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‘Quero promover a cultura inuíte’, diz melhor professora do mundo

Canadense Maggie MacDonnell venceu neste domingo o Global Teacher Prize por seu trabalho com a comunidade aborígene no Ártico

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 mar 2017, 15h03

Escolhida a melhor professora do mundo neste domingo pela comissão do Global Teacher Prize, a canadense Maggie MacDonnell leva uma vida árdua em Salluit, comunidade inuíte instalada no extremo Norte de Quebec. No inverno, a temperatura mínima chega a -25 graus Celsius. Em seis anos, ela testemunhou o enterro de alunos que se suicidaram. Muitas de suas estudantes sofrem com gravidez precoce e abuso sexual. Muitos de seus colegas já desistiram de dar aulas da região. Mas ela não pensa em partir até ver as crianças que educou e com quem criou vínculos se transformarem em adultos de sucesso. “Alguns deles já cresceram, estão fazendo faculdade em Montreal, levam uma vida saudável, são independentes — quero ver todos assim”, disse em entrevista ao site de VEJA antes da premiação, que aconteceu em Dubai, nos Emirados Árabes.

A professora, nascida na província de Nova Escócia, de clima mais ameno, receberá o prêmio de 1 milhão de dólares entregues ao longo de dez anos — o valor poderá ser usado da maneira que Maggie quiser, com educação ou não. Ela afirma, porém, que tem planos nobres para o montante: valorizar a tradição do povo inuíte, que por séculos sofreu tentativas de assimilação do próprio governo canadense. “Quero criar um programa para os jovens focando o kaiak. Os inuítes inventaram esse esporte, mas na comunidade em que vivo ele não é mais tão presente”, afirmou.

Confira a entrevista:

 

O que vai fazer com o prêmio de 1 milhão de dólares? Quero criar um programa para os jovens inuítes focando a tradição do kaiak. Os inuítes, na verdade, inventaram esse esporte, que é praticado agora em todo o mundo, mas na comunidade em que vivo não é mais tão presente. Quero trazer a prática de volta porque acredito que isso vai incentivar a atividade física e a relação com a natureza, além de promover a cultura inuíte.

Por que escolheu Salluit para trabalhar? Depois que eu me formei na universidade, passei cinco anos trabalhando fora do meu país, em lugares como Botsuana, em um orfanato com crianças afetadas pelo vírus do HIV, e na Tanzânia, com refugiados do Burundi e Congo. Ao voltar para o Canadá, quis aplicar os conhecimentos que obtive no exterior. Comunidades indígenas e em especial a inuíte passam por muitas dificuldades por causa da colonização. Queria entender a realidade e contribuir com essa população e com o Canadá, em geral.

Quais são os principais problemas que Salluit enfrenta? Mesmo estando lá há seis anos, ainda estou aprendendo sobre a comunidade. Mas o que já identifiquei é que os jovens de lá têm que lidar com traumas provenientes de gerações anteriores — apesar de serem resistentes e terem esperança e talento, as crianças já nascem em uma situação difícil. Algo que vejo, que tem relação com seus avós, provavelmente, remete ao sistema de escolas residenciais para indígenas. Era um programa operado pelo governo federal desde o final do século XIX até 1996, que tirava crianças aborígenes de suas famílias e as enviava para escolas a milhões de quilômetros de distância de suas comunidades. Era uma política de assimilação, na tentativa de tirar o que havia de inuíte dos inuítes. Esses jovens voltavam para casa tendo esquecido sua língua materna e encontravam suas famílias traumatizadas, porque elas haviam perdido totalmente o contato com seus filhos por anos. Isso aconteceu principalmente com os avós das crianças a quem eu ensino agora — mas as famílias continuam com receio do sistema educacional e é preciso ganhar novamente sua confiança.

Que outros problemas afetam os seus alunos? O governo canadense operou um programa por cerca de vinte anos, entre 1950 e 1970, que consistia em matar os cachorros que eram parceiros dos inuítes — e que eram necessários para sua sobrevivência no Ártico, para a caça e a proteção — na tentativa de fazer os aborígenes deixarem aquela região e buscarem a “civilização”. Isso abalou de tal maneira os valores tradicionais que eles possuíam que muitas famílias estão mergulhadas no vício em álcool e drogas. Isso se soma ao grave problema habitacional que afeta a região. O Canadá é uma nação desenvolvida e deve ser considerada uma das melhores para se viver, mas muitos dos meus alunos não têm seu próprio quarto, eles dormem na sala de suas casas, que estão, aliás, lotadas e muitas vezes abrigam pessoas que bebem ou usam drogas.

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Como trabalhar com crianças que têm tantos problemas familiares e sociais? Eu começo as aulas tentando aliviar o estresse dos estudantes. Isso pode significar colocar uma música relaxante, promover um ambiente em que eles não sofram bullying dos colegas, ser amigável e confiável, para que eles não sintam que eu estou julgando o que acontece na casa deles. Também oferecemos refeições, já que muitos não têm comida. Só aí podemos seguir com o conteúdo das aulas.

Que maneiras encontrou de envolver também o resto da comunidade nos projetos? Tento estimular a permanência das crianças na escola para envolver a comunidade. Muitos dos meus alunos não têm uma reputação positiva na sociedade, porque são conhecidos por bullying contra os outros ou têm ficha na polícia por vandalismo, por usar ou vender drogas. Tento fazer com que essa imagem seja revista com algumas atividades. Uma delas se chama “Acts of kindness” (Atos de bondade), em que os jovens fazem boas ações em Salluit. Eles ajudam os mais velhos, vão até os supermercados e carregam as compras dos vizinhos, organizam exibições de filmes para as crianças, para que os pais possam sair e deixar os filhos em um lugar seguro etc. Essas atividades fizeram com que os jovens passassem a ser vistos como parte importante da comunidade.

Muitos dos seus colegas professores pararam de dar aula na região. Já pensou em desistir? Provavelmente entre 40% e 50% dos professores desistem de dar aulas no Norte. Isso pode ser por causa do estresse do dia a dia ou porque eles estão morando em um lugar muito isolado, longe de suas famílias. Há alguns estudantes que me adotaram em suas vidas e eu não quero deixar o Norte até que eu veja que eles se tornaram adultos de sucesso. Alguns deles já cresceram, estão fazendo faculdade em Montreal, levam uma vida saudável, são independentes — quero ver todos assim. Mas não posso dizer quanto tempo mais vou ficar por lá, porque meu marido é da Tanzânia.

Você já trabalhou em países da África e no Salluit. Gosta de desafios, então? Sim! (risos) Se é para trabalhar com algo, foque em justiça social. Não há nada que tenha mais significado do que isso. Pode não te dar o melhor salário, mas te dá a maior satisfação pessoal possível.

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