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‘Ela pediu pelo amor de Deus para não morrer’, diz marido de mulher linchada

O porteiro Jaílson Alves das Neves narra ao site de VEJA como reagiu ao linchamento de Fabiane Maria de Jesus, a mulher com quem viveu por 18 anos

Por Felipe Frazão 11 Maio 2014, 13h56

Prestes a completar uma semana desde que esteve com sua mulher pela última vez, o porteiro Jaílson Alves das Neves, de 40 anos, ainda segura o choro. Ele passou os últimos dias tentando confortar as duas filhas, Yasmin, de 12 anos, e Ester Nicole, de apenas 1 ano, que neste domingo passarão o Dia das Mães em luto. No sábado passado, Jaílson foi surpreendido pelo chamado de uma prima. Ela tinha uma foto “terrível” para mostrar. Por volta das 19h, o porteiro soube por imagens postadas no Facebook que sua mulher, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, havia sido brutalmente espancada por uma turba de moradores de Morrinhos, na periferia do Guarujá (SP). O linchamento ocorreu horas antes, enquanto Fabiane passeava de bicicleta nas estreitas ruas de terra do bairro onde nasceu. Havia ao menos dez dias, um boato replicado no Facebook com um retrato falado alertava sobre uma mulher que supostamente raptava crianças para rituais de magia negra. Apavorados, centenas de moradores avançaram contra Fabiane, acreditando se tratar da sequestradora. A dona de casa, descrita como uma pessoa dócil e faladeira, lutava para superar os distúrbios do transtorno bipolar. Para serenar as crises, gostava de cantar e dançar. Abraçado a um diário de Fabiane, que completaria 34 anos no dia 6 de julho, Jaílson lembra que a mulher imaginou que se casaria com ele na igreja, dias antes de morrer. Com olhos mareados e voz trêmula, Jaílson conversou com site de VEJA, no litoral paulista. Vestia uma camiseta com foto da mulher e da filha mais nova. A imagem resume o sentimento da família: “Fabiane, a dor da inocência”. Jaílson pausou a conversa diversas vezes para respirar fundo, mas não deixou escapar nenhuma lágrima: “Quero me lembrar dela viva, e não massacrada”.

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Como era a Fabiane? A Fabiane era uma pessoa dócil, alegre, extrovertida e muito faladeira. Gostava muito de estudar e de passear na rua. Fabiane era uma dona de casa comum. Tinha várias receitas em casa e se cismasse que ia fazer uma, era com ela mesmo. Gostava de pizza, de fazer doces e de bolo. Ela organizava as contas de casa em um diário, anotava tudo que estava devendo. Até médico ela marcava para mim porque eu tenho pavor de injeção. A Fabiane era apaixonada pelas filhas, gostava de agradar as duas. A Yasmin faz 13 anos em 9 de julho, e a Nicole, fez 1 ano no dia 13 de abril. Como a nossa filha mais nova nasceu no mesmo dia que a minha mãe, a Fabiane disse ‘olha, minha sogra querida, essa aqui é o presente que Deus te deu’. Desde o acontecido estou dormindo com a minha mãe. Foi ela quem pediu para mim. Se você ficar só no mesmo lugar, lembrando e lembrando, aquilo vai te sufocar. Não são só os repórteres que ficam em cima, mas seus vizinhos, os amigos… Todos querem confortar, tá certo, mas eu prefiro dar uma volta.

Ela era muito religiosa? Com ela não tinha tempo ruim para ir à Igreja. Nós estávamos juntos há 18 anos, mas não erámos casados no papel, nem na Igreja. Aí, uns três dias antes de acontecer (o linchamento), ela foi a uma igreja onde havia um casamento. Foi um caso engraçado, porque me ligaram de lá dizendo que ela estava atrapalhando o casamento. Eu fui buscar a Fabiane a pé e chegando lá ela disse ‘olha, amor, hoje é o dia do nosso casamento’. Aí eu respondi ‘então vamos para a casa trocar de roupa para ir casar’. Quando estávamos indo embora, ela falava para todo mundo na rua ‘olha, hoje é o dia do nosso casamento’ e dando risada. Quando chegou em casa, eu passei a chave e fechei o portão, aí ela ficou brava e me falou ‘você me enganou, não quer mais casar comigo’. Eu disse: ‘Não, quando você ficar boa a gente conversa com o padre e marca a data do nosso casamento’. Eu fiquei conversando com ela até que ela se acalmou e caiu a ficha: ‘Ah, hoje não era o dia do nosso casamento não, né? É só quando eu ficar boa’. E eu disse: ‘É, quando você ficar boa a gente casa’.

