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Morre Nelson Mandela; agora o CNA precisa deixar nascer a África do Sul

Nelson Mandela morreu. E uma África do Sul ainda está por nascer. Não que ele não tenha feito um trabalho gigantesco. Todas as homenagens são justas. Pertencia a um aparelho chamado Congresso Nacional Africano, o partido que centralizou a luta contra a delinquência moral do apartheid e que, no poder, se transformou numa formidável máquina de […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 04h51 - Publicado em 6 dez 2013, 02h21

Nelson Mandela

Nelson Mandela morreu. E uma África do Sul ainda está por nascer. Não que ele não tenha feito um trabalho gigantesco. Todas as homenagens são justas. Pertencia a um aparelho chamado Congresso Nacional Africano, o partido que centralizou a luta contra a delinquência moral do apartheid e que, no poder, se transformou numa formidável máquina de assalto ao estado. A questão se torna particularmente complicada porque o partido traz consigo a densidade moral da histórica luta contra o regime racista, de que ele se tornou a expressão máxima.

A biografia de Mandela está aí, em toda parte. Não vou repisar o que todo mundo já leu, já sabe ou pode acessar num clique. Vamos lá. Qual foi o grande acerto de Nelson Mandela? Ter, a partir de determinado momento, percebido que a luta pacífica — sem jamais ter desmobilizado seus partidários — era o melhor caminho. Ele fez, sim, parte de um grupo que se dedicava a ações violentas e a sabotagens — e por isso foi preso e condenado à prisão perpétua.

O CNA tinha o seu braço armado, o Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), também conhecido como MK. Oficialmente ao menos, até a libertação de Mandela, o MK jamais renunciou à luta armada, mas o líder, mesmo na cadeia, percebeu que aquela era a pior escolha. A mística, no entanto, continuou. Abaixo há um vídeo de 2006, sete anos depois de ele ter deixado a Presidência, em que ainda canta o hino do MK. A letra fala por si: eles dizem se orgulhar de matar os brancos.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=fcOXqFQw2hc%5D

Era só memória de um tempo apenas. Na década de 80, o concerto das nações não podia mais admitir um regime oficialmente racista. Da cadeia, contrariando as alas mais radicais do CNA, o ex-guerrilheiro passou a negociar com o governo a transição pacífica. Libertado em fevereiro de 1990, elege-se presidente em 1994, cumpre o mandato até 1999 e deixa o poder, recusando a reeleição, o que teria conseguido sem esforço.

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No governo, em vez de promover a revanche contra os brancos, Mandela investiu no entendimento. Sabia que a eventual perseguição à minoria poderia representar o caos econômico para o país. Preferiu investir na paz, não na guerra. Criou a Comissão da Verdade e da Reconciliação para que se contasse a história do período, não para perseguir os antigos poderosos. Crimes cometidos por pessoas ligadas ao próprio CNA também foram tornados públicos, como os cometidos por Winnie Mandela, sua ex-mulher, depois tornada inimiga política.

O Mandela da paz, assim, se tornou uma figura política realmente gigantesca. A África do Sul poderia ter involuído, num primeiro momento, para uma guerra contra os brancos e, depois, para uma guerra entre os próprios negros, separados por etnias e ideologias. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Moçambique e, especialmente, Angola. Mandela percebeu que a luta na África do Sul tinha características diferentes de uma guerra contra um colonialismo decadente, excrescente e anacrônico. Era outra coisa. Não havia um país estrangeiro fazendo escolhas em lugar dos sul-africanos. Certamente passou poucas e boas na prisão, mas o fato é que, ao ser retirado da rota das várias derivações do marxismo armado que se espalharam pela África — o movimento que levou, por exemplo, Che Guevara ao Congo —, teve a oportunidade de sonhar outro sonho, em parte realizado.

Além do símbolo
A África do Sul baniu, evidentemente, todas as leis discriminatórias. Segue sendo o país mais rico e desenvolvido do continente e o único que aderiu, no que concerne às instituições, a um regime realmente democrático. Se alguém da minoria branca vencer a eleição vai governar o país — assim como Obama, pertencente a uma minoria de 13% nos EUA, governa os EUA.

Ocorre que não há chance de um branco vencer a disputa no país. É compreensível. O apartheid ainda está vivo na memória. O problema é outro: é impossível que um candidato desvinculado do CNA vença a eleição. O partido, que nunca foi muito ortodoxo em matéria de moralidade, tornou-se uma máquina gigantesca, que tem o pleno domínio de todas as instituições do estado. É impossível fazer negócio no país sem, como direi?, pagar um tributo extra a alguma autoridade do CNA.

No ranking dos países considerados mais corruptos — ou em que há a percepção de corrupção —, elaborado pela Transparência Internacional, a África do Sul está junto com o Brasil: em 72º lugar. Numa escala de zero (totalmente corrupto) a 100 (livre da corrupção), os dois países obtiveram a mesma nota: 42.

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Quando um partido se torna de tal sorte hegemônico — e o apartheid é que acabou sendo o grande estímulo à hegemonia exercida pelo CNA —, as forças políticas já não lutam para convencer a sociedade , mas para controlar esse aparelho. É o que PT sonha realizar no Brasil — em parte, já realiza. Por isso investe na fábula ridícula do “nós” contra “eles”. O petismo pretende ser, assim, o nosso CNA, e seus “negros” seria a “maioria discriminada”…

O apartheid político e racial é uma realidade superada. Acabou. Os brancos que eventualmente sonham com o status anterior não têm voz relevante. A questão agora é saber como a sociedade sul-africana vai controlar a máquina corrupta do CNA. Mandela não teve tempo de se ocupar no assunto na Presidência. Ao encerrar o seu mandato, permaneceu como um símbolo, uma referência, mas sem força para pôr o partido nos trilhos. A tensão social no país, que também é notavelmente violento, é gigantesca. Em agosto do ano passado, um confronto entre mineiros em greve, todos negros, e policiais, todos negros, fez 44 mortos. A violência urbana é proverbial pela crueldade dos crimes cometidos.

Por incrível que pareça, com o fim do apartheid, aumentou a desigualdade social no país — abrindo-se também um valo entre negros e negros —, e caiu a expectativa de vida em razão da violência brutal e da AIDS. O país atentou muito tarde para o risco da doença. O atual presidente, Jacob Zuma, que tem três mulheres e confessou ter um filho com uma amante, chegou a admitir que manteve relações sem proteção com uma mulher que sabia contaminada. Em seguida, afirmou, tomou um banho. Ele não acreditava, então, que o vírus fosse o responsável pela doença e sugeriu que era coisa só de homossexuais. A África do Sul entrou muito tarde no combate à Aids e a doença virou um flagelo no país. 

O grande desafio da África do Sul, hoje e nas próximas décadas, será se livrar do poder acachapante do CNA; será, em suma, criar forças políticas as mais distintas, que possam garantir a alternância de poder — não a alternância entre negros e brancos, mas aquela que existe entre os que divergem. Ou negros não divergem de negros?

Essa poderá ser uma luta mais longa do que a travada contra o apartheid. 

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