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Paraplégicos voltarão a andar?

O chute inicial da Copa do Mundo, que será dado no gramado por um adolescente paraplégico usando uma vestimenta robótica, é uma demonstração de que, em breve, a ciência que ajuda pessoas que perderam seus movimentos sairá dos laboratórios e ganhará as ruas. Cientistas explicam como funcionam robôs, células-tronco e estímulos elétricos, as técnicas mais avançadas em todo o mundo para fazer paraplégicos e tetraplégicos voltarem a andar

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h47 - Publicado em 26 Maio 2014, 07h57

Doze passos. Foi quanto andou na última quinta-feira um jovem paraplégico usando uma veste robótica comandada pelo cérebro, dentro dos laboratórios do Projeto Andar de Novo, em São Paulo. A experiência, liderada pelo cientista brasileiro Miguel Nicolelis, é um dos testes para uma demonstração pública do exoesqueleto, nome dado ao robô vestido pelo adolescente, que funciona como um esqueleto artificial externo. Na abertura da Copa do Mundo, em 12 de junho, um paraplégico usando a estrutura vai caminhar pelo gramado da Arena Corinthians e dará o primeiro pontapé do campeonato.

A exibição, que será vista por 70 000 pessoas no estádio e transmitida para todo o mundo, revela que, em pouco tempo, protótipos como o do Andar de Novo e outros avanços da ciência, como a pesquisa com células-tronco ou estímulos elétricos, terão saído dos laboratórios e farão pessoas que perderam o movimento das pernas caminhar pelas ruas. “Isso não é mais ficção científica. Em menos de dez anos, com o aperfeiçoamento de robôs e das pesquisas sobre os sinais cerebrais, os paraplégicos irão caminhar”, diz o neurocientista Guy Chéron, da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica.

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Projeto brasileiro – Nicolelis, cientista da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, mobilizou uma equipe de 156 cientistas de 25 países e recebeu 33 milhões de reais do governo federal brasileiro para viabilizar a demonstração no Mundial. O projeto, lançado em 2011, é composto de um robô que deve ser feito de metal leve e operado por mecânica hidráulica, conectado a uma touca repleta de eletrodos de eletroencefalograma (EEG) vestida pela pessoa que vai usar a máquina. Para fazê-la andar, os sinais enviados pelo cérebro seriam captados pelos eletrodos e enviados a um computador nas costas do robô. Ali, eles devem ser traduzidos e transformados em comandos como “mover o pé direito” ou “chutar”. O sistema, chamado interface cérebro-máquina (ICM), transforma as intenções do cérebro em movimento.

Oito pessoas estão participando dos testes, que começaram em novembro e estão sendo divulgados em uma página do Facebook. Uma das novidades anunciadas pelos cientistas que projetaram a estrutura, que pesa entre 50 e 70 quilos, é que ela faz os jovens sentirem a sensação de contato com o solo, como se ele fosse percebido pelos pés. Sensores acoplados aos pés do robô enganam a mente, passando a informação da proximidade do chão como se ela viesse do corpo. Com isso, a ideia da equipe responsável pelo projeto (que não respondeu às solicitações de entrevista) é que o exoesqueleto seja compreendido pelo cérebro e controlado como se fosse mais um membro do organismo.

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Exoesqueletos pelo mundo – Em vários países, há diferentes tipos de exoesqueletos que vêm sendo desenvolvidos por equipes independentes para restaurar a mobilidade de pessoas que perderam os movimentos das pernas. O primeiro deles, uma máquina ambulante adaptada aos movimentos humanos, foi construído na década de 1960, pelo Pentágono americano. O traje pretendia aumentar a força dos soldados, mas foi abandonado por suas limitações – pesava mais de 500 quilos.

Há pouco mais de uma década, o interesse científico pelos exoesqueletos migrou das pesquisas militares para os estudos médicos, procurando melhorar o cotidiano de pessoas com restrições nos movimentos. A ampliação das capacidades humanas promovida por esses robôs é o objetivo de sistemas como o HAL (Hybrid Assistive Limb, em português Membro Híbrido de Apoio), desenvolvido por Yoshiyuki Sankai, professor da Universidade de Tsukuba, no Japão, desde 2004, ou do ReWalk, criado pelo engenheiro israelense Amit Goffer e à venda desde 2012.

Construído a partir de pesquisas em robótica, esses exoesqueletos auxiliam pessoas que tenham sofrido paralisias parciais ou lesões que impossibilitam o movimento sem apoio. O HAL é feito com pequenos sensores no interior de sua estrutura, que percebem o quanto de pressão é exercida no aparelho e multiplicam essa força – por isso, é preciso ter algum controle do movimento das pernas. O ReWalk pode ser usado por paraplégicos que tenham intactos os movimentos dos braços: seus sensores de movimento apoiam os passos e ajudam a direcionar a direção da caminhada – no entanto, ele exige o uso de muletas que equilibram a marcha.

