O reinado das empreiteiras
VEJA de 1993 expôs em profundidade o esquema armado pelos barões da construção, em conluio com políticos e burocratas, para mandar no Estado
Emílio Odebrecht, o presidente do conselho administrativo da empreiteira que leva o nome da família, admitiu esta semana que o caixa dois foi o “modelo reinante” em campanhas eleitorais no país. “Existia isso [caixa dois], e sempre foi um modelo reinante no país, que veio até recentemente. Houve impedimento a partir de 2014, 2015. Mas até então sempre existiu, desde a época de meu pai, a minha época, e também de Marcelo, todos os que foram executivos do grupo. Eu mesmo, na minha colocação, tive dois responsáveis”, disse, em depoimento ao juiz Sergio Moro, encarregado dos processos da Lava Jato na primeira instância.
VEJA de 3 de novembro de 1993 tratou em profundidade do “modelo reinante” que permitiu que as empreiteiras, como dizia a chamada de capa, mandassem no Estado. À época, pesavam sobre elas as suspeitas levantadas no escândalo do Orçamento, alvo de CPI. A denúncia partira do economista José Carlos Alves dos Santos, integrante do esquema, na função de chefe da assessoria técnica da Comissão do Orçamento do Congresso. Ele apontara naquele ano a Odebrecht, a Andrade Gutierrez, a OAS e a Queiroz Galvão como integrantes do grupo que comprava o apoio de parlamentares e burocratas para ganhar polpudos contratos com o poder público. Em recente entrevista ao site de VEJA, Santos contou que tinha em casa 1 milhão de dólares que recebera como propina – e entregou a dinheirama à polícia.
Em 1993, contudo, as empreiteiras ainda se achavam blindadas. “A CPI será injusta se não der pelo menos dois passos pelo interior do escândalo. Falta incluir alguns ministros de Estado na investigação. Os deputados podem modelar emendas ao Orçamento segundo sua vontade, mas o dinheiro só é liberado fisicamente pelo ministro”, explicava a reportagem de VEJA. “O segundo passo diz respeito aos empreiteiros. São eles os corruptores e, como não ocorreu durante a CPI de PC e Collor, precisam ser investigados e punidos. Se conseguir apanhar essas três pontas, a CPI terá a chance de promover uma varredura em regra, dando o primeiro e decisivo passo para romper o conluio entre empreiteiras e Estado, responsável por obras inúteis e desperdício de dinheiro público.”
Como se sabe, esse primeiro passo não foi dado à época. A CPI pediu a cassação de 17 deputados e um senador, mas os barões da construção escaparam incólumes. Emílio Odebrecht, à época, dizia que o problema era o Estado, não sua empreiteira – então acusada de corromper um ministro por 30 mil dólares em troca de uma obra no Acre. “A mãe de todos esses problemas é a onipotência e a onipresença do Estado. Todos eles seriam naturalmente resolvidos com sua substituição pela iniciativa privada no setor produtivo”, garantia.
A reportagem de capa de VEJA descreveu em 1993 o que chamou de “Parque empreitássico”: as manobras das empreiteiras para assegurar contratos e multiplicar os preços. Seus serviços favoritos (como a concretagem, que usa mão-de-obra barata e muita matéria-prima). Os meios de agradar aos políticos (com dinheiro para campanha, empréstimo de aviões, presentes e rega-bofes). Os truques para dragar os recursos públicos (como os aditamentos e serviços fantasmas). “Os empreiteiros gostam de pedras no caminho – literalmente. Quando encontram uma, podem inflar o preço da obra contratada e não há maneira de contestá-los”, observava a reportagem.
Ouvido por VEJA, o médico Adib Jatene, que no ano anterior havia sido ministro da Saúde (e voltaria a sê-lo, dois anos depois), resumia o esquema da seguinte maneira: “Os empreiteiros têm acesso ao poder e convencem o administrador público de seus projetos. Eles acabam mandando no orçamento público”. Já era notório, como se vê, o “modelo reinante” das empreiteiras. E, no entanto, ainda se passariam mais de vinte anos até que os tubarões viessem a responder por décadas de fraudes e corrupção, que transformaram o país num canteiro de obras caras, inúteis – ou as duas coisas.