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Música sem preconceito: de Beethoven a Pablo do arrocha, de Elis Regina a Slayer
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A Amy Winehouse original

Sharon Jones, morta no dia 18 de novembro, foi a matriz para o sucesso da cantora inglesa. Mas sua trajetória brilhante vai muito além disso

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 21h17 - Publicado em 21 nov 2016, 17h19

 

Sharon

 

Na minha primeira visita à Nova Orleans, em abril de 2010, Edgard Radesca, Herbert Lucas e Inez Medaglia (trio responsável pelo Bourbon Street, uma das casas de shows mais aconchegantes de São Paulo) me convidaram para uma noitada de soul e rhythm’n’blues num clube chamado Howlin’ Wolf. A atração principal era o Dumpstaphunk, grupo liderado pelo cantor e tecladista Ivan Neville – sobrenome de um dos maiores clãs musicais do sul dos Estados Unidos –, mas a minha prioridade era a performance de Sharon Jones & the Dap-Kings. Eu tinha me interessado pela cantora há cerca de dois anos, quando a imprensa musical começou a noticiar sobre um novo revival da soul music. Sharon era um dos nomes citados ao lado de Nicole Willis e Eli (Paperboy) Reed, entre outros adeptos da sonoridade dos anos 60. O que assisti, no entanto, foi muito mais do que uma cantora tentando emular o estilo de Stax e Motown, principais gravadoras daquele período. Sharon não ligou para a péssima qualidade do som do Howlin’ Wolf e do alto teor etílico da plateia. Em pouco mais de uma hora, fez um apanhado de seus quatro discos (ela havia acabado de lançar I Learned the Hard Way, meu predileto de sua discografia); a certa altura, tirou os sapatos de salto alto e desfilou uma coleção de passos como mashed potato, bugalu, twist. Era uma espécie de aula de música negra através da dança – e um dos momentos mais celebrados e esperados de seus shows.

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Chamou umas garotas da plateia para dançar com ela. Quando uma das moçoilas tentou fazer graça, Sharon a pegou pelo braço com força e mostrou por que passou um bom tempo atuando como segurança do presídio feminino da Ilha Rikers, em Nova York. “Há sempre uma engraçadinha que tenta descobrir se eu sou durona mesmo”, disse, numa entrevista que ela me concedeu em abril de 2011. Mostrou uma força, um poder de entrega que há muito eu não via numa intérprete desse gênero. Ao final do show, maravilhados, fomos dar um abraço em Sharon. Entre baforadas num cigarro de artista e goles generosos num copo de whisky, ela apenas disse: “Queria muito conversar com vocês, mas estou extremamente cansada.” Colocou então uma jaqueta colorida sobre os ombros, usou um boné para cobrir os dreadlocks e foi abrindo espaço em meio à multidão para entrar no ônibus dos Dap-Kings.

A partir daquele momento, eu passei a adorar aquela mulher com todas as minhas forças – sim, eu sei que soa piegas, mas às vezes a vida é brega, mesmo. Não perdi uma oportunidade de assistir a um concerto de Sharon Jones & the Dap-Kings – sendo que a abertura do show de Prince, em janeiro de 2011 no Madison Square Garden, foi puro golpe de sorte (ela não havia sido anunciada pela produção do espetáculo). Prince gostou tanto do que viu e ouviu que chegou a dar canjas em shows da trupe – como essa em Paris.

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Eu a assisti em junho do mesmo ano, num festival de jazz de São Paulo; em março de 2013, durante o South By Southwest, um dos maiores eventos dedicados à música e ao cinema alternativo, que acontece na cidade americana de Austin e pude conferir dois concertos mágicos dela no Bourbon Street, em São Paulo, e na Praça da Matriz, em Paraty, no mês de maio de 2015. No Bourbon, ela passou uma hora e meia dando autógrafos, posando para fotografias (eu tenho a minha) e distribuindo carinho para a plateia. Em Paraty, meu filho Noel ficou tão enlouquecido que ao final da apresentação exclamou: “Tenho de dar um beijo e um abraço nessa mulher”. Fiz duas entrevistas com Sharon. Na primeira, em abril de 2011, conversamos por cerca de quarenta minutos. A assessora então me enviou um email dizendo que Sharon tinha adorado a entrevista. “He chilled”, respondeu a cantora – algo como “ele foi bacana”. Depois em maio do mesmo ano, ela deu uma mini-coletiva para um grupo de jornalistas ao lado de Gabriel Roth (baixista, mentor dos Dap-Kings e da Daptone Records, gravadora que lançou os discos do vocalista, do cantor Charles Bradley e de grupos como Budos Band e Menaham Street Band), e com o guitarrista Binky. Em todas elas, Sharon Jones deu mostras da alegria de ter tido a chance de mostrar seu talento e o poder de sua performance – mesmo quando já havia perdido a esperança de que isso fosse acontecer.

