições casa grande e senzala, senhores e escravos, é, obviamente, datada. Mas ele prosseguiu em seus estudos e no livro Ordem e Progresso já não se refere especificamente àquelas categorias, mas – como aliás ele também faz em seu livro fundamental – à cultura por elas geradas. Aí, entram o personalismo (ilustrado, no campo político, pela força do presidente, o poder Executivo, diante dos poderes Judiciário e Legislativo), o mandonismo, o corporativismo etc. que estão vivos até hoje. É verdade que tais traços haviam sido identificados – alguns até cultuados – anteriormente por autores como Oliveira Vianna e mesmo por pensadores do século XIX. Mas Gilberto Freyre tinha o dom da escrita e dispunha de força expressiva para estruturar quadros explicativos. Fez isso não só para descrever a ordem senhorial como para gabar as virtudes da miscigenação e da tolerância cultural do Brasil tradicional, que serviriam de base a uma suposta e mais do que controvertida “democracia racial”.

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Podemos considerar Casa Grande & Senzala uma espécie de mito do Brasil?

A obra tem sim aspectos de mito, daí talvez sua permanência. Constrói uma imagem ao mesmo tempo real e distorcida das relações sociais criadas pela sociedade escravocrata.

Em que grau a teoria de Freyre, de que o Brasil é constituído por três raças (branca, negra e indígena), é tributária à tese do alemão Karl Friedrich Phillipp von Martius, vencedor do concurso ‘Como Escrever a História do Brasil’, realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico no século XIX?

A noção de que a sociedade brasileira – e sua cultura – derivou de três raças era habitual muito antes de ser lembrada em Casa Grande & Senzala, basta citar o que Paulo Prado escreveu no livro Retrato do Brasil (1928). É possível que alguns autores que se referiram às três raças tenham sido influenciados por von Martius. O específico em Freyre é que ele valoriza e hierarquiza a contribuição das “raças formadoras”. A branca já chegou tisnada com os portugueses pelo sangue negro e berbere. Os escravos negros – e isso Freyre mostra bem – eram muito diferentes física e culturalmente uns dos outros. E os indígenas, no ver de nosso autor, contribuíram menos do que os negros para o processo adaptativo dos colonizadores aos trópicos. Para Freyre, criativos mesmo foram os negros, que até emprestaram aos brancos algo de sua “alma”.

No prefácio à edição de Casa Grande & Senzala lançada pela editora Global em 2004, o senhor classifica a obra como “perene”. A que o senhor atribui a força desse livro, que resiste após quase 80 anos?

A perenidade de uma obra depende de muitas dimensões. No caso de Casa Grande & Senzala, convivem uma escrita admirável, uma base analítica ampla, o conhecimento pelo autor da bibliografia antropológica da época e, sobretudo, a construção de uma imagem do Brasil com traços que muitos brasileiros gostariam que fossem verdadeiros. Um pouco como um mito que produz uma imagem que pode servir de guia para a construção do futuro.

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Por que a crítica costuma ser tão dura com Gilberto Freyre, sua leitura do Brasil colonial pode ser entendida como conservadora ou geograficamente restrita?

É natural que passadas as décadas de 1930 e 1940, quando a obra foi louvada, embora também recebesse fortes críticas da direita fascistizante, novas pesquisas pusessem a nu seus pontos fracos, como ocorre com qualquer obra pioneira (basta ver a análise recente feita por Jorge Caldeira sobre Caio Prado em História do Brasil com Empreendedores). Além disso, em vários livros e em sua ação, Gilberto Freyre se mostrou conservador, tendo justificado o salazarismo, advogando um luso-tropicalismo teórico de difícil aceitação. Apoiou o golpe de 1964 e demonstrou saudosismo da monarquia e da ordem senhorial.

De que maneira a interpretação do Brasil feita por Freyre levou à criação da ideia (ou mito) de uma democracia racial? Hoje, estamos mais próximos de uma verdadeira democracia racial?

A questão da democracia racial foi seu calcanhar de Aquiles. De fato, Gilberto recusava a inferioridade dos negros, sobretudo dos mulatos, e, como disse acima, via contornos positivos na ordem social brasileira que mantinha mecanismos de mobilidade social, de fusão cultural e de miscigenação. Ao mesmo tempo, exibia laivos de antissemitismo e a todo instante se referia à eugenia ou qualificava pessoas em termos raciais. Pode-se dizer que contemporaneamente a sociedade brasileira seja racialmente mais igualitária? Menos perversa que a sociedade escravocrata, sem dúvida. Isenta de preconceitos ou de discriminações? Duvido. Os movimentos negros de hoje – que recusam até mesmo a identidade racial dos “mulatos” – provavelmente lerão Gilberto Freyre como se fosse um apologeta da supremacia branca, com o disfarce da democracia racial, o que também é um exagero.

Por que, em Casa Grande & Senzala, o negro recebe mais atenção (e texto) que o indígena?

Para Gilberto, a contribuição do negro foi decisiva na formação do Brasil. Já a do indígena terá sido muito menor, por contribuir mais para o processo adaptativo dos colonizadores aos trópicos. Se ele escrevesse sobre São Paulo dos séculos 17 e 18, talvez tivesse outra visão.

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A escolha de Gilberto Freyre como homenageado da Flip deste ano é propícia, em se levando em conta o momento pelo qual passa o país?

Sim. Espero que a releitura de Freyre e esta homenagem propiciem a oportunidade para ver que o personalismo e o caudilhismo, bem como o corporativismo, não foram de todo eliminados de nossas práticas, a despeito de vivermos em uma sociedade capitalista, baseada no trabalho assalariado, e de sermos uma democracia eleitoral.

Se não fosse Freyre, na sua opinião, que autor deveria ser homenageado pela Flip?

Talvez Sergio Buarque de Hollanda, pela visão crítica que tinha sobre a monarquia e a ordem escravocrata e por suas preferências democráticas tão bem sintetizadas no último capítulo de Raízes do Brasil.

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