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‘É preciso superar o criacionismo’, diz Neil deGrasse Tyson

O astrofísico, famoso como escritor e apresentador, fala sobre mistérios do universo, filmes, religião... sem medo de entrar em temas controversos

Por Raquel Beer
Atualizado em 29 ago 2016, 14h27 - Publicado em 28 ago 2016, 18h01

O astrofísico nova-iorquino Neil deGrasse Tyson é um dos rostos mais conhecidos da ciência contemporânea. Mas não por ter realizado alguma grande descoberta científica (apesar de contar com uma extensa, produtiva e renomada carreira acadêmica). A razão da celebridade é sua excepcional capacidade de apresentar conceitos complexos da física de maneira leve, simples e sempre bem-humorada. O carisma fez dele o rosto da premiada série televisiva Cosmos, em substituição ao icônico astrofísico Carl Sagan (1934 1996) – e também lhe garantiu o título de “Astrofísico mais sexy” pela revista americana People. Em sua missão de popularizar a ciência, Tyson também lança livros que rapidamente se tornam best-sellers. Entre eles está o atemporal Morte no buraco negro, que apesar de ter sido publicado nos Estados Unidos há quase uma década, chega só agora às prateleiras brasileiras.

O livro reúne os melhores artigos escritos pelo astrofísico para a Natural History Magazine, revista científica americana. São 432 páginas divididas em capítulos curtos, agrupados em cinco seções. Ele fala sobre o desafio do homem com o fazer ciência, a descoberta dos componentes do universo, o que já entendemos sobre como viemos parar aqui, todas as maneiras como o universo quer nos matar e, por último, o eterno conflito da razão com a fé. Além de ser um professor nato, o astrofísico não tem medo de opinar sobre assuntos polêmicos e manteve essa postura ao conversar com o site de VEJA sobre temas variados, que passam pelo livro em si, os mistérios que ainda precisamos desvendar, exploração espacial e o choque da ciência com a religião e o esoterismo. Ou seja, como gosta de fazer, discursou sobre o que fosse, sempre exibindo segurança e amplo conhecimento sobre diversos campos do saber.

O LIVRO

É estranho para o senhor ainda dar entrevistas sobre um livro que publicou há quase uma década? Escrevi essa obra justamente para que tivesse vida longa de prateleira. Essa é uma das vantagens da ciência: uma vez que verdades objetivas sobre o mundo são estabelecidas, elas continuam verdadeiras por muitos anos. A equação E=mc², célebre fórmula da teoria da relatividade de Albert Einstein, continua a funcionar, apesar de ter sido introduzida em 1905, e sempre será assim. Acho que ainda falar sobre esse livro é evidência de que fui bem sucedido em abordar a parte fundamental da ciência e não tão-somente sobre as últimas descobertas.

O livro compila artigos. Qual deles é o teu favorito? O cujo título é Noites de Hollywood. Tem ciência, cultura pop, tudo junto num mesmo texto. É o capitulo mais divertido e é um pouco autobiográfico, porque conto a história do Titanic: quando James Cameron soube que eu reclamei sobre o céu estrelado que apareceu no filme enquanto o navio afundava, ele consertou o erro na reedição do filme. Foi um triunfo da precisão, nos dá esperança de que as pessoas continuarão a ouvir a razão da ciência.

CIÊNCIA E CULTURA POP

Os filmes devem ser fieis à realidade em todos os detalhes? Como fica a liberdade artística? Sou a favor da imaginação. Mas não quando a história se propõe a simular o mundo real, onde as leis da física se aplicam. Foi o caso de Titanic. Pense comigo: se você assistir a um filme da vida de Jane Austen, no século 19, e alguém estiver vestindo calças tingidas, você pensará que o designer não sabia o que estava fazendo e que eles certamente não ganhariam um Oscar por figurino. É a mesma coisa com a física. Sou fã do que Mark Twain, que disse: “Primeiro, informe-se dos fatos; depois, pode distorcê-los quanto quiser”.

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Acha que houve uma evolução, nesse sentido, na nova safra de filmes hollywoodianos, como Interestelar, Perdido em Marte e Gravidade? Esses são melhores. Eu tuitei alguns erros que eles cometeram, mas foi por amor à física, não criticismo, como alguns pensaram. Eu queria mostrar como eles aprimoraram e estão levando a ciência mais a sério.

