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Arquivo VEJA: há 25 anos, outra calamidade

Por Da Redação
28 nov 2008, 21h46

A tragédia que abalou Santa Catarina nos últimos dias não foi a única desse tipo no estado. Os catarinenses sofrem com as enchentes desde 1862, quando a região começou a ser povoada. Nas últimas três décadas, três grandes cheias deixaram vítimas e arruinaram cidades. Elas ocorreram em 1974, 1983 e 1995. As enchentes de 25 anos atrás foram assunto de uma capa de VEJA. Assim como na atual calamidade, o país todo se mobilizou para ajudar os desabrigados. A seguir, a íntegra do texto da revista sobre o episódio, publicado na edição de 20 de julho de 1983.

***

O Sul na guerra das águas

A tragédia do Paraná, Santa Catarina e Rio

Grande do Sul une o país em seu socorro

Velho de mais de 70 anos, o pequeno marco de concreto existente nos arredores do município paranaense de União da Vitória, situado junto à fronteira de Santa Catarina, a 180 quilômetros de Curitiba, nunca mereceu maior atenção dos 40.000 habitantes da cidade. Cravado num lugar ermo, procurado sobretudo por casais de namorados, o marco assinala a altura atingida pelo Rio Iguaçu, que banha União da Vitória e dezenas de outros municípios, antes de formar o majestoso espetáculo das cataratas a 320 quilômetros dali, durante a maior cheia registrada na região até a semana passada: a enchente ocorrida em janeiro e fevereiro de 1911, quando o Iguaçu subiu 7 metros acima de seu nível normal. Na última quarta-feira, o marco ainda estava lá – mas sumira de vista. Fora engolido pelas águas que, batendo seu próprio recorde, desta vez se elevaram a 7,75 metros. E a população via substituído o ceticismo com que sempre encara a anterior marca histórica pela pavorosa realidade das casas submersas e as plantações destruídas, os desabrigados, o frio, a fome e a morte.

União da Vitória. Porto União, Rio do Sul, Blumenau, São Borja, Uruguaiana. Ao longo de toda a semana passada, os brasileiros tiveram sua atenção despertada para diferentes cidades do Sul do país da mesma forma como, numa guerra, se tem a atenção despertada para as frentes de batalha. E era bem dos efeitos de uma, guerra, nem mais nem menos, que na verdade se tratava. As chuvas que há dez dias vêm desabando sobre a maior parte dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e que na semana passada chegaram ao auge, tiveram o impacto de um bombardeio impiedoso e prolongado. Os mortos, segundo se calculava no final da semana, seriam no mínimo 300, mas poderiam subir a muito mais: cadáveres eram encontrados a todo momento no recôndito das casas inundadas. Os desabrigados formavam um exército estimado entre 350 000 e 400 000 pessoas. E os cálculos dos prejuízos engoliam várias vezes uma parcela como os 400 milhões de dólares que o Brasil deve ao Banco de Compensações Internacional (BIS), de Basiléia, e cujo não pagamento, na semana passada, tanta celeuma causava nos jornais.

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Em Santa Catarina, de acordo com o governo estadual, os prejuízos se elevariam a 500 bilhões de cruzeiros – ou quase duas vezes e meia, ao cambio oficial, a parcela devida ao BIS. No Rio Grande do Sul essa cifra seria de 400 bilhões de cruzeiros – ou quase duas vezes a parcela do BIS. Por trás destas cifras está destruição completa de setores inteiros da estrutura produtiva da região, do equipamento público e do patrimônio pessoal de centenas de milhares de pessoas. E isso é ainda mais alarmante quando se tem em conta que se trata de uma das mais populosas e ricas regiões do país, com 20 milhões de habitantes, 18% do Produto Interno Bruto brasileiro, 70% da produção de cereais, um parque industrial de mais de 25 000 fábricas e quinze universidades.

Em União da Vitória – aquela mesma cidade que teve seu marco histórico tragado pela inundação e os pluviômetros assinalaram, apenas nos dois primeiros e mais suaves dias de chuva, os últimos dias 6 e 7, um índice de 170 milímetros – o equivalente a 10% da precipitação normal de todo um ano. Nos dias seguintes, quando as chuvas apertaram, não houve mais medição: também os pluviômetros afundaram, junto com a estação meteorológica do município. Paralelamente à desgraça que atingia os Estados do Sul, porém, o país também protagonizou, num contraponto à violência com que os rios enfurecidos avançavam sobre as cidades indefesas, a um dos momentos mais nobres de sua crônica recente. De repente, com a mesma imprevisibilidade com que caem as chuvas, e a mesma força com que avançam as águas, brotou um gigantesco movimento de solidariedade. A ordem era socorrer as vítimas do Sul. E nesse esforço, em lugares tão diferentes como Rio de Janeiro e Belém do Pará, São Paulo e Acre, foi desencadeada uma frenética corrida aos postos de arrecadação de víveres, medicamentos ou qualquer outro artigo que pudesse ser de alguma utilidade para atenuar os efeitos da tragédia.