Junto a esses, existem pelo menos outros quatro tipos de exoesqueletos, desenvolvidos por empresas e universidades diferentes em países como Estados Unidos, Austrália e Holanda, que ajudam a devolver a mobilidade de pessoas que perderam os movimentos das pernas. O grande avanço, entretanto, chegou há pouco menos de cinco anos, quando neurocientistas perceberam que o cérebro, em vez dos braços, poderia comandar os robôs.

“A pesquisa com os exoesqueletos começou sem o conhecimento da neurociência, na área da robótica. No entanto, alguns protótipos foram muito bem-sucedidos e inspiraram o desenvolvimento de interfaces com o cérebro que pudessem controlar seus movimentos”, explica o português Antonio Espingardeiro, especialista em robótica e automação da Universidade de Salford, na Inglaterra, e membro do IEEE, associação internacional fundada em 1884 para promover o avanço tecnológico. Nesse momento, os cientistas perceberam que poderiam unir o conhecimento das interfaces cérebro-máquina aos exoesqueletos.

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Voltando a andar – Em novembro 2013, o americano Gene Alford levantou-se de sua cadeira de rodas e, pela primeira vez em seis anos, caminhou. Usando uma touca coberta por sensores de encefalograma conectada a um exoesqueleto robótico, o cirurgião plástico, paraplégico desde dezembro de 2007 por causa de um acidente, passeou pelo laboratório da Universidade de Houston, no Texas. “A sensação foi de uma grande felicidade por saber que há um futuro no qual poderemos voltar a andar. Um futuro muito brilhante e que está próximo de se concretizar”, diz Alford, hoje anos 54 anos.

Desde que perdeu o movimento das pernas, ele se movimenta com o apoio de uma cadeira de rodas. Em 2012, conheceu o neurocientista José Contreras-Vidal, diretor do laboratório de interface cérebro-máquina da Universidade de Houston e, no ano seguinte, começou a testar o robô operado pelo cérebro desenvolvido por sua equipe de cientistas. O sistema é uma combinação entre sensores de EEG que, traduzidos por um sistema de computador, são capazes de operar diferentes exoesqueletos, como o Rex, da Nova Zelândia, o Nasa X1, da agência espacial americana, ou o H2, desenvolvido por uma equipe de cientistas europeus.

“É como uma máquina que você controla. Os movimentos são mecânicos e, como não sinto as pernas, não há a sensação de que os movimentos são meus. Ainda assim, só o fato de não estar sentado em uma cadeira e poder olhar as pessoas de pé, na mesma altura que elas, já torna a experiência incrível”, diz Alford. “Só não sairia nas ruas com ele porque é muito lento e ainda não consegue substituir uma cadeira de rodas.”

Para usar o dispositivo controlado pelo cérebro, Alford teve os sinais de seu cérebro mapeados pelo laboratório. Os cientistas desvendaram os padrões cerebrais para comandos como “andar” ou “parar”, que seriam transmitidos ao computador. É com eles que o cirurgião comanda o robô. “Se estou muito cansado ou distraído, a máquina não funciona tão bem. É preciso se concentrar nos movimentos e não dá para pensar em outras coisas enquanto estou andando”, diz o médico.

Mente e máquina – As pesquisas em exoesqueletos operados por interfaces cérebro-máquina estão concentradas atualmente em duas frentes: o aperfeiçoamento dos robôs, para que se tornem mais rápidos e com movimentos semelhantes aos humanos; e a melhora da qualidade da captação e mapeamento dos sinais cerebrais. O objetivo é tornar a tecnologia mais fácil de ser operada por paraplégicos, para que eles possam usar o aparelho sem a ajuda de ninguém.

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“Decodificamos dezessete padrões de atividade cerebral com o EEG. Mais que os movimentos simples, como ir para a frente ou para trás, também estamos testando movimentos mais sutis e complexos das pernas, ditados pelo cérebro”, diz Contreras-Vidal. “Além disso, estamos trabalhando com pessoas que sofreram lesões totais de medula e vítimas de derrame que perderam os movimentos.”

O sistema que está sendo desenvolvido na Universidade de Houston desde 2004 é um dos poucos que poderia auxiliar tetraplégicos – a paralisia mais difícil de ser superada pelos médicos. De acordo com os cientistas, a interface cérebro-máquina, ao ser usada constantemente pelos pacientes, vai refinando os padrões cerebrais e tornando a tarefa de reaprender a andar cada vez mais simples – e, talvez, sem o uso de robôs. “Essa plasticidade do cérebro poderia, potencialmente, disparar o crescimento de novos caminhos ligando o cérebro e a medula, melhorando e restaurando a capacidade de andar”, diz Contreras-Vidal.

