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Thom Yorke e Roger Waters: a treta do rock pretensioso

O cantor do Radiohead e o ex-Pink Floyd brigam em torno de uma estúpida proposta de boicote a Israel. A música, porém, é maior que a opinião dos músicos

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 out 2018, 14h46 - Publicado em 9 jun 2017, 18h12

Artista não pede desculpas, eu disse aqui outro dia. Pois Thom Yorke faz jus ao princípio. O cantor e sua banda, o Radiohead, vinham sendo atacados por causa de um show programado para julho, em Tel-Aviv. Um abaixo-assinado do movimento BDS – sigla de “Boicote, Desinvestimento e Sanções” – pede que Yorke e sua trupe reconsiderem a decisão de fazer um show em um país que teria imposto o “apartheid” aos palestinos. Entre os signatários, estão o bispo sul-africano Desmond Tutu, o diretor Ken Loach e o ex-Pink Floyd Roger Waters – este, o mais proeminente dos roqueiros que dão voz ao BDS. Pois Thom Yorke não se dobrou à turma. Em entrevista à Rolling Stone, ele declarou sua completa discordância em relação ao BDS: “O diálogo que eles querem manter é do tipo em que só existe branco e preto. Tenho problemas com isso. É profundamente irritante que, em vez de nos abordarem diretamente, eles prefiram jogar merda em nós, publicamente (Roger Waters contestou esse ponto da entrevista: diz que tentou, sim, conversar pessoalmente com Yorke). É profundamente desrespeitoso supor ou que nós estamos recebendo informações falsas, ou que nós somos tão retardados que não conseguimos tomar uma decisão por nós mesmos”.

O BDS não se limita a assediar bandas de rock que porventura tenham shows em Israel, mas também prega o isolamento acadêmico do país judaico, pressionando universidades e professores a cancelarem intercâmbios. Thom Yorke, com plena razão, considera absurdo (e absurdo é uma tradução muito mitigada para head fuck) impor limites à troca de ideias em uma universidade, espaço no qual o pensamento deveria ser livre. O músico inglês atacou a retórica inflamada e simplista do BDS (“jogam a palavra ‘apartheid’ pra lá e pra cá e acham que isso basta”) e lembrou que seu companheiro na banda, o guitarrista Jonny Greenwood, é casado com uma árabe judia – e por esse envolvimento pessoal estaria mais bem informado sobre o conflito palestino-israelense do que os militantes que agitam bandeiras do BDS em shows do Radiohead.

A resposta do cantor foi, sobretudo, uma afirmação de autonomia artística. Yorke não defendeu o Estado de Israel (cuja mera existência continua sendo inacreditavelmente contestada) ou seu governo. Tampouco levantou as problemáticas conexões do BDS com o Hamas. Acredito que ele fez bem em não descer às particularidades da questão palestina. Um músico que faz show em país estrangeiro não está, de forma alguma, prestando apoio automático ao governo local. A rigor, ele nem precisaria ter opinião formada sobre esse governo.

Militantes dos dois lados talvez o acusem de se esquivar das questões fundamentais, sejam estas a opressão do povo palestino ou o direito de Israel a se defender. Thom Yorke, no entanto, foi só ao ponto que lhe concerne como artista: o boicote proposto pelo BDS é autoritário. Houvesse compreendido esse argumento tão simples quando fez seu show em Tel-Aviv em 2015, Caetano Veloso teria poupado os leitores da Folha de S. Paulo daquele texto confuso em que se justificou por cantar em Israel.

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O produtor Nigel Godrich, parceiro regular do Radiohead que também trabalhou em Is This the Life We Really Want?, disco mais recente de Roger Waters, disse à Rolling Stone que Thom Yorke e o ex-Pink Floyd, apesar da atual dissenção, têm muito em comum. Nunca se encontraram, mas seriam – traduzo precariamente a expressão idiomática empregada por Godrich – “duas ervilhas da mesma vagem”.

Na resposta de Yorke ao BDS, há uma indicação de que Godrich está certo em colocar os dois roqueiros na mesma vagem. Yorke afirma que a política de boicotes é “divisiva”. Não diz expressamente que grupo sai dividido pelo bullying de Roger Waters e sua turma, mas é seguro supor que  a divisão se dá entre os Justos, o que só pode favorecer os Ímpios – no caso, as três bestas-feras do conservadorismo internacional nomeadas pelo vocalista do Radiohead:  Theresa May (a entrevista de Yorke é anterior às recentes eleições parlamentares no Reino Unido), Donald Trump e Benjamin Netanyahu. A associação entre boicotes culturais e a ascensão (em eleições democráticas, diga-se) de líderes de direita em três países segue certa lógica ligeira e corriqueira do pensamento progressista contemporâneo. Falo daquele raciocínio tortuoso que, se fosse explicitamente formulado, seria mais ou menos o seguinte: por mais equivocado ou imoral que um evento seja em si mesmo, seu resultado mais pernicioso sempre será a vantagem que dele podem tirar as “forças conservadoras”(“Mortos em um atentado em Londres? Que horror, agora a direita islamofóbica vai crescer!”).

