Poder do Estado Islâmico está em jogo na terceira batalha de Fallujah
Ofensiva em cidade iraquiana ocupada por jihadistas definirá novas etapas de uma guerra que até agora parecia sem fim
Entre os poucos segundos em que Cristiano Ronaldo se colocou diante do gol e, como um deus do relâmpago, chutou exatamente na medida, sem mais nem menos potência do que a necessária para arrancar metade do planeta do sofá, doze iraquianos que torciam pelo Real Madrid foram dizimados.
Eles assistiam ao jogo num café na cidade de Baquba, espalhados pelos sofás rechonchudos tão ao gosto de muitos países do Oriente Médio. O piso branco ficou coberto pelo sangue derramado no ataque com fuzis de quatro militantes do Estado Islâmico que praticamente replicou um massacre em 13 de maio.
Os países árabes são divididos entre torcedores do Real Madrid e do Barcelona, todos igualmente pecadores aos olhos dos ultrafundamentalistas que incluem o futebol entre inúmeras proibições, que vão do cigarro à música não religiosa.
Os atentados isolados são parte da trágica rotina no Iraque, onde os homens ou carros-bomba tradicionalmente aumentam durante o Ramadã. E mais ainda agora, quando o Estado Islâmico está sofrendo perdas territoriais e trava uma batalha de significativa importância estratégica e simbólica, tentando defender suas posições em Fallujah.
Mesmo quem não identifique imediatamente o nome da cidade já ouviu falar nela, de alguma maneira. Fallujah foi palco de duas grandes batalhas durante a ocupação americana e entrou para a lista de lugares consagrados com sangue pelos marines.
A maioria das imagens que fazemos dessa etapa dura da ocupação vem de Fallujah, via realidade ou ficção. Os marines que se esgueiram encostados em paredes e entram, um a um, em casas onde se escondem famílias ou combatentes inimigos – ou ambos – estavam em Fallujah. O atirador de elite Chris Kyle que os protegia, tal como mostrado no filme American Sniper, entre outros integrantes dos Seals, as forças especiais, também.
“Somos os exércitos do império/ Somos os legionários de Roma/ É Natal em Fallujah/ E não tiramos o pé da lama”, diz o rock de Billy Joel, fazendo exatamente a referência que nenhum dirigente americano, civil ou militar, sequer sonharia em fazer, mas que a tropa adorava. Na Segunda Batalha de Fallujah, morreram 95 combatentes americanos – mais da metade deles em uma única semana de novembro de 2004.
Do outro lado, o comandante era um certo Abu Musab Al Zarqawi. Na época, o jordaniano era um radical que havia se incorporado à Al Qaeda. Ele foi morto em 2006, mas deixou o movimento jihadista que se expandiria para virar o Estado Islâmico, ou Isis, instituído em áreas conquistadas do Iraque e da Síria como nunca aconteceu antes com outro grupo terrorista.
Quando militantes do Isis tomaram Fallujah, em 2014, o fenômeno parecia irreversível. O exército iraquiano era um adversário patético, os Estados Unidos de Barack Obama jamais retomariam as operações por terra e a aliança xiita entre o regime sírio e o Irã parecia condenada.
Outros elementos estão em jogo atualmente. Os xiitas, que são a fatia da população mais ameaçada pelo avanço dos fundamentalistas sunitas, conseguiram montar a resistência e o contra-ataque, com um estranho arco de aliados. Os curdos iraquianos arcam com o maior peso dos combates diretos com os islamistas. Forças especiais dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha articulam e orientam a resistência, além de treinar o sempre despreparado exército convencional. Qassam Suleiman, o legendário comandante da força expedicionária da Guarda Revolucionária do Irã, está envolvido diretamente na reação.
Praticamente todos já se mataram entre si, em especial milícias iraquianas e combatentes iranianos xiitas que dizimaram americanos durante a ocupação do Iraque.
As perdas territoriais aumentam ainda mais o risco de que o Estado Islâmico desencadeie novos ataques terroristas na Europa, como retaliação e exibição de força. Numa área da Síria perto da fronteira com a Turquia, mais de 100 mil pessoas estão ilhadas por uma contraofensiva do Isis. A retomada de Fallujah vai custar caro, em muitos sentidos. “Tem um mar de sangue em Bagdá/ Um mar de petróleo na areia/ Entre o Tigre e o Eufrates”, diz a letra de de Christmas in Fallujah. Quem imaginaria que Billy Joel, filho de um pianista cuja família fugiu da Alemanha nazista, ia criar uma balada histórica?