Houve oferecimentos que variavam dos pares de tênis doados pelas crianças até o automóvel Fiat modelo 1980 entregue em São Paulo por um cidadão que preferiu ficar no anonimato. Indústrias como a Cardoso, de Belo Horizonte, fabricante de biscoitos, remetiam portentosas 10 toneladas de seus produtos enquanto modestos trabalhadores como os membros da Cooperativa de Rádio-Táxis de São Paulo colocavam-se de plantão para buscar. de graça, os donativos – onde quer que os chamassem os doadores. O resultado dessa avassaladora corrente de solidariedade foi que no Rio de Janeiro, por exemplo, as mais de 200 toneladas de doações acumuladas no pavilhão de São Cristóvão e na sede da Cruz Vermelha – os dois principais postos de arrecadação – na sexta-feira não tinham mais como ser embarcadas. Simplesmente, os aviões já chegavam suficientemente sobrecarregados do Norte para que pudessem, no Rio, absorver novos donativos.

Na outra ponta da corrente da solidariedade – a genuína frente de batalha em que foram transformadas as cidades do Sul – encontravam-se pessoas como o arquiteto Stênio Ubirajara Vieira, de 33 anos, casado, com um filho ainda bebê, morador na maior das cidades atingidas pelas enchentes – Blumenau, de 160 000 habitantes, em Santa Catarina. Vieira foi previdente. Assim que notou os primeiros sinais de que as chuvas poderiam ter efeitos graves, deixou sua casa no bairro Pastor Hesse, situado numa zona baixa, mais sujeita portanto à ação das águas, e rumou para a centro da cidade, onde se abrigou com um amigo que mora numa região alta. A partir daí Vieira passou a manter um diário pelo qual se pode ter uma idéia, ainda que fragmentada, e ainda que da parte de alguém mais ao abrigo das conseqüências mais dramáticas da tragédia, de como é a vida sob os rigores de uma enchente:

Dia 7 – Madrugada: o Rio Itajaí começa a transbordar e fazer água após a segunda noite de chuvas torrenciais. Oito horas da manhã: as residências mais baixas do meu bairro já começam a ser atingidas. Rapidamente carrego o carro com as coisas de necessidade mais imediata, pego minha mulher e filho e rumamos para a casa dos amigos Ernani é Fátima, situada em zona alta dó perímetro central. O percurso é difícil. Preciso dar várias voltas, para contornar estradas e ruas intransitáveis. Finalmente chego e encontro Ernani já com provisões reforçadas, prevendo talvez dois ou três dias de isolamento

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Dia 8: as águas continuam a subir. Grande parte da zona central já está inundada, e único trabalho dos comerciantes consiste em tentar salvar suas mercadorias transportando-as para os andares mais altos. Foi cortada a energia elétrica no centro. Aqui do alto só vemos luzes nas regiões mais afastadas, lá embaixo. À noite escutamos estrondos vindos da casa vizinha. Acordamos assustados, sem saber o que ocorria…

Nesse dia a que se refere a diário de Vieira – a sexta-feira, dia 8 – já começava a instalar-se em sua plenitude o panorama de desordem e destruição que viria martirizar a Região Sul do país ao longo de toda a semana passada. Santa Catarina, o Estado mais atingido, localizado no epicentro das tempestades e da loucura de rios como o Negro e o Canoinhas, ao norte, e o ltajaí, no centro, começava então a viver uma tragédia sem precedentes na memória das pessoas. Quinto produtor de alimentos e quarto parque industrial do país, Santa Catarina, com seus 3,6 milhões de habitantes, teria, nos dias seguintes, 150 de seus 199 municípios inundados e declarados em estado de calamidade pública. Nada menos que 90% da área de 95 000 quilômetros quadrados do Estado ficariam cobertos pelas águas, como um imenso lago, no qual os pontos mais altos, como as montanhas e os edifícios de apartamentos, despontavam como ilhas. Não menos que 225 000 operários, de 6 700 indústrias – um contingente maior que o mobilizado por qualquer greve na história recente do Brasil – pararam de trabalhar, obrigados a dedicar-se em tempo integral ao seu próprio salvamento ou ao salvamento dos outros. No centro das cidades catarinenses, bancos perderam seus cadastros e cartórios tiveram seus contratos mergulhados em águas lamacentas. A progressão da tragédia podia ser percebida pelo diário de Vieira:

Dia 10: acordamos com o ruído dos helicópteros que cedo sobrevoavam a cidade. Aeronáutica, Exército, Marinha, alguns particulares. Eles armaram uma rede de assistência à população flagelada.

A efetiva entrada em ação das operações de socorro e salvamento das vítimas, capitaneadas pelos helicópteros que Vieira ouvia cruzar os céus de Blumenau, não iria apenas começar a trazer algum alívio e esperança à população. Também serviria para que fosse desvendado um lado ainda desconhecido da tragédia, o das populações rurais ilhadas em seus lugares de origem, refugiadas em algum ponto mais alto das proximidades – e até então ainda não contatadas. “Quando desço com alimentos e água, crianças e adultos me agarram nas pernas, pedindo pelo amor de Deus para sair de onde estão”, contaria então o piloto Jorge Machado, de 46 anos, que, com seu pequeno helicóptero, modelo Esquilo, cumpria missões das 6 horas da manhã até o pôr-do-sol. Ao ouvir o ronco dos helicópteros, grupos de pessoas reunidas nos lugares mais altos, junto a suas galinhas, porcos, cavalos e bois, agitavam desesperadamente panos coloridos tentando chamar a atenção dos pilotos. No asfalto ou nas pedras não inundadas, escreviam-se, com cal e em letras grandes, pedidos de comida, roupas, S.O.S. O piloto Machado até viu de cima, numa clareira, escrito: “Aqui, parto”.

Para dormir, essas pessoas reunidas ao relento, no cume de algum monte, com roupas encharcadas, não tinham outra alternativa, para se aquecer, senão se agarrar umas às outras. Houve cenas de desespero em cidades como Rio Negro e Mafra, na divisa entre Paraná e Santa Catarina, ou em Rio do Sul, no centro catarinense, no mesmo Vale do Itajaí onde se localiza a submersa Blumenau. Em Rio Negro e Mafra, onde as águas ocuparam 40% das zonas urbanas e destruíram bairros inteiros, casas de madeira, típicas da região, eram simplesmente arrancadas de seus pilares pela força das águas e arrastadas pela correnteza. Em Rio do Sul, cidade que permaneceu completamente isolada até a última quarta-feira, registraram-se saques a supermercados. O quadro geral de desolação, registrado no diário de Vieira, subia de tom:

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Uma espécie de capital do devastado país das enchentes, por seu porte e importância econômica, Blumenau não tinha apenas o drama humano a apresentar – mas também uma arrasadora coluna de déficits na contabilidade econômica. Pesos pesados da indústria têxtil nacional, como a Artex, a Sul Fabril, Mafisa e Kuehnrich, tiveram suas instalações inundadas e preciosos equipamentos danificados ou destruídos. A Kuehnrich, fabricante dos produtos Teka, teve destruído pelas águas todo o seu equipamento eletrônico, construído sob encomenda especial na Alemanha. Sua substituição, agora, da qual depende o emprego de 6 000 operários, fica na dependência da boa vontade das autoridades de importação, dos fabricantes alemães e dos dólares que possam ser encontrados no mercado para fechar a operação. Apesar de toda a devastação provocada pela maior tragédia de sua história, porém, não houve em Blumenau cenas de desespero como as registradas em outros locais de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul – e existe uma explicação para isso. Na verdade, a cidade já está acostumada às enchentes. Afinal, apenas cinco anos depois de sua fundação, em 18S0, pelo imigrante alemão Hermann Bruno Otto Blumenau, a cidade já sofria seu primeiro ataque do Rio Itajaí – e nessa ocasião a própria casa do pioneiro Blumenau foi destruída.