MISTÉRIOS

O prefácio mostra como na história houve quem dissesse que nós já havíamos descoberto tudo, o que sempre se mostrou um erro. O senhor inclusive enumera uma série de perguntas sem resposta. Qual delas será a próxima a ser esclarecida? Os tópicos matéria escura e energia escura são fontes de ignorância na comunidade científica. Nos próximos 30 anos, porém, esses elementos serão esclarecidos, aposto. Além disso, acho que descobriremos se há vida no nosso quintal nos próximos 10 ou 20 anos, procurando por vida nos aquíferos de Marte, ou na Europa, lua de Júpiter.
Também há uma seção sobre as várias maneiras como o cosmo ameaça o planeta Terra. A morte do Sol, a colisão com a galáxia de Andrômeda e a morte do próprio universo. Qual delas é mais preocupante? Nessa seção, hoje eu ainda acrescentaria as mudanças climáticas. Temos dois planetas mais próximos de nós: um tem efeito estufa e temperatura de 500 graus (Vênus) e outro que eventualmente teve água líquida, mas secou (Marte). Algo ruim aconteceu nesses locais e acho que seria vantajoso a longo prazo estudar as mudanças climáticas e os efeitos delas na estabilidade da civilização. Mas entre todos os perigos cósmicos, acho que é mesmo com asteroides que temos que nos preocupar.

Quando fala sobre asteroides no livro, o senhor diz que podemos ser extintos não por falta de inteligência, mas por falta de presciência. Não estamos fazendo o suficiente para nos proteger? Minha resposta ainda é “não”. Sabemos como nos proteger, temos bons engenheiros, um programa espacial, conhecemos trajetórias de asteroides e conseguimos desviá-los ou destruí-los, mas precisamos de motivação para fazê-lo. Necessitamos de uma organização política e de cooperação internacional. Suponha que detectemos um asteroide que vai atingir o Golfo do México. Obviamente os EUA farão algo para proteger a Terra. Mas e se ele atingisse o Oceano Índico? Os americanos podem falar ‘isso não é problema nosso, não gastaremos com isso’. O ponto é que se o asteroide for grande o suficiente, é um problema global. Uma ideia é criar um fundo mantido por todos para garantir que conseguiremos agir de forma que não importe onde a rocha caia. Hoje, não estamos mais protegidos, nesse aspecto, do que há dez anos.

EXPLORAÇÃO ESPACIAL

O senhor diz que para países “deixarem a sua marca na ciência” é preciso que uma nação concentre seu capital emocional, cultural e intelectual na criação de ilhas de excelência. Na exploração espacial, a liderança historicamente foi dos EUA, Rússia e de alguns países europeus, mas agora empresas entraram na jogada. Quem protagonizará o futuro da exploração? Sobre a liderança americana, chegamos à Lua não porque cooperamos, mas porque competimos. A disputa, como vimos na Olimpíada, é por si só uma força da natureza. Eu me pergunto: se não tivéssemos que ganhar da União Soviética, teríamos ido à Lua? Não sei a resposta. Sobre a exploração espacial privada, duvido que as empresas liderarão a exploração, porque o espaço ainda é perigoso e, seu desbravamento, caro. Companhias necessitam de retorno de investimento em curto prazo. Por isso, historicamente, os governos foram aqueles que fizeram os principais investimentos em tecnologia, ciência e descobertas para, então, serem seguidos pela iniciativa privada.

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Sobre o papel dos robôs, o senhor diz que enquanto não forem capazes de “simular a curiosidade humana e as centelhas de insight”, eles continuarão sendo usados apenas para descobrir o que já esperamos encontrar. Nos últimos anos, contudo, a tecnologia de inteligência artificial evoluiu bastante. O senhor ainda acredita nisso? Não. Acho que podemos mandar um robô para o espaço e ele conseguirá resolver tudo sozinho… mas eu não quero perder o lugar na viagem! Quando astronautas voltam de uma missão, eles são festejados, há desfiles. Nada disso acontece com robôs. A exploração espacial humana captura as nossas emoções e instiga as pessoas a aprender mais.

