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Desastre gaúcho: assassinato em aeroporto expõe crise do RS

Número de homicídios dolosos no estado saltou de 1 668 em 2010 para 2 405 em 2015. E a escalada da criminalidade é só a parte mais visível do problema

Por Augusto Nunes, de Porto Alegre
Atualizado em 28 set 2016, 20h47 - Publicado em 23 set 2016, 22h19

O inverossímil atrevimento dos assassinos que agiram no aeroporto de Porto Alegre é de assombrar o mais graduado matador a serviço da máfia, atesta o vídeo transformado em campeão de audiência minutos depois do desembarque na internet. Os carrascos de Marlon Roldão, 18 anos completados no dia em que se cumpriu a sentença de morte emitida por uma organização criminosa ba­sea­da na periferia da capital gaúcha, protagonizaram a erupção do horror com a desenvoltura de quem se julga condenado à perpétua impunidade. A despreocupação com as câmeras de segurança é escancarada já na cena de abertura, que mostra em primeiro plano um negro corpulento e um branco franzino dividindo em silêncio a mesa do restaurante no saguão. O bandido gordo está de costas, mas logo exibirá seu perfil. O parceiro nem tenta ocultar o rosto. Às 11 horas, 12 minutos e 17 segundos, ao localizar o jovem marcado para morrer no meio do grupo de amigos que conversam na área de embarque do Terminal 2, a dupla de homicidas se ergue sem pressa. Nenhum deles acha arriscado atacar num local tão movimentado.

A nenhum deles parece sensato abortar a missão, ameaçada pelo inesperado aumento da multidão que costuma circular por lá às segundas-­feiras: minutos antes, dezenas de torcedores do Grêmio haviam irrompido no saguão para recepcionar o ídolo Renato Portaluppi, o Renato Gaúcho, de volta ao clube no papel de técnico. Com passadas displicentes, os parceiros contornam, de armas na mão, a coluna que os separa do alvo, ressurgem na tela próximo de Marlon, avançam 2 metros e, a centímetros da vítima, apertam o gatilho das pistolas 9 milímetros.

Os tiros inaugurais jogam ao chão o corpo já sem vida de Marlon, mas a sequência de dezessete disparos em cinco segundos não é interrompida. Agora mais ágeis, os matadores começam a afastar-se do palco da selvageria ainda mandando chumbo no cadáver. Sempre empunhando as pistolas, saem pela entrada principal e, depois de um último tiro para o alto, embarcam no carro prateado dirigido por um cúmplice que aciona o freio no meio da avenida, afunda o pé no acelerador com os assassinos no banco traseiro e desaparece na selva de veículos.

Passados alguns dias, é provável que os bandidos estejam festejando o sucesso da empreitada sangrenta em algum lugar que a polícia, enquanto não descobre onde fica, qualifica como “incerto e não sabido”. Certo e sabido é que a execução a tiros no saguão do Salgado Filho, o primeiro crime do gênero ocorrido num aeroporto, conferiu dimensões insuportáveis à epidemia de insegurança que grassa há pelo menos dez anos no Rio Grande do Sul e fez transbordar o pote até aqui de medo. A mensagem de grosso calibre foi captada por dez entre dez gaúchos: os bandidos agora agem em qualquer lugar, a qualquer hora, em qualquer dia, até mesmo na véspera da data máxima dos gaúchos, o 20 de Setembro, que celebra o início da Revolução Farroupilha.

Desencadeada em 1835, a mais longa guerra civil da história do Brasil separou do resto do império a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, rebatizada de República Rio-­Grandense, e consolidou o orgulho nacionalista com a formidável demonstração de autossuficiência. Durante dez anos, o mundo gaúcho provou que não dependia do poder central para continuar existindo. A declaração de amor à autonomia político-­administrativa, reafirmada a cada 20 de setembro, colidiu neste ano com evidências contundentes de que o Rio Grande do Sul que combateu a bala a dependência do poder central hoje precisa mais do que nunca de socorros federais. Reflexos da dramática mudança são visíveis a olho nu sobretudo em Porto Alegre. Na terça-feira, por exemplo, cavaleiros, prendas e trovadores em trajes típicos comemoraram os incontáveis entreveros com tropas do Exército imperial sob o olhar protetor da tropa da Força Nacional de Segurança enviada pelo presidente Michel Temer, no fim de agosto, a pedido do governador José Ivo Sartori, do PMDB. Há mais de três semanas 120 soldados dividem com a Brigada Militar o policiamento preventivo da capital assustada com a escalada da criminalidade, que vai contagiando os grandes centros urbanos do Rio Grande do Sul.

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Os 1 418 homicídios dolosos ocorridos no estado em 2006 saltaram para 2 405 em 2015 e, só no primeiro semestre de 2016, bateram em 1 276. Os 351 assassinatos registrados em Porto Alegre entre janeiro e junho deste ano já ultrapassaram os 283 de 2006. “O que acontece por aqui não é muito diferente do que se vê em outros lugares do país”, ressalva Sartori, um desbocado descendente de italianos formado em filosofia que, aos 68 anos, parece ter transferido para o bigode espesso os fios que povoavam a região central do crânio.

É o tipo de consolo que garante a insônia. Com a taxa de 34,73 homicídios por 100 000 habitantes, Porto Alegre ocupou em 2014 o 15º lugar no ranking da criminalidade nas capitais, a uma distância amazônica da líder Fortaleza (60,77). O mesmo índice, contudo, garantiu à metrópole gaúcha a 43ª posição no ranking das cidades mais violentas do mundo. Os moradores rejeitam comparações com metrópoles brasileiras historicamente inseguras. Preferem comparar a Porto Alegre de hoje à Porto Alegre que, não faz tanto tempo assim, desfrutava em sossego uma animada vida noturna. Crimes sempre aconteceram, claro. Mas nenhum morador poderia imaginar que, entre 1º de janeiro e 28 de agosto, 25 latrocínios ajudariam a manter a segurança pública no topo da alentada lista de problemas que atormentam o Rio Grande do Sul. O medo de morrer num assalto não é muito maior que o de ver o mundo rio-grandense sucumbir à conjugação de muitos tumores, que incluem a anemia econômica e financeira, o inchaço desvairado da máquina pública, a incompetência administrativa, a ausência de líderes brilhantes e o sumiço da autoestima.

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