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Por Jerônimo Teixeira
Crítica da cultura e cultura da crítica. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Uma defesa da arte ruim – e do comercial de cerveja

A "pressão popular" que levou ao cancelamento do Queermuseu foi estúpida e censória. Mas não confie em todas as vozes que se levantaram contra ela

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h45 - Publicado em 15 set 2017, 19h49

A loirinha americana me perguntou se eu falava palavrão. “Do you swear?”, foi a pergunta dela, que demorei a entender. Ainda nos primeiros meses de intercâmbio estudantil em uma High School no interior da Pensilvânia, eu tropeçava em coloquialismos e em palavras ambivalentes.  To swear pode ser tanto “jurar” quanto “dizer profanidades”; julguei que minha colega empregava o verbo na primeira dessas acepções, embora não soubesse que  juramento solene ela pedia de mim. Mas não: ela perguntou se eu usava palavrões. “De vez em quando”, respondi, tolamente. Eu não era, como se vê, muito bom em manter conversações com garotas.

(Calma, leitor. O tema aqui é o cancelamento da expo-gay gaúcha, e já vou falar disso, e dos savonarolas suburbanos, e de liberdade de expressão, o rolo todo. Tenha paciência: o show começa depois de uma breve digressão memorialística.)

Não eram apenas falhas de proficiência em língua inglesa que dificultavam meu entendimento: o problema era mais cultural do que linguístico. Entre adolescentes brasileiros dos anos 1980 – ou, suponho, dos anos 10 do século XXI -, a pergunta “você diz palavrão?” não teria  sentido, pois comportaria apenas uma resposta constrangedoramente óbvia:  “claro que sim, porra!”. A encantadora cheerleader  americana (não lembro se ela era cheerleader, mas quero enfeitar a história), ao contrário, julgava o palavrão uma transgressão e um escândalo (imagino que não seja mais assim nos Estados Unidos de hoje, e que mesmo então o motherfucker seria banal em escolas de grandes centros urbanos). Quando afinal entendi o sentido da pergunta, meu complexo de inferioridade – pessoal e nacional – foi mitigado: eu, o terceiro-mundista que ainda falava inglês trôpego, me senti soberbamente superior à estadunidense imperialista e a todos os seus compatriotas. Que gente careta e primitiva essa, que ainda se escandaliza com um inocente palavrão!

Lembrei-me do diálogo com a cheerleader quando vi o famoso – ou infame – vídeo em que dois justiceiros morais denunciam a pornografia, a pedofilia, a zoofilia da mostra Queermuseu, fechada graças à “pressão popular” de MBL e associados. Um dos bravos cruzados postava-se ao lado de uma obra que consistia em quatro letras que pareciam feitas de massinha de modelar: FUCK. Ele esbravejava contra o curador e contra o Banco Santander, cujo centro cultural porto-alegrense abrigava a exposição. Pela aparência desgrenhada, era um rapaz na casa dos 20, um tanto mais velho do que a fresca e ingênua cheerleader da minha memória, e estava escandalizado com um palavrão em inglês (ele mesmo empregaria, em seguida, um palavrão para qualificar a mostra, provavelmente  porque seu moralismo tosco não tem vocabulário para falar de arte – nem mesmo de arte ruim). Moleques como o sujeito do vídeo tiveram o poder de coagir uma instituição financeira multinacional a cancelar uma iniciativa cultural. Moleques como ele pautaram um debate nacional canhestro sobre arte – uma conversa estranha na qual se reabilitou até a ideia de blasfêmia (mais uma evocação da minha adolescência nos anos 80: saudades do aiatolá Khomeini!). Moleques como ele ganharam espaço nos maiores veículos do progressismo dodói mundial, The Guardian e The New York Times.  Mais do que o impeachment – causa que não era só deles -, foi este o episódio consagrador do MBL. Mais do que o impeachment, que também era defendido por gente adulta e amante da democracia, este é o episódio que revela a santimônia autoritária do MBL. O movimento cujo expoente acredita que sua própria bunda serve de argumento político tem sua grande vitória no fechamento de uma exposição com pintos, palavrões e um cabrito (ou é um cachorro?) sodomizado em um detalhe de um quadro.

***

Todo mundo que já esteve em um museu de arte contemporânea ou visitou uma bienal cruzou com bobagens como o tal FUCK (não sei quem é o autor e não me interessei em pesquisar) ou como o muito comentado grafite da “Criança Viada” (que é um horror mas não é incitação à pedofilia). Adultos educados riem da puerilidade da coisa, ou bocejam, e seguem em busca de obras relevantes (nem sempre as encontramos, infelizmente). A arte que promove o escândalo pelo escândalo é retardatária, ainda animada pelo antiquado imperativo do épater la bourgeoisie. O melindre histérico dos justiceiros morais serviu, ironicamente, para validar a exposição e o curador Gaudêncio Fidélis. Sucesso: uma mostra em uma província esquecida da América do Sul ganha as páginas do New York Times! Pelo jeito, ainda é possível escandalizar a burguesia, ainda que os novos burgueses sejam muito chinfrins e descapitalizados.

