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Restrição calórica, longevidade e câncer: o que é verdade?

A correlação entre dietas restritivas com maior longevidade e menor risco de doenças como o câncer é uma questão relativamente recente

Por Bernardo Garicochea
20 out 2017, 12h43

Há alguns dias conheci a historia de Herschel Walker, campeão americano de MMA, que, aos 55 anos, declara (aparentemente apoiado por testemunhas confiáveis) que diariamente faz 1 500 apoios (push-ups), 1 500 abdominais, uma corrida de velocidade seguida de uma mini-maratona, movido a apenas uma saladinha, sopa e pão no jantar. Sem café da manhã, sem almoço, sem barras de cerais ou chocolates. Esta história me soaria como absurda, pois ela afronta a matemática mais básica em termos de calorias ingeridas menos calorias consumidas.

Ainda que difícil de acreditar, há muitas pessoas que conseguem manter atividades físicas particularmente intensas sem grandes ingestas calóricas, e não precisamos procurar um mosteiro hinduísta para vermos estes casos. Minha irmã, por muitos anos, se alimentou de caldo de feijão duas vezes ao dia, e apenas caldo de feijão, sem perder nenhuma balada noturna. Décadas depois, ela segue com uma dieta frugal e apresenta no seu fichário médico apenas problemas de saúde relacionados ao excesso de atividade física mal supervisionada e acidentes domésticos.

Na minha família, não comer fartamente em uma refeição era sinal de doença. Gordinhos ou fortinhos eram consideráveis o ideal de saúde, algo como um padrão de beleza proveniente dos quadros de Rubens. Foi uma geração que ainda ouvia ecos de escassez. Pragas, secas, pestes, guerras, problemas graves na distribuição e armazenamento de alimentos, explicavam porquê o indivíduo com sobrepeso estava alçado a uma condição de superioridade material nos grupos sociais.

É muito provável que estas pessoas suportassem até melhor os períodos de escassez, que eram a regra, e por isso, tivessem alguma vantagem evolutiva. A correlação entre dietas com restrição calórica e menor índice de massa corpórea, com maior longevidade e menor risco de câncer, diabetes e doenças cardiovasculares, é uma questão relativamente recente.

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A relação entre câncer e massa corpórea

No caso especifico do câncer, os estudos associando índice de massa corpóreo e risco para câncer datam dos anos 70 e 80, mas com metodologias muito questionáveis. Eu aprecio, especialmente, os estudos realizados em pessoas portadoras de mutações genéticas que predispõe a câncer. Estas pessoas, como têm um risco elevado de câncer em um futuro mais próximo que a população geral, são candidatos excelentes a experimentos que avaliam o efeito de certos hábitos no desenvolvimento da doença.

Um estudo holandês e um britânico recentes em portadoras de mutação em BRCA1 e 2 (mesma mutação da atriz Angelina Jolie), mostram uma redução de um terço no risco de câncer em indivíduos com peso levemente abaixo ou igual ao IMC esperado. Infelizmente, estes estudos não separam o impacto do aspecto dietético daquele que poderia ser conferido pela atividade física. O que nos parece muito claro hoje é que adicionar fatores de risco genéticos ou ambientais com sobrepeso não parece uma boa combinação no que se refere a câncer.

Os estudos que avaliaram puramente a restrição calórica com risco para câncer são abundantes em animais. E, apesar de dados muito confusos, há uma certa concordância entre pesquisadores (e eu mencionaria uma meta-análise de 2014 que reúne centenas de estudos publicada no periódico on-line PLOS One) , que o risco de câncer reduz-se bastante em animais subalimentados do que naqueles superalimentados.

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Restrição calórica e longevidade

No que diz respeito à longevidade, a questão ainda é mais curiosa e um artigo publicado em um periódico obscuro há alguns dias levanta uma hipótese muito interessante, que poderia explicar esta misteriosa associação com dietas restritivas crônicas e inesperados índices da saúde. Agradeço ao geneticista Ricardo di Lazzaro, que me passou a reportagem onde consta a referência deste artigo, bastante lúcida cientificamente e bem escrita no site MedicalXpress.

A hipótese dos pesquisadores de Oklahoma é que indivíduos que se alimentam menos guardariam uma “memória” menor de fome. Esta memória de fome e de uso de diversos componentes calóricos passaria por uma modificação genética promovida pelo próprio ambiente. Algo que chamamos de epigenética. Certos genes responsáveis por ativação de queima calórica fornecida por carboidratos, por exemplo, aliados a outros genes que ativam memória de fome ou saciedade, são completamente reprogramados por meio de mudança de comportamento dietético.

O experimento, para variar, foi feito apenas em camundongos, mas pode nos dar uma pista bem plausível do porquê Mr Herschel Walker, ou minha irmã, ou ainda os gurus hindis conseguiriam manter-se tão saudáveis com dietas tão tristes e cinzentas para um aficionado por comida como eu.

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Efeito genético

Os camundongos mantidos em dietas restritivas tiveram seu perfil genético analisado de forma periódica e alguns genes, especialmente o gene do receptor da neurotensina 1, foram detectados em níveis progressivamente elevados. Genes como a neurotensina 1 têm efeitos diferentes em muitas células, mas no cérebro, estes genes são importantes reguladores no hipotálamo, um local-chave para o controle das sensações de fome e saciedade e de processos metabólicos do organismo.

A neurotensina, por exemplo, baixa os níveis de pressão arterial, aumenta os níveis de glicose no sangue e reduz a temperatura corporal. Os autores do trabalho documentaram que nos camundongos em dieta, a regulação genética da neurotensina estava modificada e um excesso desta proteína estava sendo produzida. Os níveis da produção de neurotensina são normalmente mantidos baixos por meio de um processo químico chamado de metilação. Os camundongos jejuadores desmetilam o gene da neurotensina, liberando a sua atividade.

O resultado disso é que estes camundongos adequam-se a dietas cada vez menos calóricas e perdem a memória da fome, o que talvez tenha sido o maior motor de nossa sobrevivência como sapiens sapiens. Em uma era nunca vista de prolongada abundância de calorias de fácil utilização como a nossa, a manutenção dos níveis de neurotensina, entre outros programas genéticos que estimulam a busca constante de nutrientes, talvez seja uma das explicações do aumento dos casos de obesidade e secundariamente, de câncer.

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O que nos resta dessa história? Pesquisadores de Vale do Silício, dentro de um projeto chamado Encode, já estão buscando entender melhor sobre como modificar a nossa programação genética, ou epigenética, para poder explicar sobre o efeito de padrões de vida sobre nosso DNA e no futuro desenvolver drogas capazes de tratar doenças produzidas pelo ambiente por meio da manipulação desta programação genética.

Eu espero ardentemente que este dia chegue logo, pois não consigo imaginar minha vida com menos de 2 000 calorias por dia. Para os que conseguem, pode ser uma experiência no mínimo interessante, até de auto-controle, em tempos de abundância.

 

Bernardo Garicochea

 

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