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Memórias escondidas: historiadores denunciam restrições e controle político de acesso a arquivos da ditadura

Professores da UFRJ afirmam que aluna de doutorado foi impedida de consultar documentação que deveria estar disponível no Arquivo Nacional

Por Flávia Ribeiro, do Rio de Janeiro
4 nov 2010, 20h49

“À medida que o processo foi burocratizado, ficou nas mãos dos arquivistas, e nós não tínhamos mais função ali. Não precisam da gente para ser o que já eram. A ideia era maravilhosa, mas se enquadrou”, avalia Jessie Jane

No início do governo Lula, há oito anos, a historiadora Jessie Jane, professora da UFRJ e ex-presa política, imaginou um grande portal no qual os documentos da ditadura militar (1964-1985) estivessem acessíveis a todos os cidadãos brasileiros. No ano passado, quando o projeto Memórias Reveladas foi criado pelo Governo Federal, a partir da ideia de Jessie, ela e Carlos Fico, também professor do Departamento de História da UFRJ, embarcaram no trabalho, Jessie como presidente da Comissão de Altos Estudos da entidade, Fico como presidente substituto. Na terça-feira, pouco mais de um ano depois, Fico pediu demissão após uma aluna ter acesso negado a documentos no Arquivo Nacional de Brasília, e foi seguido por Jessie, um dia depois. “À medida que o processo foi burocratizado, ficou nas mãos dos arquivistas, e nós não tínhamos mais função ali. Não precisam da gente para ser o que já eram. A ideia era maravilhosa, mas se desvirtuou”, diz Jessie.

A historiadora conta que o objetivo seria a criação de procedimentos comuns a todos os arquivos, pautados nos exemplos dos arquivos estaduais de São Paulo e do Paraná, onde o acesso é franqueado ao público, ao contrário do que acontece em diversos arquivos estaduais e municipais, além de no próprio Arquivo Nacional. “Vários pesquisadores enfrentam essa dificuldade. Não só pesquisadores. Isso acontece todos os dias com o cidadão que procura os arquivos – com vítimas da ditadura, inclusive”, afirma Jessie, que acredita na necessidade de as regras de acesso à documentação serem definidas com transparência.

Desgaste – Para Carlos Fico, o episódio em que a aluna de doutorado da UFRJ Adrianna Setemy foi impedida de acessar uma documentação foi a gota d’água em um processo de desgaste que vinha acontecendo há meses. “Eu e Jessie vínhamos conversando sobre isso há muito tempo. Os arquivos da ditadura militar do Arquivo Nacional, em tese, estão disponíveis. Há uma lei que preserva a privacidade de seus personagens, mas o que acontece é que está havendo uma interpretação muito restritiva dessa lei. E a gente foi vendo que o Memórias Reveladas era um projeto que não se concretizava. Só que o episódio da Adrianna, no meu caso, foi a gota d’água porque a justificativa não foi mais da privacidade, foi de outra natureza”, diz.

O historiador se refere à explicação que o funcionário do AN de Brasília deu a Adrianna para restringir seu acesso. “Quando fui a Brasília, em janeiro, passei uma semana estudando o instrumento de pesquisa (espécie de catálogo explicativo dos documentos) da Divisão de Segurança e Informação, para minha pesquisa sobre o papel do Ministério de Relações Exteriores no combate ao comunismo. No início de outubro, voltei a Brasília, com o levantamento que havia feito, para pedir o acesso aos documentos. O funcionário me disse: ‘Adrianna, esses fundos (de pesquisa) não estão mais acessíveis. O seu levantamento não vale mais, o procedimento agora é outro’. Quando perguntei por que, ele disse que era para ‘resguardar o processo eleitoral'”, conta Adrianna: “Ele completou dizendo que isso acontecia em função do uso das informações por jornalistas mal-intencionados. Como se liberdade de informação dependesse do contexto político.”

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O novo procedimento seria igual ao usado com os arquivos do Serviço Nacional de Segurança (SNI), que têm uma série de restrições garantidas pela legislação. No caso, o pesquisador não tem acesso ao instrumento de pesquisa. Ele entrega ao arquivista uma série de palavras-chave relacionadas ao seu tema e, então, o próprio arquivista faz o levantamento e entrega um resultado. “Fiz isso, mas o levantamento dele passou longe do meu, claro, já que não é ele quem está mergulhado na minha pesquisa. Além disso, não há uma legislação que ampare essa restrição, como há no caso do SNI. Esses documentos são bens públicos. Impedir o acesso a eles é o mesmo que impedir uma pessoa de entrar em uma praça pública”, ressalta Adrianna.

No dia em que foi impedida de pesquisar, Adrianna ligou para Carlos Fico, que imediatamente telefonou para Jaime Antunes, diretor do Arquivo Nacional e coordenador-geral do Memórias Reveladas. “O Jaime ficou muito surpreso, disse que ia procurar saber o que houve, mas isso não aconteceu. Então eu mesmo resolvi fazer um teste. Fiz um pedido de pesquisa e me disseram para esperar até o dia 29, que o Jaime então resolveria isso. Achei a data, último dia da campanha eleitoral, estranha, e mais estranho que eu tivesse que tratar diretamente com o diretor do Arquivo Nacional. Não quero privilégio, quero atendimento rotineiro, de balcão”, diz Fico.

O historiador decidiu esperar até depois das eleições antes de apresentar sua demissão e seus motivos. “Eu acreditava que o episódio poderia ser usado de forma manipulada por um ou pelo outro lado. E minha questão não tem nada a ver com campanha. Sou um pesquisador, e meu compromisso é acadêmico e político. Mas não político partidário. Meu compromisso é com a liberdade de informação e pesquisa, uma atitude pautada pelo interesse público”, conclui Fico, que tem esperanças de que a situação mude: “Esse episódio é apenas mais um numa longa sucessão de lutas pela abertura”, acredita.

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