A “direita” só saiu do armário para dar vexame
Se houvesse coerência nos autodenominados movimentos de direita, a primeira coisa que fariam é defender a liberdade de expressão
— A família tradicional corre um sério risco de desintegração.
Quem diz isso são os próprios conservadores, hoje identificados com movimentos que levam as palavras Direita e Liberdade em suas bandeiras. São grupos que, nos últimos tempos, têm exercido uma militância que considera legítimo o fechamento de museus e a queima de bonecas em via pública, como aconteceu ontem, em São Paulo, antes da palestra da filósofa americana Judith Butler.
Se é verdade que o modelo tradicional de família corre perigo, deve haver um culpado para isso. Nas redes sociais, os manifestantes apontam a chamada Ideologia de Gênero como a síntese de uma maldade que quer confundir a cabeça das nossas criancinhas e instalar uma espécie de paraíso gay no Ocidente. Estão equivocados. O surgimento de novos modelos familiares possui origens muito mais remotas.
Quem dá uma boa explicação para o fenômeno é o filósofo Gilles Lipovetsky, nome neutro num debate que, de um lado e de outro, pressupõe a necessária politização das sexualidades. Segundo ele, vivemos numa época em que a onipresença dos smartphones, maquininhas de informação instantânea, está consolidando novos hábitos de consumo e — o eterno tabu — formas alternativas de expressão sexual.
Para Lipovetsky, a chave do enigma está na informação personalizada que passamos a receber em abundância. Com efeito, o século XX construiu uma verdadeira “civilização da tela”. Num primeiro período (1895-1950), com a invenção do cinema e da cultura de massas, houve a criação das grandes marcas (Coca-cola, por exemplo) e a consolidação de padrões generalizantes de consumo e comportamento.
Na segunda etapa (1950-1984), com a chegada da TV e o fortalecimento das grandes empresas de comunicação (CBS, Televisa, Globo), passamos para um padrão de consumo mais funcional, representado por itens domésticos como os refrigeradores e as máquinas de lavar, o que implicava comportamentos mais libertários, mas ainda ligados ao núcleo familiar.
Muita coisa já havia mudado, mas a situação se tornou realmente complexa com a multiplicação das telas a partir dos anos 1980. Já havia mais de um televisor em cada casa quando surgiu a internet e logo depois o “computador de mão”, proporcionando uma segmentação de conteúdos e comportamentos jamais vista em toda a história da humanidade.
As mudanças não estão mais acenando no horizonte. Elas estão entre nós, em curso, e isso já faz algum tempo. A fragmentação do cotidiano em milhares de discursos contraditórios, o hiperconsumismo e a soberania das individualidades são sintomas espalhados por todos os lados. É isso que os teóricos dos anos 1990 chamavam de pós-modernidade. Só que agora não é mais hipótese. É pra valer.
Nesse cenário, quem pensa que pode manter um único padrão de comportamento — ou o “padrão correto” — está se iludindo. Pior: quem acha que a censura a exposições e palestras seria justa ou mesmo eficaz no mundo do Facebook e dos celulares, está apenas demonstrando um desespero que não raro se transforma em rancor.
Mesmo assim os conservadores insistem em eleger bodes expiatórios e culpá-los pela destruição de um mundo que já não pode ser conservado. Nesse sentido, em vez de queimar a inofensiva boneca da Judith Butler, seria mais lógico depredar o túmulo de Steve Jobs na Califórnia. Mais lógico e mais fácil.
Lutar contra o moinho da História, afinal de contas, não é tarefa para qualquer quixote.
Se houvesse coerência nos autodenominados movimentos de direita, a primeira coisa que fariam é defender a liberdade de expressão. Em vez disso, promovem rituais de ódio vexaminosos e — pior! — correm para o colinho do Estado e pedem a censura de palestras, exposições, livros e currículos escolares. Não percebem que isso é coisa de “comunista”?
As liberdades individuais, que são as verdadeiras bandeiras da direita, saem enfraquecidas dessas malhações de Judas abobalhadas.
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Pessoalmente, não creio que uma sexualidade possa ser formada apenas pelo contexto cultural do indivíduo. Como a maioria das teorias pós-estruturalistas, a Performatividade de Gênero idealizada por Judith Butler é frágil e facilmente contestável com a ajuda da Química e da Biologia.
Outras teóricas igualmente famosas e também identificadas com as causas do feminismo possuem discursos contrários àquilo que os conservadores chamam de Ideologia de Gênero. É o caso de Camille Paglia, crítica feroz de Butler, cujas ideias tentei sintetizar aqui.
Em vez de tentar calar uma pessoa, é só estudar um pouquinho e argumentar com coerência. Garanto que é muito mais produtivo do que ficar acendendo fogueiras e passando vergonha por aí.
Num dos cartazes presentes na manifestação de ontem (que pode ser visto na foto ali em cima), colocaram um menino imitando o pai na hora de fazer o nó da gravata. Só rindo. Os raivosos manifestantes não perceberam que o cartaz está concordando com as ideias da Butler!
Se a masculinidade ou a feminilidade são imanentes, não haveria a necessidade de imitação (influência cultural) para que meninos e meninas ajam conforme o seu sexo biológico.
Isso prova que os pedidos de censura não surgem por acaso. São o resultado de muita, muita burrice acumulada.