Como foi o dia dela no sábado? Ela saiu de casa de bicicleta por volta das 8h da manhã. Minha mãe viu, mas não deu tempo de falar com ela. Como ela só ia na casa de conhecidos, a gente não se preocupou. Ela passeou na praia e foi a Astúrias, onde eu trabalho. Meu chefe me ligou preocupado dizendo: ‘veio uma moça de cabelo curtinho, ruiva, te procurando, é sua esposa?’. Ele não tinha reconhecido porque ela tinha cabelo comprido, mas cortou e descoloriu o cabelo uma semana antes. Ele me ligou de novo dizendo que ‘ela estava meio transtornada’ e que ela estava indo para casa. O transtorno dela era ficar alegre, cantar e dançar, uma forma de relaxar. De lá, ela passou na casa de conhecidos e foi à Igreja São João Batista para pegar uma bíblia que ganhou de presente do primo dela, o William, e estava emprestada. Ela marcava as páginas com a imagem de uma santa. O que disseram ser a foto de uma criança nesse suposto livro de magia negra era a imagem da santa. Ela fez essa rotina dela e passou numa quitanda para comprar banana para as filhas. Ela tinha comprado fruta para as crianças no dia que fizeram essa atrocidade, essa barbaridade com ela. Eu só soube às 19h da noite, através do Facebook. A minha prima me ligou e disse para eu ir buscar umas roupas que Fabiane havia esquecido lá. Peguei a bicicleta e pensei em dar uma volta para, de repente, encontrar com ela na rua. Passei na rua em que ela gostava de andar. Se eu fosse por outra rua, daria para ver [a multidão do espancamento]. A Fabiane foi assassinada a três quadras da casa da minha prima. Logo que entrei ela me disse ‘olha, não se assuste, não fique abalado, mas o que eu vou mostrar é terrível’. A página do Facebook até demorou a carregar, mas assim que a foto apareceu eu disse ‘é ela’. O médico que atendeu a Fabiane no CTI me disse ‘olha, me desculpe, mas eu vou ter falar a verdade. Ela chegou aqui num estado lamentável. O estado dela é gravíssimo, ela corre risco de morrer’.

Como o senhor acha que ela reagiu ao início do espancamento? Acho que ela nem teve tempo de reagir. O que me contaram por alto é que ela pediu ‘pelo amor de Deus’ ajoelhada, fazendo assim [Jaílson junta as mãos, palma contra palma, e simula um gesto de súplica]. Ela já tinha tomado paulada. Primeiro foi um soco na boca [o marido leva o punho cerrado contra os lábios], quando estava na bicicleta. Mas isso me contaram, não tenho provas e nem quis saber detalhes.

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A polícia diz que muitos agressores são do mesmo bairro, de Morrinhos. Que reação o senhor teria se cruzasse com um deles na rua? Olha, eu não reconheceria porque eu não quis ver os vídeos. Eu não quero lembrar dela massacrada. Eu quero lembrar dela viva. A Yasmin nem foi no enterro. Ela também quer lembrar da mãe viva e não da mãe massacrada. Ela vai sentir a perda da mãe, mas vai sentir menos do que se tivesse visto a mãe no caixão. Ela é igual a mim, segura bastante o choro. Hoje [quinta-feira] ela pediu para eu comprar um quadro para colocar uma foto da mãe dela, por causa do Dia das Mães. Ela sente falta da mãe dela, mas ela vai soltando o sentimento aos poucos, como eu. Quando eu a vi no hospital, por incrível que pareça, eu não chorei. Fiquei emocionado, mas segurei o máximo que pude. Fui chorar mais quando voltei para casa, sozinho, tomando banho. Posso ficar um, dois dias sem chorar, mas se tocar muito no assunto eu choro, também não sou de ferro.

Qual o sentimento do senhor em relação a quem linchou a sua mulher? Eu não sinto ódio, não sinto desprezo. Eles têm de colocar a mão na consciência porque poderia acontecer com a mãe deles, com uma filha ou um filho… Se eles tivessem cabeça, teriam pensado mil vezes antes de fazer aquilo.

O senhor vai continuar morando em Morrinhos com suas filhas? O futuro a Deus pertence. Eu não tenho condições de sair imediatamente de lá. Eu gosto do bairro. Foi um ato lamentável, foi muita crueldade. Sinceramente, não sinto ódio das pessoas de lá que fizeram isso com ela. Não vou guardar essa mancha negra no meu coração.

https://youtube.com/watch?v=39AvAKJ3I_w

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