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Esse inédito burguês da laje, estreito e santarrão, que tem faniquitos diante de um Cristo camp com braços múltiplos de divindade indiana, nada mais é senão uma versão muito agressiva de um tipo de caracterizei aqui antes: o filisteu que odeia arte contemporânea. Pois um bom filisteu não se limita ao ressentimento contra a grande arte que ele não consegue entender: às vezes, ele também condena a arte ruim – mas pelas razões erradas. No vídeo dos justiceiros morais que foram ao Santander Cultural, vemos um deles usando o Código Penal para julgar as obras: este aqui é blasfêmia! Artigo 208!

Quem, a não ser um filisteu, visitaria uma exposição de olho nos crimes que cada obra representa?
Talvez um agente da Stasi.

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Exposição Queer Museu é suspensa após polêmica
Cena de Interior II, de Adriana Varejão (Reprodução/Facebook)

Será talvez leviano julgar uma exposição que não visitei (e que ninguém mais poderá visitar). Mas desconfio que é possível ter uma noção do que foi o Queermuseu pelas imagens que circularam desde o fechamento da exposição (e o engraçado é que elas não teriam ganho tanta divulgação sem os cheerleaders do MBL).  O quadro “zoofílico” de Adriana Varejão, com suas referências à arte japonesa, foi o único que despertou meu interesse. Creio que existe ali uma dissonância entre a bestialidade das ações e a placidez dos personagens que daria pano pra manga, nas mãos de um alfaiate-crítico melhor do eu. O  resto… Bem, já comentei outras obras acima, não preciso me estender.

Por que, então, seria importante defender uma exposição que, por todos os indícios, deve ter sido bem ruinzinha?

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A razão deveria ser óbvia, mas estamos condenados, no Brasil, a repetir sempre as mais ululantes obviedades: liberdade de expressão. Este é o princípio que foi afrontado pela militância juvenil em Porto Alegre. Se liberdade de expressão valer só para as opiniões com que concordamos e para a arte que admiramos, então não será – de novo, muito obviamente – liberdade de expressão. Claro, nenhuma liberdade é absoluta, e portanto há limites para a liberdade de expressão – mas não reconheço, na exposição que o Santander covardemente cancelou, nenhuma violação desses limites. Sim, há material que os religiosos vão considerar ofensivo, mas isso é problema dos religiosos: a mera sensibilidade ferida não é razão para se limitar a livre expressão artística ou o debate de ideias. O mesmo vale – mais uma vez, é o óbvio – para a sensibilidade cada vez mais histérica do progressismo dodói: o militante de “movimentos sociais” que deseja proibir  o quadro, livro, filme, programa de TV etc. por “reforçar estereótipos” é só outra variedade de pequeno-burguês escandalizável.

Os defensores do MBL têm um  argumento capcioso para negar que o movimento tenha promovido a censura.  Não é censura, dizem, pois  não se viu o carimbo da dona Solange em lugar nenhum. Houve protestos e boicote contra uma mostra de arte ofensiva, e em razão desses protestos e boicotes o banco decidiu encerrar a mostra. Tudo muito democrático, sem intervenção da mão pesada do Estado (que depois compareceu com toda força em outro episódio lamentável, em Campo Grande). Convido os amigos a lerem o artigo que Rodrigo de Lemos publica na VEJA desta semana (número 2548, capa da “república das quadrilhas”, página 80), com o título “A censura das redes”. Lemos argumenta que hoje vemos um tipo mais insidioso de censura, que dispensa o aparato estatal: a censura exercida por grupos de pressão barulhentos, organizados nas redes sociais, que conseguem constranger e coibir a expressão de ideias que contrariam seus consensos. Esta censura de guerrilha tem sido utilizada sobretudo pela esquerda (como se viu no caso do boicote de cineastas pernambucanos ao documentário de Olavo de Carvalho, que este blog criticou), mas a direita, como se vê no episódio do Queermuseu, aprendeu a tática e já a emprega com retumbante sucesso. Ainda que se considere que, formalmente, não houve censura, é evidente que o boicote e o protesto contra um livro, um filme, uma exposição é insuflado por um desejo de censurar, de reprimir, de apagar da arena pública aqueles elementos que nos incomodam. A reação democrática a uma exposição que consideramos ofensiva e/ou de baixa qualidade estética é outra: a crítica. O MBL tem seus sites e publicações. Não gostou da mostra? Então que mobilize um de seus aguerridos militantes para escrever um artigo desancando as obras e explicando por que elas são uma porcaria, ou moralmente nefastas. (Se alguém lá teria o mínimo de tirocínio para fazer uma resenha legível é outro problema.)

Estou dizendo com isso que o MBL e os demais grupos e indivíduos que se sentiram ofendidos com a exposição não poderiam protestar contra ela? Não, eles têm todo o direito de gritar e balir o que quiserem. Mas temos aqui um curioso paradoxo: dentro de certos limites, é possível exercer a liberdade de expressão para atacar a própria liberdade de expressão.

Creio que dá para resumir a coisa em um esquema simples:

Liberdade de expressão é a liberdade de X falar bobagem.