Robô aprimorado – Na Europa, o projeto MindWalker mobiliza sete instituições de engenharia e neurociência para desenvolver um exoesqueleto comandado pela mente capaz de fazer pessoas com lesões medulares voltarem a andar pelas ruas. O protótipo desenvolvido desde 2010 e financiado pela Comissão Europeia (foram cerca de 8,5 milhões de reais) é semelhante ao de Contreras-Vidal e Nicolelis: sensores de EEG que, por meio de uma interface cérebro-máquina, comandam um exoesqueleto que poderá ser usado por paraplégicos.

A principal diferença que o robô que está sendo feito no Brasil deve trazer, além dos materiais com que será construído e do sistema usado para traduzir os sinais cerebrais, seria o conjunto de sensores que passam a sensação de toque no chão ao cérebro do paraplégico, como se ele fosse uma pisada real. “Certamente é um tipo diferente de exoesqueleto, mas, como nada foi publicado ainda, é impossível saber suas características”, diz Contreras-Vidal. “Acredito que essa tecnologia, no geral, pode ajudar pessoas com lesão medular não só fazendo com que voltem a andar, mas também trazendo benefícios para a saúde vascular, o sistema urinário e a pele.”

Para operar qualquer um desses três exoequeletos é necessário que a mente aprenda, antes, a melhor forma de controlá-lo. “Oito pessoas participaram dos testes do MindWalker, que incluem um exercício de cerca de meia hora para treinar o cérebro a enviar os sinais certos ao robô”, explica o neurocientista Guy Chéron, da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, responsável por uma das equipes do projeto. “Ele funciona bem, mas agora estamos trabalhando para que ele seja mais veloz e para que os pacientes possam operá-lo sem a ajuda de médicos ou enfermeiros.”

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A principal dificuldade dos cientistas é usar os sinais cerebrais certos para comandar a máquina. Sensores de EEG são úteis porque captam uma área grande do cérebro. Recebem, porém, interferências de estímulos elétricos como os feitos pelos músculos da cabeça ou de outros pensamentos que não são apenas os de movimentos.

“Ainda precisamos melhorar a captação desses sinais. Ou usar outros tipos de estímulo que não passem pelo cérebro, como os fornecidos pelos músculos do braço. Trabalhamos também com um protótipo que usa o balanço dos braços, que acompanha a caminhada, para estimular a marcha do robô. Isso funciona muito bem para paraplégicos e deve estar pronto em, no máximo, dois anos”, diz Chéron.

Implantes neuronais – Outra opção para o comando de próteses e exoesqueletos, considerada pelos cientistas, é o uso de implantes cerebrais. Colocados sob o crânio, eles teriam a vantagem de receber os sinais de um grupo grande de neurônios de maneira mais direta e com menos interferências. Em maio de 2012, um artigo publicado na revista Nature descreveu a experiência de Cathy, uma mulher tetraplégica há quinze anos que, usando um implante no cérebro, moveu um braço robótico para pegar um copo de café sobre uma mesa, beber o líquido e devolvê-lo.

Feita por um time de cientistas das universidades Brown e Stanford, nos Estados Unidos, a pesquisa mostrou que, pelo poder do pensamento, pessoas paralisadas há muito tempo são capazes de fazer movimentos refinados. “O paciente enviou para o braço robótico sinais de como mexer o braço, abrir e fechar a mão. Mas decidir a quantidade de informações que queremos decodificar do cérebro e o quanto o robô vai captá-la ainda é um campo muito interessante de pesquisas”, diz Leigh Hochberg, professor da Universidade Brown e um dos autores do artigo da Nature.

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Implantes cerebrais, entretanto, são considerados por alguns médicos uma técnica muito invasiva, já que depende de uma neurocirurgia para ser implantada. Além disso, pode causar infecções e tem uma durabilidade finita – em alguns meses, forma-se uma cicatriz que faz com que ele pare de funcionar. Na Universidade Brown, nove pessoas receberam os implantes e estão fazendo testes que mostrem sua viabilidade para restaurar os movimentos.

“Por enquanto, estamos aperfeiçoando os implantes, tentando torná-los wireless, e buscando maneiras de dispensar o uso do robô e fazer o cérebro enviar mensagens diretas para os músculos”, afirma Hochberg.

Caminhada do futuro – Para grande parte dos pesquisadores envolvidos em projetos para restaurar a mobilidade de paraplégicos ou tetraplégicos, o futuro estará, provavelmente, em uma combinação de todas essas técnicas que estão sendo desenvolvidas pelo globo.

“A solução mais provável para que pessoas com paralisia voltem a andar deve ser um exoesqueleto que usa diferentes tipos de sensores capazes de captar todas as informações do corpo necessárias para andar. Alguns sensores de EEG ou implantes neuronais, mas também vários outros além dos cerebrais”, afirma o neurocientista Daniel Ferris, professor da Universidade de Michigan. “Até agora, todos os exoesqueletos ainda são protótipos. Mas, no futuro, eles devem sair dos laboratórios.”

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