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Mas afinal o que importa a opinião de um ou dois músicos sobre Israel e Palestina? Eu só lamento que o repórter da Rolling Stone não tenha perguntado a Godrich sobre eventuais similaridades musicais dos dois artistas. E lamento, sobretudo, porque, em diferentes etapas da minha vida, Pink Floyd e Radiohead foram minhas bandas favoritas.
Foram: se uso o tempo pretérito, não é porque hoje eu despreze os dois grupos. Ocorre que a música pop, por natureza efêmera, circunstancial, já se torna coisa do passado quase no momento em que a ouvimos. Às vezes, é verdade, voltamos à música do passado para encontrar evocações do que já fomos, e até descobrimos que a canção tão banal que ouvíamos no rádio do carro, a caminho da escola ou do trabalho, conserva seu frescor e sua vibração. Yorke e Waters estão entre os que merecem ser ouvidos novamente.

Roger Waters
Roger Waters na gravação de seu mais recente disco (Sean Evans/Divulgação)

A música dos dois é animada (ou desanimada, diria um crítico menos simpático ao rock macambúzio) pelo mesmo estranhamento diante de um mundo de estímulos e abundância inauditos na história. O pathos do Radiohead e do Pink Floyd cabe todinho em um só verso de um poeta superior a Yorke e Waters (até porque os dois ingleses são letristas, não poetas): “Melancolias, mercadorias espreitam-me”. A melancolia, o tédio, o spleen da superabundância: quem já não foi tomado por esse sentimento no sofá de casa, diante da TV, com o controle na mão para escolher entre “trinta canais de merda”, como dizia a letra de Nobody Home, do Pink Floyd? (A canção é bem anterior à expansão da TV a cabo e ao streaming, daí o modesto número de trinta canais.)  Quem já não se sentiu um turista em sua própria cidade, incapaz de se conectar ao que o cerca e incapaz de andar um pouco mais devagar, tal como o personagem de The Tourist, do Radiohead?
Thom Yorke fala dessa alienação (e não é preciso recorrer a pesadas teorizações marxizantes para aceitar a palavra) de forma alusiva, às vezes críptica. Waters é às vezes de uma obviedade grosseira ao condenar os pecados do que se chama vulgarmente de “consumismo” (Welcome to the Machine é um bom exemplo). Também é dado à autocondescendência sentimental: The Last Refugee, canção do novo disco que tem lá sua beleza, não é, como o título poderia sugerir, sobre a tragédia humanitária dos refugiados sírios que tentam a travessia do Mediterrâneo: o que se encena ali é o drama da consciência do compositor, homem sensível e virtuoso que se choca e se compadece com a dor dos refugiados.

 

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Embora esteja em carreira-solo há mais de trinta anos, Roger Waters é, ainda e sempre, o ex-Pink Floyd. Thom Yorke com frequência grava discos-solo e faz shows sem sua trupe costumeira, mas ele é, sobretudo, o cara do Radiohead (ainda que o verdadeiro gênio musical da banda seja o guitarrista Jonny Greenwood, que leva uma vida dupla de rock star e compositor erudito). Não tenho conhecimento musical para traçar paralelos entre o som das duas bandas, mas creio que há, sim, elementos em comum: excelência musical sem virtuosismo masturbatório, experimentação com instrumentos pouco convencionais para o rock, certa propensão a uma sonoridade “atmosférica” que de longe lembra os temas de Györgi Ligeti popularizados por Stanley Kubrick em 2001. Há também uma destemor comum em abraçar a estranheza, a franca esquisitice – mas esta é uma qualidade evanescente: Waters a abandonou de vez no dispensável The Final Cut, seu último disco com o Pink Floyd; para meu gosto, A Moon Shaped Pool, último disco do Radiohead, aproximou-se perigosamente do easy listening (tem até um lastimável flerte com a bossa nova, Present Tense).

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Ponto fundamental que aproxima Thom Yorke e Roger Waters, Radiohead e Pink Floyd: eles fazem música pretensiosa. Não é um demérito, pois há pretensões realizadas e pretensões fracassadas. A pretensão foi a marca do rock progressivo dos anos 60 e 70, ao qual o Pink Floyd é sempre vinculado. Creio, porém, que a banda de Roger Waters não se confunde com a mediocridade pomposa de tantos outros grupos do período (o leitor nascido depois de 1980 está convidado a digitar as palavras “Emerson Lake Palmer” no espaço de busca do Spotify para entender do que estou falando).

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Thom Yorke e Roger Waters podem seguir se bicando no site da Rolling Stone. Enquanto isso, ouçamos Wish You Were Here, parceria de Waters e David Gilmour, na voz de Yorke, aqui como cantor convidado da banda americana Sparklehorse.

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“Somos apenas duas almas perdidas nadando no aquário do peixinho, ano após ano”, diz a letra (em tradução aproximada). E, no final: “Correndo sempre pelos mesmos velhos campos, o que encontramos? Os mesmos velhos medos”.
Mark Linkous, líder e criador do Sparklehorse, suicidou-se em 2010.

 

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