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Liberdade de expressão é a liberdade de Y dizer a X: “você falou bobagem”.

Liberdade de expressão é a liberdade de Z dizer a X ou Y: “Você não pode falar essa bobagem”.

Liberdade de expressão é a minha liberdade de dizer a Z: “Você é um censor”.

***

Duas questões laterais ganharam atenção desproporcional na discussão do episódio. A primeira, aborrecidíssima, é a Lei Rouanet. O Santander Cultural financiou a exposição, ao custo de 800 000 reais, por meio da renúncia fiscal. Promete devolver a grana, já que Queermuseu foi fechado antes da data programada, 8 de outubro. A discussão sobre a validade ou não de leis de financiamento estatal para a cultura, porém, não é pertinente aqui. Se você é contra a Lei Rouanet – posição perfeitamente sustentável -, então tem de ser contra seu uso para qualquer finalidade. Se o princípio é o de que a cultura tem de se sustentar no mercado e no mercado apenas, não interessa se é arte sacra ou arte queer: não vale usar dinheiro do erário, nunca.
A segunda questão é mais delicada: crianças foram admitidas em uma exposição que tinha franco conteúdo sexual. Não sei quantas foram, e nem que traumas terríveis terão sofrido. Até agora, não se divulgou nenhum caso de menino ou menina brincando de médico com o gato, cachorro ou cabrito da casa… Mas seria mesmo recomendável que as obras mais explícitas estivessem colocadas em salas com avisos na porta, ou talvez que  houvesse alguma classificação etária para exposição. Se os justiceiros morais tivessem movido um abaixo-assinado pedindo uma dessas duas medidas, eu os respeitaria. Mas o que eles queriam, o que eles conseguiram, era o fim da exposição. O que eles queriam, e o que conseguiram sem ajuda do aparato estatal, foi censura.

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Criança viada… Imagine por um momento que Danilo Gentili empregasse essa expressão em uma piada. Que repercussão isso teria? Eu tenho razoável certeza de que veríamos uma inversão do jogo: o progressismo dodói pedindo a cabeça do humorista homofóbico, e o MBL defendendo seu direito de fazer graça com crianças gays. Eu não vejo com otimismo toda a grita que se levantou contra o fechamento de Queermuseu: a maioria dos indignados protestaram  contra a censura desta mostra em particular, e nada fariam para defender manifestações artísticas que as desagradassem. Hoje falam, inflamados, contra o atraso, o retrocesso representado pela censura à expo-gay, mas ainda ontem usavam os mesmos termos para reforçar a patrulha censória. Apoiaram, tácita ou explicitamente, o boicote contra  O Jardim das Aflições no Festival de Cinema de Pernambuco, e a pressão para suspender  a peça com black face no Itaú Cultural de São Paulo. Justiceiros sociais da esquerda e justiceiros morais da direita agem todos como cheerleaders da cultura. No lugar dos pompons coloridos das animadoras de torcida, levantam a tarja preta da censura.
A sanha censória da esquerda se desdobra em múltiplas frentes, mas há uma, em particular, que me intriga e até me diverte, tão tola é a coisa: a vigilância cerrada contra comerciais de cerveja. O clichê da “objetificação da mulher”, com que se tenta coibir comerciais de cerveja com mulher gostosa, oculta um inequívoco fundo puritano. E o mesmo puritanismo patológico visto no vídeo que denunciou a pedofilia zoofílica rampante em Porto Alegre já se apresentava, há dois anos, quando algumas feministas atacaram um comercial carnavalesco cujo mote era “esqueci meu ‘não’ em casa”. O slogan permissivo empregado para vender cerveja no Carnaval também poderia ter sido usado para vender maconha em Woodstock, mas as pudicas feministas brasileiras não perceberam esse apelo à liberdade sexual: com a mesma disposição paranoide de quem vê incitação à pedofilia na “Criança Viada”, proclamaram que essa publicidade incentivava o estupro.

Falta humor a essa militância. Gente autoritária, afinal, se leva muito a sério. E falta senso de proporção, e de ridículo, a quem dá tanta importância a peças publicitárias.

(Eu mesmo talvez já tenha dado importância demais a essas bizarras idiossincrasias progressistas. E olha que nem gosto muito de cerveja: prefiro minhas mulheres gostosas com um bom single malt.)

 

***

No texto inaugural de Intervenção, professei minha crença na “noção antiquada” de que a cultura ainda tem seu espaço autônomo em relação à política. Uma mostra militante como Queermuseu  representa o oposto da autonomia. É o que expressa o pedante subtítulo “cartografias da diferença na arte brasileira”: as obras expostas tornam-se meros nomes de logradouros em um mapa imaginário das tais “diferenças”. Mas não se confronta a subjugação da arte à política identitária com baixo panfletarismo. O boicote talvez tenha sua função na arena estrita da política e da economia, mas é um instrumento grosseiro e estúpido no mundo da cultura. Sobretudo quando a finalidade do boicote é calar uma expressão artística, boa ou ruim.

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Precisamos de mais discernimento e de menos barulho. A boa crítica não será feita por cheerleaders.

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