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Por Sérgio Praça
A partir do que há de mais novo na Ciência Política, este blog do professor e pesquisador da FGV-RJ analisa as principais notícias da política brasileira. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Saída, voz e deslealdade: a crise policial no Espírito Santo

Nenhuma estratégia é boa para os policiais militares insatisfeitos em qualquer estado

Por Sérgio Praça Atualizado em 10 fev 2017, 21h20 - Publicado em 10 fev 2017, 21h01

A greve disfarçada da Polícia Militar no Espírito Santo acabou. Segundo a legislação brasileira, policiais não têm direito a greve, pois prestam um serviço essencial à população. Até agora, contam-se mais de 100 mortes violentas decorrentes da falta de polícia nas ruas capixabas. (O Exército foi enviado pelo governo federal para estancar o número.) Difícil pensar em algo mais essencial do que o direito à vida. Por mais que as reivindicações dos policiais sejam razoáveis, é inegável que sua ausência nas ruas teve os piores efeitos imagináveis. São um tipo especial de burocrata: aquele cujo serviço garante, de modo imediato e claríssimo, um direito básico do cidadão.

Como é possível entender o comportamento desses policiais? Pensar de modo abstrato é um bom início. Farei isso considerando dois autores brilhantes: o cientista político John Kingdon e o economista Albert Hirschman.

Costumamos pensar no processo político como linear. Um parlamentar (ou mesmo o presidente) propõe um projeto de lei. Este é discutido, alterado e votado no plenário pelos congressistas. O presidente veta ou sanciona. Atores políticos insatisfeitos com a aprovação da lei recorrem ao Judiciário, que pode bancar a decisão inicial do sistema político ou derrubá-la. E aí o processo começa novamente com outra política pública em discussão.

Não escrevi nada errado acima, mas ignorei uma questão imensa: de qual assunto trata o projeto de lei? Saúde? Segurança Pública? Meio Ambiente? Obviamente é impossível definir isto a priori. Então temos que considerar, nas palavras de Frank Baumgartner e Bryan Jones, a “política da atenção”. Certos temas estarão em discussão na sociedade em um dado momento, e outros não. Quem define isso é a complicada mistura de opinião pública, lobby de grupos de interesse, lobby de burocratas, interesses parlamentares e interesses presidenciais. Uma zona. Dizer que “a grande mídia define” é ingenuidade ou má-fé. (Quem dera ter esse poder! Discutam agora a contratação de Lucas Pratto, ignóbeis cidadãos!)

Até aí, nada de muito novo. John Kingdon apresenta, em seu clássico “Agendas, Alternatives, and Public Policies”, um modelo analítico que permite avançar. Kingdon inverte o raciocínio intuitivo segundo o qual há “problemas em busca de soluções” pelo sistema político. Para ele, existem, na verdade, “soluções em busca de problemas”. Em outras palavras: grupos de interesse, burocratas, parlamentares, cidadãos e presidente têm, prontas, as soluções X, Y e Z para os problemas que lhes incomodam. A questão é como irão persuadir os demais atores políticos de que aquele problema é o primeiro na fila para ser solucionado. O que dá a certo problema um lugar privilegiado na discussão pública?

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Para Kingdon, um tema se torna um problema a resolver quando há conjunção entre três fluxos: o de problemas sociais (problem stream), o de soluções políticas (policy stream) e o político (political stream). Problem stream é o fluxo que explica de que forma certas questões são reconhecidas como problemas e por que determinados problemas passam a ocupar a agenda governamental. O policy stream é definido por Kingdon como o conjunto de alternativas e soluções disponíveis para os problemas. São as soluções em busca de problemas. Por sua vez, o political stream é o conjunto de atores e instituições políticas que seguem dinâmicas e regras independentes das ideias em circulação.

Kingdon prevê que mudanças políticas ocorrerão quando houver uma junção de fluxos (a coupling of streams), que tendem a ocorrer em momentos de crise e incentivar a adoção de soluções.

Sob essa ótica, o que os policiais capixabas tentaram fazer foi propor uma solução (aumento salarial, melhores condições de trabalho etc) para o governo. Para serem levados mais a sério, precisaram criar um problema de alcance nacional. Conseguiram.  O problema da segurança pública no Espírito Santo está na grande mídia, nos gabinetes parlamentares, nas redes sociais e nos grupos de whatsapp. Mas a solução proposta pelos policiais militares não parece ter prosperado. Forçaram a mão.

Albert Hirschman traz outra contribuição interessante para analisar a insatisfação dos policiais militares. Seu modelo, proposto em 1970 , foi atualizado no artigo “An Exit, Voice, and Loyalty Model of Politics” (William R. Clark, Matt Golder e Sona Golder, aceito para publicação no British Journal of Political Science). De acordo com esses autores, um cidadão (ou burocrata) tem três respostas possíveis a uma mudança política que piora sua situação: saída, voz e lealdade.

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“Sair” significa aceitar a mudança negativa, mas alterar seu comportamento para se adaptar à nova situação. O tipo mais drástico de saída é imigrar – ou mudar de residência para votar em outro distrito eleitoral, algo que Charles Tiebout chamou de “votar com o pé”. Mas “sair” significa qualquer forma que o cidadão (ou burocrata) tem para negar lealdade ao governo. Pode ser votar contra o governante atual (ou se abstendo), tirar o filho de uma escola pública e colocá-lo em uma escola particular etc.

Usar sua “voz” significa que o cidadão (ou burocrata) não aceita a mudança negativa e tenta persuadir o governo a voltar ao estado inicial das coisas. Pode ser, por exemplo, que o pai insatisfeito com a qualidade da escola pública em que o filho estuda decida falar com a diretora, organizar um protesto junto com outros pais, pedir explicações dos burocratas e políticos etc.

E “lealdade” significa aceitar a mudança negativa e não mudar o comportamento. É o que o governo carioca espera, por exemplo, de seus professores e policiais militares. Aceitem o não-pagamento de salários e continuem trabalhando normalmente. No caso dos policiais militares no Espírito Santo, a estratégia foi usar “voz” através de suas famílias, que, na justificativa policial, impedem os burocratas de trabalhar por estarem angustiadas com os salários dos cônjuges. Tentam, assim, persuadir o governo a aumentar seus salários depois de vários anos sem reajuste. A resposta do governo, apoiada pela opinião pública, foi punir os policiais grevistas.

Os burocratas insatisfeitos – e hoje são muitos – terão que optar por “saída” (e procurar emprego no mercado privado), “voz” (negociar aumentos salariais com governos quebrados, e tentar persuadir a opinião pública com uma estratégia que causa mortes de cidadãos inocentes) e “lealdade” (aceitar quietos a péssima situação). Que Albert Hirschman ressuscite e lhes dê outra solução.

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