A freqüência com que as águas invadem a cidade fez até que nela se desenvolvesse um especial know-how antienchentes. Há nela engenheiros especializados, por exemplo, em construir casas em que já se deixa o andar térreo “para as cheias”, só se começando a fazer propriamente a divisão dos cômodos a partir da “cota dos 13 metros do rio”. “Qualquer habitante da cidade sabe de cor e salteado o nível do rio em que sua casa será atingida”, diz o prefeito de Blumenau, Dalto dos Reis. Desta vez, é verdade, a enchente foi mais forte do que qualquer uma das precedentes. A cota dos 13 metros, antes considerada o limite máximo a que o ltajaí poderia subir, foi estourada para 16, e mesmo as casas construídas pelos engenheiros e especialistas nos projetos anticheias foram invadidas.

De qualquer forma, a experiência serviu para que a população não entrasse em pânico nenhuma vez. Os habitantes de Blumenau, diante de emergências extremas como a distribuição de leite, pão e água em canoas que percorriam as ruas, reagiram com uma ordem e uma disciplina difícil de encontrar em outras cidades brasileiras submetidas às mesmas privações. “Não consegui entender”, dizia Edson Andrino, que se despiu de sua condição de deputado estadual do PMDB para, em traje de banho, durante toda a semana, distribuir alimentos em sua lancha. “Sabendo que o drama era geral, famílias com três crianças pediam apenas 1 litro de leite e a quantidade de pão exata ao número de pessoas existentes nas casas. Ninguém tentou armazenar ou tirar algum proveito da situação.” Um pouco desse clima de ordem no meio do cataclisma, junto com o registro de que a situação começava a melhorar, aparece no diário de Vieira:

Dia 14: as águas baixaram muito durante a noite e a situação melhorou bastante. Todo mundo aproveita para sair à rua, embora ainda haja um lodo de 40 centímetros de altura, e começa a limpar os estabelecimentos, os móveis todos empilhados na calçada. Procura-se lavar as paredes, os pisos, os forros, e jogam-se fora as mercadorias inutilizadas. As praças públicas estão irreconhecíveis, liquidadas.

Blumenau, na verdade, da mesma forma como tem know-how para enfrentar as enchentes, tem agilidade e vigor para sair delas – e era assim que, como Vieira registrou em seu diário, já a partir da última quinta-feira, e principalmente na sexta, com a primeira melhora mais sensível do tempo, a população começou a organizar-se em mutirões para reconstruir o que a águas barrentas do Itajaí devastaram. Sobravam, de qualquer forma, imensos desafios para os meses futuros. “Temos experiência e garra para enfrentar uma crise como essa, mas infelizmente para reparar todos os danos precisamos de dinheiro – e não temos dinheiro”, dizia no final da semana o prefeito Dalto dos Reis. No mesmo tom, o governador de Santa Catarina, Espiridião Amin, falava da “segunda fase” que se enfrentará agora para fazer face à catástrofe – “a fase de reconstrução” – e assim tocava num ponto que desde o início das enchentes atormentava os Estados atingidos.

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Com efeito, não será uma questão de poucos meses, nem de pouco dinheiro, a recolocação dos Estados do Sul do país na situação em que se encontravam antes das chuvas. No Rio Grande do Sul, onde as chuvas, até a sexta-feira, prosseguiam de forma devastadora, atingindo duramente cidades como Uruguaiana, São Borja e ltaqui, o governador Jair Soares calculava em não menos de sessenta dias, por exemplo, o prazo necessário apenas para colocar de novo em funcionamento a rede ferroviária do Estado, totalmente paralisada pela invasão das águas ou a destruição de trilhos. “Só nestes dias, com a paralisação dos trens, deixamos de receber 10 000 toneladas de álcool, 10 000 de cimento, 15 000 de milho, essencial para a alimentação do gado, e 2 000 de ferro gusa”, exemplificava Soares. Naturalmente, a situação ainda se agravará mais com o prolongamento da paralisação de um meio de transporte responsável pela chegada de 120 000 toneladas de mercadorias por mês, no Estado, e a saída de outras 60 000 toneladas.

É preciso acrescentar aos estragos nas ferrovias aqueles registrados na malha rodoviária – não só do Rio Grande do Sul como do Paraná e Santa Catarina. Um cálculo preciso ainda era impossível na semana passada, mas certamente haverá algumas centenas de quilômetros de estradas a reparar. Sabendo-se que cada quilômetro de estrada asfaltada não custa menos que 100 milhões de cruzeiros, começa-se a ter uma pálida idéia dos recursos necessários para a reconstrução dos Estados atingidos. Para ficar apenas na área pública – sem referência aos prejuízos das empresas ou dos particulares -, há ainda uma vasta devastação nos sistemas de eletrificação e de telefonia da região. “É de um Plano Marshall que necessitamos”, dizia, em Santa Catarina o empresário César Bastos Gomes, dono do maior complexo de açúcar e álcool no Estado, que contabilizava, pessoalmente, uma perda de 2,5 bilhões de cruzeiros em cana-de-açúcar debaixo da água, e 3 000 empregados com suas casas submersas.

