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Por Coluna
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Kevin Spacey: como deletar uma carreira

Não é só de “Todo o Dinheiro do Mundo” que o ator está sendo apagado – é de todas as agendas da indústria do entretenimento

Por Isabela Boscov Atualizado em 9 nov 2017, 18h46 - Publicado em 9 nov 2017, 17h51

Durante as últimas semanas, venho acompanhando o noticiário sobre os abusos sexuais em Hollywood com partes iguais de perplexidade e horror. Algumas das coisas que me ocorrem, a cada nova manchete, são: Vai sobrar alguém? (Já brincaram que, provavelmente, só Tom Hanks escapa dessa onda com a ficha limpa.) Como tantos colegas e amigos dos acusados dizem que não sabiam de nada, se em certos casos até daqui, a 10 mil quilômetros de distância, eu há anos vinha ouvindo os rumores em alto e bom som? Por que aquelas atrizes que denunciam o assédio torpe a que Harvey Weinstein as submeteu no início da carreira estão sorrindo ao lado dele em fotos tiradas em festas e tapetes vermelhos por todos os anos ou décadas seguintes? No último Oscar, quando Brie Larson entregou a estatueta a Casey Affleck (duas acusações pairando sobre ele na ocasião) com cara feia, achei que ela estava fazendo uma condenação antecipada, o que é em si condenável. Mas, se o ambiente é de tal forma tóxico, agora vejo a coisa de outro modo; Brie pelo menos estava sendo coerente e demonstrando seu desagrado, em vez de praticar as falsidades de praxe. Entre todos os casos, porém, talvez nenhum venha a se provar tão drástico quanto o de Kevin Spacey – por causa da visibilidade de Spacey e do teor particularmente escabroso das acusações, que envolvem menores de idade. Em uma decisão tomada por conta e risco próprios e comunicada ao estúdio como fato consumado, o diretor Ridley Scott acaba de anunciar que vai correr com refilmagens e ajustes digitais para substituir a performance de Spacey em Todo o Dinheiro do Mundo pela de Christopher Plummer, de forma a manter a data de lançamento de 22 de dezembro. Nunca se ouviu falar de algo assim e, do ponto de vista artístico, é altamente controverso. Mas Ridley sabe que, com Spacey, seu filme nasceria morto nos festivais (dos quais, aliás já havia sido retirado) e na bilheteria.

Frank Underwood, o político caviloso que Spacey interpretou em cinco temporadas de House of Cards, dizia que “tudo no mundo tem a ver com sexo. Exceto o sexo. Sexo tem a ver com poder”. (Obrigada à minha irmã por me lembrar dessa fala tão oportuna.) Na indústria do entretenimento, poder – o cacife para fazer e acontecer – é a moeda mais valorizada, e por isso quem a tem no bolso faz questão de ostentá-la de todas as maneiras possíveis. Essas maneiras em geral variam do desagradável ao ofensivo. Vão dos “assistentes pessoais” que trabalham em regime de semi-escravidão (como estágio para adquirir poder e terem seus próprios assistentes pessoais) àquelas histórias sobre astros que proíbem funcionários de olhá-los nos olhos (não sei se acredito nisso, mas o fato é que não, não seria impossível). E terminam no assédio puro e simples. A celebridade sendo esse ímã social que é, o sexo seria uma questão fácil de resolver. Isso se o sexo fosse a questão. Mas a questão é poder, e o narcisismo que vem com ele. Fazer aquilo que é imoral, anti-ético e proibido, e continuar a fazê-lo à vontade, e continuar sendo cercado de um silêncio cuidadoso, e cortejado e festejado – existe algo mais eficaz que isso para o sujeito sentir que é uma espécie de semideus e está acima das regras que os outros são obrigados a obedecer? Provavelmente não – nem mais eficaz, nem mais desprezível. Alguém escreveu outro dia em uma coluna de jornal (quem? Já li tanto a respeito que já não consigo saber) que as atrizes que agora denunciam Harvey Weinstein o fazem porque se tornaram mais poderosas do que ele. É uma constatação lúcida. Sem cacife para passar por cima da teia de conexões de um produtor poderoso de Hollywood, qualquer denúncia facilmente cairia no vazio ou no ridículo.

O interessante é que, tendo as denúncias atingido um certo volume de credibilidade, é para as vítimas, agora, que se transferiu o poder. (Ou supostas vítimas, dado que ainda não se chegou ao estágio dos tribunais.) Isso gera exageros, não há dúvida – um clima em que qualquer interação de caráter vagamente sexual está sujeita à judicialização. Mas este momento de altíssimas temperaturas, pelo menos, tira de circulação a moeda do sexo como exercício de poder. E permite também que pessoas como o ator Anthony Rapp procurem alguma forma de reparação moral e legal. Rapp, que hoje tem 46 anos, alega ter sido abusado por Spacey aos 14 anos, ao fim de uma festa, quando se descobriu o último convidado ainda na casa do ator. Vamos começar pelo que já é inimaginável: que um garoto de 14 anos tenha sido levado a uma balada de adultos, e deixado para sobrar lá. E daí vamos para o repulsivo, que é o fato de um adulto tirar proveito dessa vulnerabilidade. Outras acusações já despontam contra Spacey; a equipe técnica de House of Cards, por exemplo, diz que ele instaurava um clima insuportável de exploração sexual no set. Também veio à tona que a polícia inglesa já o estava investigando por abuso e assédio durante o período em que ele foi diretor artístico do teatro Old Vic, em Londres. Se as acusações forem verdadeiras, não se está falando de “deslizes” ou de “momentos de fraqueza”. Está-se falando de um padrão de comportamento, com o qual muita gente foi complacente ou mesmo cúmplice durante muito tempo.

E por isso, embora do ponto de vista criativo me pareça a coisa mais estranha que já vi (ou melhor, que verei) no cinema, compreendo a tentativa de Ridley Scott de buscar uma saída – talvez vã – para salvar seu filme. Em Todo o Dinheiro do Mundo, Spacey interpretava o industrial Jean Paul Getty (1872-1976), pessoa física mais rica do planeta nas décadas de 60 e 70, que, em 1973, recusou-se a pagar o resgate de 17 milhões de dólares pelo sequestro de seu neto, John Paul Getty III, de 16 anos. A perplexidade com a atitude de Getty virou uma onda de ódio quando os sequestradores cortaram a orelha do menino e a enviaram para o avô, como prova de que estavam dispostos a ir a extremos. Getty argumentava que, se pagasse, estaria aberta a temporada de sequestros à sua família. No final, ele negociou com os sequestradores o valor de 2,2 milhões de dólares – o limite do que poderia ser deduzido do imposto de renda. Ou seja, não é que Spacey estivesse interpretando um personagem minimamente simpático. Getty, além disso, é um coadjuvante no filme; os protagonistas são a nora do bilionário e o advogado dele, vividos por Michelle Williams e Mark Wahlberg. Ainda assim, foi demais. Spacey muitas vezes foi um tremendo ator, mas arrisco prever que nunca mais vai conseguir outro papel. Não é só de Todo o Dinheiro do Mundo que ele está sendo deletado – é o seu futuro, e toda a sua carreira pregressa, que acabam de ser enterrados também. Quando a pessoa está no topo do mundo, ela custa a lembrar que, um dia, talvez lhe apresentem a conta. E pode ser que nem todo o dinheiro do mundo baste para pagá-la.

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