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Sharon La Fey Jones nasceu no dia 04 de maio de 1956 em Augusta, cidade do estado americano da Geórgia. Nos anos 60, sua família mudou-se para o bairro nova-iorquino do Brooklyn e Sharon passou a se interessar por música gospel, soul music e funk. Ela bem que tentou se lançar como cantora, mas seu fracasso tinha razões, digamos, estéticas. Sharon era considerada baixa demais, gordinha demais. Quando chegou à idade adulta, os executivos das gravadoras acharam que ela era “velha demais”. A cantora foi então trabalhar como segurança de presídio feminino e fazia participações ocasionais como backing vocal em gravações de artistas de música negra. Um desses bicos chamou a atenção de Gabriel Roth, baixista, e que há tempos buscava uma voz para um projeto de soul music. Dap Dippin’, primeiro disco de Sharon Jones & the Dap-Kings e da Daptone Records, trazia um estilo sonoro inspirado no soul dos anos 60, em especial o da crueza de uma Stax Records – no naipe de metais e na voz rascante de Sharon. O estilo da Daptone Records despertou a atenção do DJ e produtor Mark Ronson, que então trabalhava com a cantora Amy Winehouse. Ele não apenas assimilou essa reciclagem moderninha como também recrutou o baixo de Gabriel Roth e a guitarra de Binky. O resultado foi Back to Black, álbum que transformou Amy em superstar e abriu espaço para novas incursões pela soul music de cantoras como Duffy e Adele. Não seria honesto, contudo, dizer que Amy Winehouse é apenas uma versão mais adocicada de Sharon Jones (ainda que há mudanças visíveis de estilo de Frank, sua estreia em disco, para Back to Black). Sharon nunca reclamou de ter tido a banda tungada pelo produtor inglês e continuou trabalhando. Ela fez até uma ponta como dona de um inferninho em O Grande Desafio, produção de 2007 estrelada por Denzel Washington. A carreira musical foi muito bem, obrigado: Sharon participou de um disco do cantor canadense Michael Bublé e abriu shows para Lou Reed, Prince e o grupo Phish. Sharon tinha um vocal rascante e cantava com a alma. Não por acaso, suas melhores composições são aquelas nas quais narra histórias de dor e separação. A cantora tinha tanta alma que conseguiu um feito inédito: embora as composições fossem de autoria de Gabriel Roth, ela exigiu que fosse creditada como co-autora. Segundo Sharon, as canções só faziam sentido depois que ela colocava a dose exata de sentimento nelas. Acho justo. Com o dinheiro que arrecadou com a música, Sharon comprou uma casa para a mãe em Augusta, sua terra natal. “Eu quis tirá-la da vida no gueto”, justificou.

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O primeiro grande baque na carreira se deu em 2013, quando recebeu o diagnóstico de câncer no pâncreas. Ela abandonou a turnê de divulgação do álbum Give the People What They Want e se submeteu a sessões de quimioterapia. Um ano depois estava de volta aos palcos, sem cabelos, mas com energia intacta. Numa dessas apresentações, baixou no Brasil em 2015 para apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraty. Uma pessoa da produção do festival revelou que Sharon fazia questão de viajar de ônibus com a banda e não apresentava nenhum tipo de afetação. Poucos meses depois de sua turnê brasileira, ela recebeu a notícia de que o câncer havia voltado. Sharon cancelou todos seus compromissos para priorizar seu tratamento médico. Julho marcou a estreia nos cinemas de Miss Sharon Jones!, de Barbara Kopple, que documentou a luta dela contra o câncer. A trilha sonora traz a inédita I’m Still Here – que escutada hoje soa como um testamento. No dia 08 de novembro, enquanto Donald Trump era eleito presidente dos Estados Unidos, Sharon teve um derrame. “Ela colocou a culpa em Trump”, disse Roth para o Los Angeles Times. Um outro derrame, ocorrido no dia seguinte, a impossibilitou de falar. Mas não de se comunicar através da música. Sharon entoou canções religiosas – por exemplo, Amazing Grace – acompanhada pela guitarra de Binky. Na hora de sua morte estava acompanhada pelos Dap-Kings e por seus familiares. Sharon Jones pode não ter sido a mais original das cantoras, mas sem dúvida deixou sua marca. Como bem pontuou Sasha Frere-Jones, se Hamlet, de William Shakespeare foi remontado e recriado muitas vezes, por que um gênero como a soul music não pode ser revivido de tempos em tempos? Eu digo o mesmo, emocionado pelas performances em Nova Orleans, Nova York, Austin, São Paulo e Paraty. Vai na paz, Miss Jones.

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