Muito embora ainda se previsse um longo e penoso caminho para os Estados do Sul, em sua luta contra os efeitos da catástrofe, já se podiam extrair da crise, no final da semana passada, algumas lições. Uma delas era de como se toma irrelevante, num momento desses, a figura do governo, ou pelo menos o governo das grandes decisões e dos grandes planejamentos – reduzido então a um grau de distância e abstração maior ainda do que em termos normais. Nesse sentido, passou como algo absolutamente secundário o desencontro entre os Ministérios do Interior e do Planejamento, envolvidos num episódio em que primeiro o ministro do Interior, Mário Andreazza, anunciou uma verba de 3 bilhões de cruzeiros destinada a ajudar os flagelados, e em seguida teve de diminuí-la para 2 bilhões, por imposição do ministro do Planejamento, Delfim Netto. O embate foi tão incompreensível, pela óbvia ausência de qualquer correlação entre estas cifras e a dimensão das necessidades que imaginavam atender, que a ação do grande governo tomou-se irreal. Em contrapartida, essa é a hora em que toma corpo, aos olhos da população, o governo operativo, aquele da ação prática e imediata – representado, por exemplo, pelos pilotos da Aeronáutica que transportaram os helicópteros nas operações de salvamento, ou pelos corpos de bombeiros, ou ainda pelos funcionários das prefeituras encarregados da distribuição de alimentos.

Nessa mesma faixa de operação alheia ao grande governo e às grandes decisões desenvolveu-se, igualmente, o maciço movimento de solidariedade às vítimas da enchente. Não foram necessários líderes, nem a convocação de nenhuma instância superior, para que a corrente se alastrasse. Houve, no máximo, a servir de arranque para a operação, a iniciativa de empresas com maior poder de comunicação, como as emissoras de TV, ou dotadas de maiores condições para fazer frente às necessidades da tragédia, como as companhias aéreas. Na campanha envolveram-se desde estrelas nacionais como o jogador Zico – autor da idéia de realizar um jogo em benefício dos flagelados, nesta quinta-feira, para o qual foi convidado, e prontamente aceitou, o astro-mor Pelé – até marginalizados como os presos do Rio e de São Paulo, que se prontificaram a ficar sem uma refeição para que os gêneros correspondentes fossem enviados aos Estados do Sul.

Houve doações importantes como os vinte barcos oferecidos pela empresa Mesbla. E tudo isso serviu para ilustrar que, mesmo em meio a uma tragédia como a da semana passada, não é vão o ânimo demonstrado por alguém como dona Olga Pfiffer, de 60 anos, moradora de um bairro pobre de Blumenau. Na sexta-feira, dona Olga depositou terra nova e semente num vaso cujas flores haviam morrido com a enchente. “Meu filho”, explicou ela, “isso passa, e temos de aproveitar a primavera que vem por aí.” A enchente, de fato, passará. Santa Catarina e o Sul do Brasil como um todo, porém, conviverão com seus efeitos por um período de tempo cuja duração é impossível estimar.

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A influência de “El Niño”

As chuvas no Brasil podem ter ligação com as águas aquecidas do Oceano Pacífico

Na sua conspiração sinistra contra os Estados do Sul do país, as nuvens despejaram um volume tal de água na região a partir do dia 6 último que, em Santa Catarina, epicentro da catástrofe, choveu seis vezes mais que a média normal de julho. Como a Região Sul é cortada por uma enorme teia de rios, a conseqüência só poderia ser uma: inundações por toda parte. Com o desmatamento processado ao longo dos últimos trinta anos no Paraná e em Santa Catarina, chegou-se a uma situação em que quase toda a água que despenca das nuvens rola torrencialmente para o leito dos rios, pois não existem árvores suficientes para realizar a função normalmente desempenhada pela cobertura vegetal – a de absorver boa parte da água e barrar seu avanço para os terrenos mais baixos.

Mas por que razão estaria chovendo tanto no Sul do país? Segundo os meteorologistas, a explicação deve ser procurada muito além dos céus zangados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As chuvas se deveriam, na verdade, a uma conjunção de vários fatores que, de algum tempo para cá, têm provocado alterações profundas no clima de todo o planeta. Um deles – e muito importante – estaria a milhares de quilômetros do Sul do Brasil, estendendo-se por uma vasta porção do Oceano Pacífico. Trata-se de “El Niño”, nome com que se balizou o aquecimento periódico de uma larga faixa do mar, a partir das costas da América do Sul e Central.