CIÊNCIA

Em muitos capítulos, o senhor apresenta alguma constatação científica, mas depois diz que há um grande número de pesquisadores procurando falhas nas teorias. Não é compreensível que as pessoas sejam céticas em relação à ciência, levando em consideração que duas das principais teorias da física são inconciliáveis? As teorias da física quântica e da relatividade são bem sucedidas e funcionam toda vez que as testamos, mas sabemos que nos limites extremos elas falharão, como no centro de um buraco negro ou no instante em que o universo surgiu. Agora precisamos encontrar uma forma de conciliá-las: uma vai absorver a outra e vice-versa ou surgirá um terceiro entendimento que será um guarda-chuva e irá abarcar as duas. Foi o que aconteceu com a relatividade, já que as leis de movimento e gravidade de Newton funcionavam, mas Einstein mostrou sob quais circunstâncias elas falhariam e, assim, criou a relatividade. Mas se você aplicar baixa velocidade e gravidade nas equações de Einstein, elas se tornam as de Newton. Logo, não descartamos a primeira teoria, só criamos um círculo maior ao redor dela.

Então não há motivo para as pessoas serem céticas quanto à ciência? Aqueles que dizem não confiar na ciência geralmente têm outra filosofia, que pode ser política ou religiosa, por exemplo. Só não podemos esquecer que a ciência é um caminho para encontrar verdades objetivas. Você pode ter verdades pessoais, como ‘Jesus é meu salvador’. Motivo: se quiser convencer outra pessoa disso, precisará repetir isso com frequência ou travar uma guerra, obrigando-os a concordar com você. Não há provas factíveis. Já a verdade objetiva é verdade, quer você acredite nela ou não. É com base nelas que legislações deveriam ser criadas. De qualquer forma, a fronteira da ciência é sempre complicada e as coisas que se provam erradas são geralmente as que aparecem nos jornais. Mas uma vez que uma hipótese é testada muitas vezes, por pessoas e países diferentes, e se chega ao mesmo resultado estatisticamente, ela torna-se um fenômeno emergente em suas mãos.

RAZÃO VERSUS FÉ

Há no livro uma seção sobre a relação da ciência com a religião. Algumas das expressões que você usa são: “São abordagens inconciliáveis” e “não há concordância”. Ao mesmo tempo, você aponta uma pesquisa que mostra que 20% dos astrofísicos são religiosos. Afinal, é possível conciliar? Esses cientistas mantêm cada uma dessas coisas em partes separadas do cérebro. É só isso. Eles só podem dizer que a religião deles não conflita com a ciência se rejeitarem todos as alegações científicas feitas por sua religião. No cristianismo, por exemplo, há uma capítulo inteiro na Bíblia sobre a Origem. Eles devem rejeitar sumariamente tudo dito na Gênesis, porque o que é dito lá se opõe à evolução e à história, ou mesmo a idade, da Terra. Então eles, os cientistas-religiosos, rejeitam essa parte e mantém os elementos de enriquecimento espiritual. Assim as duas ideias podem coexistir dentro da mesma mente. Pode ser devastador para algumas pessoas, porque é a sua religião, sua filosofia, mas em certo ponto é preciso superar isso. Aceite, as conclusões científicas são verdades objetivas.

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Algumas vezes, o senhor se refere a ‘pessoas com sexto sentido’ ou a áreas como a astrologia como “bobagens místicas que sempre falham no teste científico”. Se não há base sólida, por que o público se interessa tanto por essas “bobagens” – muitas vezes mais do que por assuntos científicos? Alguns gostam de acreditar que têm mais poderes que os outros. Por exemplo, o “poder” de prever o futuro é muito valorizado na cultura e na sociedade. Se você diz que consegue realizar isso, as pessoas vão aparecer na sua porta. Mesmo se não apresentar provas dessa capacidade. Mas na física e na astrofísica também conseguimos fazer previsões: podemos dizer a que horas o Sol vai nascer ou quando vai acontecer um eclipse solar total. A precisão é tanto que acertamos inclusive o tempo exato, em segundos, em que esses fenômenos irão correr. Mesmo assim, alguns preferem os autointitulados profetas.

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