VERÃO NO INVERNO – Não há uma explicação segura para o fenômeno, mas sabe-se o que provoca. Quando a temperatura das águas aumenta nessa área – neste momento, é de 29 graus, 5 a mais que o normal -, intensifica-se a evaporação, aquece-se por isso a atmosfera e, nesse processo, fortes correntes de ar são geradas sobre “El Niño”. Quentes, úmidos, verdadeiros gatilhos da chuva, esses “jatos de ar” alcançaram o Sul do Brasil nos últimos dias e passaram a atuar como uma barreira às frentes frias que sobem do Pólo Sul no inverno. O encontro das duas massas – a quente que vem do Pacífico e a fria que se origina no Pólo – produziu então as chuvas pesadas e, elas, as enchentes.

Enquanto isso, São Paulo, livre das frentes frias do inverno, retidas à altura do Paraná, experimentava, no começo da semana passada, um verão extemporâneo, com até 29 graus de temperatura, um calor que não se registrava na cidade em julho desde 1931. Os ventos de “En Niño” também pioram a seca nordestina – igualmente, por barrarem a subida das frentes frias que fazem chover – e a eles os cientistas atribuem ainda fenômenos que espocam em cantos diferentes do planeta. No ano passado, ele teria, por exemplo, levado seca à Austrália e à lndonésia e, no último inverno, neve a regiões desérticas dos Estados Unidos, como Utah e Nevada.

Dia 13: não há luz, não há água, não há gás de cozinha, mas a população se vira como pode. Uns auxiliam os outros. Consegui chegar até a Prefeitura. Há ali uma situação de penúria, pessoas recolhendo gêneros em extensas filas enquanto outras dormem ali mesmo, acampadas – mas ouvi pouca lamentação. Uma rádio da cidade voltou ao ar e possibilita recados e localização de familiares. O abastecimento da população por helicópteros parece estar funcionando bem. Aqui em casa, onde somos dois casais, duas crianças e mais vizinhos, nesses dias todos, temos feito racionamento de água, leite e alimentação. Cozinhamos para várias refeições, para economizar gás. Higiene pessoal, a esta altura, é irrelevante.

Dia 11: procuramos reforçar nossas reservas de mantimentos. Neste ponto começam a surgir comentários e boatos de toda ordem. Mortos e desaparecidos, os dramas mais variados, saques e roubos. Não há água potável. Já estamos utilizando água de uma cisterna improvisada em uma calha pluvial. O racionamento dos alimentos é controlado pela polícia nos supermercados. Filas para adquirir o que resta. Leite, uma lata por família. À noite, outra barreira que cai, desta vez na casa de nosso amigo Chico, que também tem de buscar abrigo com um vizinho.

Dia 12: preocupado com o que possa estar acontecendo com minha casa, resolvo dar uma sortida para ver se chego até meu carro. Subo morros, desço morros, percorro alguns trechos de barco. A solidariedade é enorme, todos procuram me ajudar. Consigo chegar a minha casa, e vejo que o estrago não foi muito. Recolho o que me é possível carregar e começo o percurso de volta, mais difícil. Subo uma serra a pé. Depois enfrento um trecho com lodo de até 50 centímetros de altura. Enfim, já à noite, quase sou atacado por um grupo de moradores do bairro de Ponta Aguda, que procuravam identificar os vândalos que vinham assaltando e depredando os veículos abandonados nas ruas. As águas voltaram a subir…

Dia 9: a cidade está um caos. Não há energia. As rádios, que promoviam um importante serviço de comunicação e informação, silenciaram. Ninguém sabe de nada. Começa a procura desesperada de mantimentos. Nem adivinhamos o drama dos bairros mais baixos e afastados, como Fortaleza, Itopava e outros. Daqui de cima, vemos carros, caminhões, ônibus, pavimentos inteiros de casas e edifícios, árvores, tudo desaparecendo sob as águas. O barulho que ouvimos à noite, agora ficamos sabendo, foi provocado peja queda de uma barreira no morro aqui ao lado. A casa do vizinho está ameaçada de desabamento, por causa disso, e o Ernani foi buscar a família para abrigá-la aqui conosco. A cidade está totalmente às escuras. Silêncio absoluto.

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